Por Sergio Augusto
Se o Garotinho e a Rosinha falam com Jesus e com Deus a três por dois, por que não posso falar com o diabo? Mais respeito: Diabo. Sim, o próprio: o inimigo cósmico do Todo Poderoso. Vulgo demônio, demo, satã, satanás, capeta, belzebu, exu, tinhoso, anhangá, anhanguera, anjo mau, arrenegado, atentado, azucrim, beiçudo, bode-preto, bute, cafuçu, cafute, caneco, cramunhão, canheta, canhim, canhoto, capa-verde, capiroto, carocho, cifé, coisa, coisa-à-toa, coisa-má, coisa-ruim, contra, coxo, diá, diacho, dialho, diangas, dianho, diogo, droga, duba, excomungado, feio, fute, galhardo, grão-tinhoso, mafarrico, maligno, mofento, moleque-do-surrão, pé-cascudo, pé-de-cabra, pedro-botelho, porco-sujo, rabão, sapucaio, sarnento, sujo, temba, tendeiro, tentação, tentador, tição, tisnado.
Face às ameaças de guerra de Donald Trump e a crise econômica mundial, pensar em Deus talvez seja uma boa, mas a autoridade suprema a ser ouvida na atual conjuntura – a mais abalizada de todas – é mesmo o diabo.
Felizmente não tive de ir à sua residência oficial para entrevista-lo. Tentei encontra-lo em campo neutro. Ou seja, fora do Rio (ele não vem aqui porque não suporta olhar o Corcovado) e longe de igrejas, crucifixos, pastores evangélicos e crentes em geral.
Optamos, afinal, pelo telefone. Detalhe: ele é que ligou pra mim. Não tenho como, portanto, passar para vocês o número do telefone dele. E daí? Se o Garotinho e a Rosinha não dizem pra gente como falar com Jesus e Deus, por que deveria eu me sentir constrangido por não poder dizer a vocês como papear com o diabo?
Antes de mais nada, gostaria de saber como o sr. prefere ser tratado.
Satã não me desagrada, já me acostumei a ele. Mas Lúcifer me parece mais imponente e eufônico. Além de mais lisonjeiro do ponto de vista etimológico. Não sei se você sabe, mas Lúcifer quer dizer “aquele que carrega a luz”. Sou um iluminista. Me chamaram assim por causa de uma confusão com um rei babilônico, citado por Isaías, que tinha este nome.
E de nomes mais corriqueiros, como capeta, por exemplo, o sr. gosta?
De alguns, sim. De outros, não. Diabo e capeta são simpáticos, embora não sejam lisonjeiros – e muito menos imponentes.
Como assim?
Veja bem: Satã vem do hebraico. Significa oponente, acusador. Ao ser traduzido pro grego, virou diabolos, que quer dizer caluniador. Diabo tem a vantagem de ser o mais popular de todos. Nenhuma das expressões que se referem à minha pessoa fala em satã ou Lúcifer, mas em diabo. O pão que o diabo amassou, com o diabo no corpo, como o diabo gosta, diabo a quatro… Nem todas pejorativas, diga-se de passagem.
Sim, mas de qualquer modo sua reputação sempre foi a pior possível. A propósito, o sr. se considera um injustiçado?
Como não?! Sempre me identificaram com o mal absoluto, com as trevas – desde quando me chamava Ahriman. Sou a mais antiga vítima do maniqueísmo de que se alimentam todas as religiões e crenças afins. Ultimamente já andaram me comparando até ao Bin Laden e ao Saddam Hussein!
O seu nome de batismo…
Como?!
Oh! Perdão. Saiu sem querer…
Desta vez passa.
Eu queria me referir ao seu primeiro nome. Ahriman.
Isto. Ahriman transfigurou-se em Pã, na Grécia. É só atentar pros chifres, a barba e o casco fendido. Só virei Satã a partir do Livro de Jó, onde sou tratado como um misto de funcionário celestial subalterno e agente provocador. Já fui tanta coisa, meu filho: anjo a serviço de Jeová, anjo decaído…
Azazel.
Exato. Já fui também Namiar, Ashakkou…
Quando e onde?
Na Babilônia, bem antes daquele rapaz que morreu na cruz nascer. Me usavam pra tudo na Babilônia. Se havia peste, Namiar levava a culpa. Se alguém era atacado por alguma moléstia, rezavam contra Ashakkou. Os babilônios tinham um demônio expiatório para cada tipo de desgraça. Todos eles eram um só: eu.
O sr. não apenas teve, como ainda tem, uma porção de nomes, mas também um bocado de, como direi?, encarnações?
Encarnações antropomórficas e teriomórficas.
É preciso esclarecer aos nossos leitores que o sr. se apresentou para esta entrevista antropomorficamente, ou seja, em forma de gente, não de bicho. Como, aliás, o sr. costuma ser retratado em gravuras e, principalmente, no cinema.
A propósito, você me acha mais parecido com o Walter Huston ou com o Adolphe Menjou?
Pra ser franco, acho o sr. mais parecido com o Emil Jannings. Visto de longe, lembra também o Laird Cregar.
Hum…
E as encarnações teriomórficas?
Ah, já fui quase tudo quanto é animal. Serpente, bode, rato. Até corvo. Inventam tantas coisas a meu respeito, meu filho. Na Idade Média, chegaram a dizer que havia 7.405.926 demônios empregados por mim. Diziam, ainda, que eu tinha uma mulher, sete filhas mortíferas e um avó com 900 cabeças.
O sr. nunca se casou?
Nunca. Mas tive muitas mulheres, muitas mesmo. Você conhece o livro Érotologie de Satan? É de um francês…
Rolland Villeneuve. Comprei um exemplar na Leonardo da Vinci, no início dos anos 60.
É um livro confiável.
E cheio de ilustrações maravilhosas.
Centenas delas! Fiquei sabendo que eu fui mais retratado do que Deus. E por grandes artistas. Giotto, Bosch, Brueghel, Delacroix, Fragonard, Dürer, Goya, Taddeo di Bartolo me pintaram. Você já me viu no Juízo Final do Cranach? Está no Museu de Nacy, uma beleza. Você já visitou a catedral de Orvieto? Lá tem um afresco do Luca Signorelli no qual eu apareço com o maior destaque. Muitos pintores tinham receio de ofender a Igreja dando um rosto a Deus. Como não tenho quem defenda meus interesses na Terra, fui retratado de tudo quanto é jeito. Você se lembra de algum ator que tenha encarnado Deus num filme? Só do George Burns, confere? Eu, não. Eu fui representado por Emil Jannings, Walter Huston, Adolphe Menjou, Gerard Philippe, Alan Mowbray, Rex Ingram, Laird Cregar, Vincent Price, Burgess Meredith, Vittorio Gassman, Al Pacino – por tantos que até perdi a conta.
Muitos escritores importantes também se interessaram pela sua figura.
E como não haviam de se interessar por mim? Dante! Milton! Goethe! Thomas mann! Até Flannery O’Connor! Por falar em Goethe, Mefistófeles é um nome quase tão chique quanto Lúcifer. Você não acha?
O sr. é bem menos citado na Bíblia do que se imagina.
Tenho três passagens no Velho Testamento. Nas duas primeiras, como acusador. Apareço acusando Josué e Jó de egoísmo e falsa piedade. Na outra, eu tento persuadir Davi a desmembrar os filhos de Israel. No Novo testamento minha participação não é muito maior. No Gênese, apareço, teriomorficamente, como uma serpente. Depois, faço aquelas tentações no deserto. Mas isso não quer dizer nada. No fundo, eu estou em quase toda a Bíblia, pois foi para redimir a humanidade dos males supostamente criados por mim que aquele rapaz veio ao mundo para morrer na cruz.
O sr. acredita em Deus?
Claro! Se ele não existisse, eu não existiria.
Aliás, uma corrente de estudiosos das sagradas Escrituras acha que Deus e o sr. seriam uma mesma entidade.
Quem começou essa arenga foram os gnósticos. Segundo eles, eu seria o próprio Jeová, o maligno e tirânico soberano deste planeta eternamente infeliz. Aquele poeta, o William Blake, embarcou nessa. No Evangelho de Paulo, sou comparado a um deus.
Parte das suspeitas se deve ao fato de que o sr. desaparece na hora em que Jó sofre o diabo – ops! – nas mãos de Deus. Estaria ali a prova de que Deus tem duas faces, uma boa, outra má, e esta seria o demônio?
Demônio vem de daimon, que é sinônimo de Deus em grego arcaico. Seis vezes essa palavra aprece na Ilíada e onze vezes na Odisseia. Tais demônios não encarnavam nem o bem nem o mal, eram apenas seres sobrenaturais. Creio que isso deve ter contribuído para aumentar ainda mais essa confusão toda.
O inferno existe?
Existe e é aqui mesmo.
E aquele inferno dantesco com o qual nos ameaçam depois da morte?
Dantesco ele é na obra de Dante e na imaginação dos tolos. O inferno descrito nos Evangelhos, no Apocalipse de João, e que a partir da Idade Média tomou a forma de um subterrâneo horripilante, onde almas penadas são submetidas às mais cruéis formas de tortura física, é puro marketing dos meus desafetos. Se semelhante coisa existisse, não seria obra minha, mas de Deus, a quem reconhecem como Todo Poderoso e juiz supremo de todas as criaturas. Como entender que um Deus, tido como imensamente bom, possa reservar a certos homens semelhante castigo? Além do mais, eterno. Como conceber que os eleitos de Deus se deliciem assistindo do paraíso aos suplícios dos condenados no inferno?
Qual foi, a seu ver, o menos ofensivo dos infernos imaginados pelo homem?
Menos ofensivo é a expressão adequada, pois ofensivos todos eles foram. Do ponto de vista literário, o de Dante é sem dúvida o mais brilhante. Mas é obra de ficção. A imaginação de Bosch também me impressionou. Mas há uma obra de Buonamico Buffalmaco, no Campo santo de Pisa, datada de 1330, que causou uma verdadeira revolução na iconografia infernal. Pela primeira vez, o inferno foi pintado como um espaço fortemente organizado, compartimentado, onde as almas padecem suplícios distintos, de acordo com os pecados capitais por elas cometidos. Os orgulhosos são dependurados de cabeça pra baixo – ou ponta-cabeça, como dizem lá em São Paulo. Os glutões viram churrasco, os invejosos têm a língua arrancada, os luxuriosos são sodomizados por demônios – e assim por diante.
Que provas o sr. dá de que o inferno é aqui mesmo?
Milhões, bilhões, trilhões de provas! De Genghis Khan ao último fanático religioso. De Hitler ao Elias Maluco. A Inquisição foi um inferno. As chamas em Hiroshima não foram ateadas por mim. Calígula, Stálin, Pol Pot, Ceausescu, Papa Doc, Pinochet, estes, sim, foram príncipes das trevas. Isso para não falar do atual presidente norte-americano. Este cheira a enxofre. Comparado à Bósnia de alguns anos atrás ou ao Iraque de daqui pra frente, o inferno é um paraíso.
O sr. leu o Dicionário do Diabo, de Ambrose Bierce?
Nada que o ser humano escreve me é desconhecido.
Quer dizer, então, que o sr. também conhece a biografia que Peter Stanford publicou nos anos 90?
A minha biografia? The Devil? Claro, meu filho. Bem feita, muito erudita.
Mas, e o dicionário de Bierce?
Achei o dicionário divertido. Nem tudo eu definiria daquela forma, mas fiquei satisfeito com a maneira como ele me apresenta, como o principal responsável pela liberação do homem.
Liberação?!
É. Segundo Bierce, ao ser expulso da ordem dos arcanjos, eu teria feito a Deus um último pedido, afinal concedido. Pedi a ele que os homens tivessem o direito de fazer suas próprias leis.
Se o sr. não quer saber do Rio, a quem devemos culpar pelas desgraceiras que se abateram sobre a cidade nos últimos anos?
Aos seus governadores gerais, alcaides e prefeitos.
De todos os ditados envolvendo o seu nome, qual o que mais lhe agrada?
O diabo ri por último.
Riu por último.
Se é por último, o verbo não pode vir no passado. Rá! Rá! Rá! Rá!