Por José Geraldo Couto
Alguém já disse que o documentário “O Mistério do Samba” (2008) é o nosso “Buena Vista Social Club” (1999). Os dois filmes, de fato, têm muito em comum. Assim como o documentário de Wim Wenders sobre veteranos músicos cubanos, trata-se aqui de reconstruir os passos e laços de toda uma cultura – no caso, a cultura do samba carioca, mais exatamente da Portela, um de seus pilares mais sólidos.
Poucas vezes a expressão “escola de samba” fez tanto sentido. Mais do que recuperar músicos esquecidos, na esteira do que Paulinho da Viola realizara já nos anos 60, o que Marisa Monte e a dupla de cineastas Carolina Jabor e Lula Buarque de Hollanda fazem é o registro vivo de uma arte coletiva em perpétuo movimento.
Nesse sentido, um dos momentos mais significativos do filme, e talvez o mais comovente, é aquele em que a quase nonagenária pastora Eunice ensina a um grupo de meninos e meninas os passos do “miudinho”, que ela aprendeu diretamente com Paulo da Portela (1901-1949), fundador e figura mítica da escola.
Na fala mansa de Eunice há nostalgia, mas também um humor gaiato e sensual. Entre ela e as crianças, passaram-se várias gerações de sambistas fabulosos, e é o amoroso fio condutor entre eles que o filme reconstitui com reverência e delicadeza.
Dois dos mais veteranos – Argemiro Patrocínio e Jair do Cavaquinho – morreram depois das filmagens, o que torna ainda mais preciosos os seus depoimentos lúcidos e bem-humorados, tanto quanto o registro de seu canto e sua dança.
A ponte entre a Velha Guarda e Marisa, tanto em termos de geração como de formação, é feita pelo sempre simpático e luminoso Paulinho da Viola.
É numa conversa entre os dois que a cantora explicita o que a levou a buscar a Velha Guarda: “Eu sentia que o mundo poderia ser melhor com esses sambas”.
Outra passagem extraordinária, porque ditada pelo acaso, é aquela em que uma senhora vem pela rua com sua sacola de compras e, ao ouvir o samba que rola na quadra da escola, passa a sambar na calçada como uma passista de primeira.
Captar essa interação entre o samba e o ambiente social que o produz é uma das maiores virtudes do documentário.
Outro grande mérito é o de acompanhar os passos de Marisa Monte na tentativa de recuperar composições aparentemente esquecidas.
Com infinita paciência, a cantora conversa com os remanescentes e descendentes da Velha Guarda, puxando de um a lembrança de uma estrofe, de outro a rima de um verso, de outro a história de um refrão.
A cena em que a viúva do grande compositor Manacéa encontra uma gaveta cheia de fitas cassete e letras datilografadas dá ao fato a dimensão de um achado arqueológico, e não é para menos. Há, ali, para usar uma linguagem de samba-enredo, uma riqueza sem igual.
As imagens “atuais” se alternam com material de arquivo e trechos de uma espécie de “making of” do disco que Marisa Monte gravou com a Velha Guarda no final dos anos 90.
É curioso notar, por exemplo, que Monarco se tornou um cantor melhor com a idade, a experiência e a rouquidão. Ou constatar a importância permanente das mulheres: embora não compusessem, eram sempre as pastoras que decidiam se um samba seria adotado ou não pela escola.
O filme, em suma, condensa o que o samba tem de melhor – elegância, sensualidade, paixão –, embalado no manto azul e branco da Portela.