Por José Castello
Numa entrevista antiga, Nelson Rodrigues se define como “o homem mais romântico que alguém já viu” e assegura que, desde menino, sonha com o amor eterno. A princípio, fica difícil aceitar essa confissão vinda de um dramaturgo que escreveu sempre sobre temas proibidas, como incestos, adultérios e perversões; e, ainda que se considere que ele tenha escolhido esses assuntos só para deles se livrar, como numa sessão de exorcismo, ou até que os tenha elegido unicamente pelo gosto baixo do escândalo, do sensacionalismo, como vários críticos que não gostam de Nelson já afirmaram, a confissão continua a soar inadequada e estranha.
Sempre empenhado em se defender da fama de libertino, Nelson, uma vez, disse também: “Eu sou uma alma da Belle Époque, quando as mulheres tinham ataque”, e talvez por isso ele tenha desconfiado das feministas, das mulheres modernas, das mulheres em geral, que sempre lhe pareceram traiçoeiras e mentirosas.
Como um freudiano ortodoxo, ele acreditava que as grandes paixões, as realmente românticas, só ocorrem na infância profunda, em torno dos seis, sete anos, e tudo o que vem depois é só contrafação, na qual restam apenas sombras, quase imperceptíveis, do verdadeiro amor. Em consequência, e porque vivia num mundo feito de sombras, cópias, mentiras e pornografia, Nelson Rodrigues foi um homem triste, que se consolava com a escrita e que, escrevendo, produziu uma obra cheia de personagens melancólicos e desesperados.
Foi a tristeza, o desgosto contido sob a máscara do velho digno e cansado, o primeiro sentimento que enxerguei em Nelson Rodrigues, quando, no papel de repórter, tive a chance de conhecê-lo. No meu bloco de perguntas, antes mesmo da primeira delas, eu havia anotado uma frase de Nelson que, eu acreditava, servia para definir tudo o que ele escrevera: “Se eu não escrevesse, seria um desgraçado”, disse ele, mesmo correndo o risco de parecer dramático, ou dominado pela autocomiseração.
Havia uma aflição camuflada em seus escritos, e, desde o início, decidi que essa agonia era o que realmente me interessava, pois é dela que a força da obra se origina. Artistas arrancam sua genialidade de muita dor, e no caso de Nelson, apesar de todos os mitos sujos que o cercavam, não poderia ser diferente.
Nos quadros da Renascença aparecem, frequentemente, aquelas figuras cinzentas, apagadas, desnecessárias, que no entanto desempenham papel fundamental no equilíbrio da cena e que, mesmo acessórias, não podem ser suprimidas, sob pena de todo o cenário desmontar. É o que se passa, por exemplo, no Jardim das Delícias, a célebre tela que Hieronymus Bosch pintou na virada do século XV para o XVI.
Quem for ao Museu do Prado poderá testar se é possível imaginá-la com alguns daqueles personagens fora de seu lugar, ou apagados. Não é. Nenhum deles, provavelmente, é mais importante que o outro, e, mesmo se pararmos um longo tempo diante do quadro, muitos ainda assim nos escaparão, e no entanto a ausência de alguns deles quebraria todo o equilíbrio do conjunto.
Algo semelhante se dá nas relações entre o repórter e seu entrevistado. Ainda que contidas nos limites do protocolo jornalístico, elas guardam aspectos obscuros que na maior parte das vezes nos escapam, mas que estão todo o tempo presentes, agindo em silêncio.
A relação entre o repórter e sua vítima é, ou deve ser, uma relação formal, calcada na clareza, na confiança mútua e na objetividade, e não deve passar disso, mas quase sempre passa. E, quando passa, nem sempre entendemos, nem depois que os anos avançam e a maquiagem desbota, o que se passou, simplesmente porque muitos aspectos ficaram (e ficarão) para sempre perdidos.
Sobrará só a história enigmática, cheia de rombos e de borrões, e, por mais que nos esforcemos em encontrar a palavra adequada, não saberemos sequer lhes dar um nome. É como se as palavras não servissem para nada, e isso irrita muito, mas é a partir desse ponto, quando as ideias feitas se esgotam, que temos a chance de começar a ver.
Foi o que se passou, certa vez, entre mim e Nelson Rodrigues. Esse mim que aqui aparece não se refere exatamente à minha pessoa, já que em meu lugar podia estar qualquer outro repórter; aqui se trata mais do jornalismo e de suas sutilezas que de uma experiência pessoal. Mais uma vez, vejo-me obrigado a ocupar o papel de personagem em um relato no qual, a rigor, eu deveria aparecer como um simples espectador, ou narrador oculto.
É o que ensinam aos repórteres: eles devem se limitar a ver, guardando a devida distância, sem permitir que sua sombra deturpe a realidade que à sua frente se desenrola, e sem ceder a impulsos como a pena, a solidariedade, o desejo ou a paixão. Mas a realidade é maleável, embaralha seus objetos com desdém e com frequência nos transporta para pontos da cena que, a princípio, não nos são destinados.
Digo tudo isso porque não vou relatar esta história para falar de mim, mas de Nelson Rodrigues. No entanto, e aqui está a contradição que quero expor, sou obrigado a falar de mim, já que Nelson, sem que eu o desejasse, sem mesmo me pedir licença, me destinou um pequeno papel, uma ponta modestíssima, em um período tardio de sua existência. E não há melhor maneira de falar de alguém quando, por alguma razão, esse alguém nos inclui em sua vida.
Conheci Nelson Rodrigues no início dos anos 80, o ano em que ele viria a morrer (no dia 21 de dezembro, às oito horas da manhã, por coincidência a mesma hora em que nasci; mas devo afastar esses paralelos pessoais antes que me tomem como narcisista), quando eu trabalhava como repórter na sucursal carioca de Veja.
Algumas semanas antes da estreia daquela que viria a ser última peça, A Serpente, que teve sua primeira sessão no dia 6 de março no Teatro do BNH, no Rio de Janeiro, a revista decidiu publicar um perfil – jargão jornalístico que designa uma breve biografia – do dramaturgo. Como Nelson morava no Leme, na ponta norte da Avenida Atlântica, a missão caberia à sucursal do Rio de Janeiro.
Mesmo sendo um repórter de polícia, ou talvez por isso, já que o teatro de Nelson sempre foi associado à violência e ao escândalo, fui designado para entrevista-lo. A tarefa me encheu de orgulho, mas também de medo, e foi dividido entre esses sentimentos conflitantes, e por isso muito tenso, que o procurei.
Tivemos quatro ou cinco encontros de trabalho. Foram momentos simpáticos, em que Nelson, envaidecido, me atendeu sempre com polidez e uma certa ânsia, que a princípio (às vezes somos realmente muito tolos) me pareceu só cansaço. Sua mulher, Elza, com quem ele voltara a viver três anos antes, depois de uma separação de cerca de vinte anos, para dois outros casamentos fracassados, nos vigiava a distância, sempre com indiferença, e até com uma pequena dose de má vontade.
Eu me esforçava para atribuir essa rejeição à saúde precária de Nelson, que já tinha sido operado de duas úlceras perfuradas, de um aneurisma da aorta, entre um total de doze cirurgias ao longo da vida, tivera um infarto agudo e, quando jovem, sofrera várias recaídas de uma tuberculose. A essa altura, duas enfermeiras se revezavam em seu apartamento do Leme, localizado em um prédio antigo e simpático, e decorado com sobriedade.
Vivámos os momentos derradeiros do regime militar. Nelson era cronista de O Globo, o jornal preferido dos militares, e eu, seu leitor apaixonado desde menino. Um ano antes, seu filho mais velho, Nelsinho, que se engajara na resistência de esquerda ao regime autoritário, recebera a liberdade condicional depois de um longo período de prisão, mas nem assim as esquerdas o poupavam.
Nelson Rodrigues era odiado pelos progressistas, que se compraziam em ridicularizar seus artigos e o tratavam como um conservador desprezível, e pelos reacionários, que viam nele um homem depravado e desprovido de freios morais. Nelson, invertendo as ofensas em elogio, se gabava publicamente da fama de reacionário; em 1977, chegou a publicar um livro, O Reacionário, em que não só reagia, mas encampava o estigma que lhe destinavam, brincadeira reativa que, evidente, exacerbou mais ainda o ódio de seus inimigos. Fazia também questão de chocar, sublinhando a fama de pornógrafo, e, na verdade, sempre adotou as máscaras que lhe destinaram para ridicularizá-las.
Por isso, era uma ousadia de Veja elegê-lo como personagem de capa. Era uma decisão correta. Nelson, o conservador insensível, era também o maior dramaturgo vivo do país. A esquerda preferia Dias Gomes, com suas peças engajadas e aborrecidas, ou Oduvaldo Vianna Filho, mais competente, mais sedutor, mas também muito inferior a Nelson.
A discriminação de que era vítima, o desprezo premeditado tornavam-se odiosos. Nelson era reacionário, sim, embora se declarasse só um democrata, mas era um gênio. A revista vinha apenas reafirmar esse fato, que as pessoas mais atentas, mesmo aquelas formadas nas tradições da esquerda, se apressavam em reconhecer. Mas não era fácil, e, por isso, eu devia me cercar de todos os cuidados. Não sabia se estava preparado; com muitos receios, decidi que não deixaria aquele personagem me escapar.
Nelson Rodrigues viveu quase sempre, mesmo nos longos anos em que esteve casado, na solidão. Preferia atribuir esse estado à sua alma de suburbano, que considerava um estilo de vida, e não pensava duas vezes para dizer que Deodoro, ou Vaz Lobo, obscuros subúrbios do Rio de Janeiro, lhe agradavam mas que Ipanema, o bairro dos boêmios e intelectuais. Isso já era um modo de se isolar, estado que os fatos agravavam mais ainda: orgulhava-se de ser um reacionário, mas, nos anos turvos do regime militar, foi um dos autores mais censurados do país.
Nem esse isolamento ideológico, porém, basta para explicar a origem de sua solidão. Seria muito perverso, também, reduzi-la à solidão indiferente dos velhos. Nelson era quase um septuagenário (estava com sessenta e oito anos), mas, cheio de projetos e conectado ao mundo a seu redor, conservava a cabeça de um rapaz de vinte e oito. Vivia, sim, uma espécie de marginalidade filosófica, pois os tempos eram contrastados demais para aceitar espíritos paradoxais. Além disso, a obra, a essa altura agigantada, parecia agir sobre seu criador e fazia dele um ser incompreensível, provavelmente até para si mesmo.
Na época em que nos encontramos, Nelson era dado a rotinas escrupulosas, essas sim próprias das idades extremas, que ajudavam a amortecer a solidão. Preenchia a solidão falando sem parar, e aqui pode-se entender sua opção pelo teatro, apesar de ser um leitor de novelas, um apaixonado por Dostoievski e Tolstoi, e de ter o sonho, nunca realizado, de um dia escrever um grande romance.
Toda madrugada, sem falhar, Nelson dava um longo telefonema para seu amigo Salim Simão, na época um eminente redator do Jornal do Brasil e um de seus companheiros mais antigos. As conversas podiam durar uma, duas horas, e os dois não se cansavam de falar, falar, desfiando comentários inúteis, críticas azedas, caçoadas íntimas, caçando temas a polêmicas que justificassem ligações tão longas noite adentro.
Os interlocutores noturnos de Nelson variavam: ele podia conversar também com o psicanalista Hélio Pellegrino, com quem travava ásperas discussões sobre a psicanálise e a obra de Freud, que desprezava; ou com o escritor Otto Lara Resende, o sociólogo Gilberto Freyre, o cronista Paulo Mendes Campos. Conversavam sobre tudo, qualquer tema era motivo para divagação, mas depois que desligava o telefone, enquanto os outros, exaustos, iam se deitar, Nelson ia escrever. Hélio, Otto, Gilberto, Salim, além de amigos fiéis, foram também transformados em personagens de suas crônicas – e era pelo telefone que ele se alimentava de ideias.
Todos se atrapalhavam na hora de definir o amigo, e as soluções que encontravam vinham sempre marcadas pelo bizantinismo e pela indecisão. “Ele é um misto de tapuia e de grego”, me disse Gilberto Freyre, tentando encontrar uma fórmula que sintetizasse a figura de Nelson, talvez a mais perfeita que ouvi. “Ele é um búfalo”, definiu Hélio Pellegrino, preferindo uma metáfora mais instintiva. “Ele é um feixe de paradoxos”, contentou-se em dizer Otto, escapando das metáforas e assim se aproximando mais da verdade.
Nelson, de fato, parecia uma dessas figuras do cubismo, em que os vários lados se superpõem e se misturam, e que olhadas de longe parecem monstruosas, quando são geniais. Mas ele odiava Picasso e todos os cubistas, então essa comparação não deve mesmo servir.
Foi Hélio quem me disse o que, aqui, é o mais importante: “Nelson é um obsessivo, um homem que vive passando o pires entre os amigos com uma grande dignidade.” Mas eu, naquele momento, não pude entende-lo e achei que Hélio me dava, apenas, uma boa imagem, carregada pelas tintas da retórica, arte na qual foi um exímio estilista. Antes fosse assim.
Além de mendigar uma companhia que suportasse seus longos monólogos pelo telefone, Nelson ainda exigia que ela estivesse à altura de sua ânsia de falar, pois o que não suportava mesmo eram os homens discretos e quietos. Até mesmo os mais falantes – como Hélio, que parecia ter um ventilador preso ao céu da boca, levando as palavras a girar e girar até o esgotamento, o que não era compatível com a figura de um psicanalista de quem se espera que ouça mais do que fale – terminavam, diante de Nelson, por fraquejar.
Além disso, Nelson, mesmo quando falava dos outros, estava falando de si. “Quando me perguntam sobre meu pensamento, minhas obras e minha ideias, sou obrigado a repetir que me baseei unicamente em mim mesmo”, ele me disse em uma de nossas entrevistas, sem nenhum constrangimento, autorizando essa tese.
Até quando se tratava da obra, descartando influências, ascendências e outras marcas de origem, Nelson estava sozinho, contava apenas consigo mesmo e com sua imaginação fogosa. Sozinho também estava em seu gosto pelas vertigens, pelas situações sem saída e pelas mitologias, o que o levou a dizer, numa receita inadequada aos tempos em que vivia: “Só gosto das mulheres que tem ataques e depois desmaiam.” Um homem assim, tão exigente e desajustado à sua época, só podia preferir a solidão.
Nelson me disse que, na infância, gastava grande parte de seu tempo pensando na morte, e que fugia da escola para ir ao cemitério para assistir, como um aficionado em sua tribuna de honra, aos velórios. A confissão dessa paixão precoce é assustadora, e talvez até seja exagerada, ou mesmo falsa, mas ainda assim serve para esclarecer muitos enganos.
Têm-se o hábito de atribuir a morbidez e o pessimismo de Nelson à morte precoce de seu irmão Roberto, assassinado a tiros por uma amante do pai na redação de A Manhã, estranha substituição que fez o próprio pai, Mário, morrer meses depois de depressão. Ou à morte de seu irmão Paulo, com toda a família, no desabamento de um prédio em Laranjeiras, durante uma enchente.
Mas essa revelação sobre o gosto mórbido da infância revela, ao contrário, que a obsessão pela morte já vinha de muito antes, provavelmente desde o berço, certamente de um ponto nebuloso que se perdeu para sempre mas nem por isso deixou de persistir. E, ao pensar assim, estou apenas dando crédito ao que o próprio Nelson me disse, um dia, sobre si.
Andávamos pelo calçadão de Copacabana, acompanhando o fotógrafo para uma sessão de retratos, quando um menino de seus três ou quatro anos, vendo-o passar com a lentidão de uma nuvem, se aproximou para um afago. “Estou fazendo carinho em mim mesmo”, ele me confessou, enquanto acariciava os cabelos do garoto.
Nelson também gostava de satanizar o mundo, de ridicularizá-lo, o que era outra forma de se conservar sozinho. Em suas crônicas na imprensa, seus inimigos eram ou vítimas de zombaria, ou até transformados em demônios, o que no fundo era a mesma coisa, pois o levava à mesma solidão. Ele ficava acompanhado depois desses personagens, vultos tomados dos outros e transformados em sua propriedade particular, e isso parecia consolá-lo, o que, em se tratando de um escritor, não era novidade.
Nelson dividia entre eles suas aflições, desassossegos, seu desconforto de homem inadaptado ao presente e preso a um passado que na verdade nunca existiu, um tempo que era mais parte de sua imaginação. Será que Nelson gostava dos espíritos severos e virtuosos que, ridicularizando a imperfeição humana, parecia defender? O mais provável é que não. Eu lhe perguntei um dia se ele desejava de fato um mundo equilibrado e casto, habitado só por moças que desmaiam. Ele me respondeu: “Sabe o que eu quero mesmo? Só um pouco de paz.” E em sua face havia um cansaço que parecia milenar.
Sempre imaginamos que os personagens consagrados vivem cercados de admiradores, e também de sujeitos inoportunos, e isso não deixa de ser verdade. Eu mesmo, ao incomodar Nelson Rodrigues para entrevista-lo, confirmava isso. Mas, ao contrário, Nelson estava sempre perdido em seu deserto interior, e de nada servia ser tão solicitado, se não se sentia compreendido. Talvez por isso, em nossos encontros, ele parecesse sempre ansioso.
Essa era, ao menos, a explicação que eu me dava, sem saber de que outro modo justificar aquela inquietação constante que o agitava, levando-o a falar sem parar até tropeçar nas palavras, quando o inseguro deveria ser eu. Tentei considera-la simplesmente como desinteresse e também como ausência de vaidade; criado praticamente dentro do jornalismo (quando ele tinha quatro anos de idade, seu pai, Mário Rodrigues, recém transferido do Recife para o Rio de Janeiro por motivos políticos, iniciava sua carreira de repórter no Correio da Manhã), Nelson conhecia muito bem todas as manhas da profissão e, eu pensava, não devia se impressionar nem um pouco com a performance de um jornalista inexperiente como eu. Depois, tentei apreciá-la como uma espécie de vício – uma maneira de se comportar que, indiferente aos fatos, sempre se repete.
Só comecei de fato a perceber o que se passava depois que a reportagem de capa, com texto final impecável de Jairo Arco e Flecha, foi publicada. Na manhã do domingo em que a revista chegou às bancas, Nelson Rodrigues, cumprindo o roteiro que minha vaidade esperava, me telefonou para agradecer. Eu me surpreendi um pouco com a emoção intensa que o dominava, mas não precisei de muito esforço para compreendê-lo.
Apesar de seu prestígio como dramaturgo, e também da paixão dos leitores comuns por suas crônicas em O Globo, ainda faltava a Nelson, e provavelmente ainda hoje lhe falta, aquele reconhecimento pleno que, de fato, ele merece. Sua emoção vinha, provavelmente, envolvida pelo cansaço, pela decepção e ainda por um tipo muito particular de desespero, que só atinge as pessoas cujas imagens públicas não correspondem às ideias que elas mesmas tem de si; mas, para complicar as coisas, havia também uma indiferença, uma avareza, como se ele quisesse conter aqueles sentimentos só para si, e porque jamais aceitamos que os outros nos rejeitem, ela me incomodou. Ainda assim, havia emoção, e esse, eu pensei satisfeito, era um fecho bastante simpático para nosso breve encontro.
Enganei-me. A segunda parte de meu encontro com Nelson Rodrigues, a mais inesperada delas, e que reputo a mais importante, ainda estava por começar – e ia muito além dos domínios da imprensa. Eu sempre soube que, muitas vezes, as melhores reportagens começam depois de serem publicadas, situação em que o repórter parece condenado à inoperância e ao silêncio.
Refiro-me àqueles acontecimentos que ocorrem só depois – só depois que os fatos já se fixaram em letras, só depois que o repórter desistiu de investigar, não importa se porque se deu por vencido, ou porque se considerou prematuramente vitorioso, só depois que a notícia parece esgotada. São acontecimentos que prescindem do leitor, até o denegam, e assim, na sombra da intimidade, podem de fato tomar corpo.
Nelson Rodrigues me ajudou a entender isso, e essa é uma descoberta que fere a vaidade jornalística, já que desloca o centro dos acontecimentos para a obscuridade. Se agora escrevo esse relato é para inverter essas posições e lançar alguma luz, uma luz tardia, é verdade, sobre o que ficou nas trevas.
Na tarde do mesmo domingo em que a revista chegou às bancas, Nelson voltou a me telefonar. Minha vaidade, sentimento que por mais que o amordacemos está sempre a agir, me levou a julgar, de imediato, que ele telefonava para me repassar elogios de terceiros. “Liguei para saber como você passou o domingo”, ele me disse, para minha surpresa, e ainda tomei esse comentário como uma última gentileza.
Respondi que aquele tinha sido, afora a alegria com a publicação da reportagem, um domingo absolutamente normal. E que alguns amigos haviam me procurado para, entusiasmados, comentar o artigo de capa que eu ajudara a escrever. “E o que você almoçou hoje?”, Nelson me perguntou de repente. Jamais me esquecerei dessa primeira pergunta, que arrastou toda a cauda de perguntas e mais perguntas que vinha logo atrás.
Ainda a entendi como uma delicadeza, talvez um pouco exagerada, mas a cortesia é sempre excessiva, e respondi: “Um assado com batatas”, ou algo assim. “E como estavam as batatas?”, Nelson insistiu, sem me deixar respirar. A vaidade, ainda a vaidade, me fez descrever em detalhes, com a pose de autor, uma receita que na verdade não era minha.
Nelson parecia muito interessado, e julguei, para me aliviar, só para me acalmar um pouco, que a culinária fosse um de seus passatempos. Ainda prometi enviar pelo correio a fórmula completa do assado, feito num molho de cerveja com cravos, o que nunca cheguei a fazer. E me despedi, certo de que ali, sim, tudo se encerrava.
Eu já estava deitado, e ainda gozava a satisfação de ter sido procurado, quando o telefone tocou mais uma vez. “Desculpe se o acordei”, era Nelson novamente. Nesse momento, pela primeira vez, estranhei sua insistência, que me pareceu, mas eu ainda não ousava pensar assim, o início de uma invasão. “É que eu queria saber se você já estava deitado”, ele se justificou, com educação.
Não controlei a raiva, que surgia sem que eu a pudesse reter, e que me parecia uma grosseira, talvez um efeito maléfico do sono, e disse que sim, que estava quase dormindo, em sono profundo, enfatizei. “Então me perdoa”, ele disse, com a elegância que sempre carregava, “e boa noite.” Desligou. E eu julguei que ali, com aquela minha reação destemperada, nosso encontro chegava ao fim, conclusão que parecia me aliviar, mas só parecia, porque na verdade eu a sentia como uma frustação. Sim: eu queria que Nelson continuasse. E, pelo tom de voz, ou por alguma expressão mais entusiasmada, devo ter dito isso mesmo sem desejar dizer.
Naquela noite, meditando no escuro, comecei a refletir sobre a imensa solidão de Nelson Rodrigues. Esse era um aspecto que me escapara por completo em minha reportagem. Toda a minha suposta sensibilidade de repórter, minha capacidade de formular boas perguntas e de saber ouvir as respostas adequadas e em seguida retirar delas novas perguntas ainda mais pertinentes, tudo isso, agora, começava a desmoronar.
Eu agira às cegas: estivera cinco vezes com o dramaturgo Nelson Rodrigues, e a sua paciência me envaidecera, mas fora incapaz de estar com o homem chamado Nelson, e ele agora, sem ter a intenção, vinha denunciar essa falha. A solidão de Nelson Rodrigues, seu isolamento trágico do mundo que nos cercava me escaparam, e agora, que era tarde demais para o repórter, voltaram como um susto.
Eu tentara negar essa solidão me amparando em seu reencontro com Stella, seu amor pelos filhos, seu afeto pelos amigos, sua risada. Um homem que vive assim, cercado de afeto, eu pensava, não pode estar sozinho. Mas não era dessa solidão que se tratava; eu estava apenas confundindo as coisas.
Incomodado, ainda dormi na esperança de que, no dia seguinte, Nelson se esquecesse de mim e que, assim, eu pudesse considerar aquela minha meditação noturna como um exagero que, na verdade, só prenunciava o sono. A presunção, porém, me fazia acreditar (ou desejar, devo admitir) que ele não se controlaria, que voltaria a me procurar mais uma vez, e outra vez, e mais outra, e isso me enchia de satisfação. Satisfação um tanto ambígua, pois havia um medo que era ao mesmo tempo um desejo, e o limite entre ambos era imperceptível.
Havia, ali, um segredo, talvez pequeno, mas precioso, que eu era incapaz de decifrar. Por mais que eu refletisse, não havia – e realmente não podia haver – nenhum motivo do interesse repentino de Nelson por um repórter inexperiente. Só havia um, que era o verdadeiro: a solidão. Mas que solidão era essa? A solidão que cria. Criar – eu não podia escapar dessa ideia que parece fácil e previsível –, criar era estar só.
Não podia imaginar o quanto eu estava certo. Na manhã seguinte, fui acordado por outro telefonema. “Bom dia, você já tomou café?”, Nelson me perguntou, muito animado. Respondi, secamente, que não – e mais uma vez devo confessar que essa afetação odiosa que tomava conta de mim nada mais era que vaidade misturada com vergonha. Era como se eu não merecesse a atenção que ele me dava.
Nelson se desculpou, pois podia perceber que eu ainda estava deitado, e disse: “Vou deixar passar uma hora, depois telefono de novo.” Passada exatamente uma hora, ele cumpriu a palavra. “E o que foi o seu café da manhã de hoje?”, perguntou, com o entusiasmo de uma criança. Já nervoso, eu disse: “Ora, Nelson, café. Café com leite.” Ele, porém, não perdeu a elegância. “Café e o que mais?”, insistiu. Eu ainda tentava me controlar: “Bem, café com torradas, Nelson”, eu disse. “E uma fatia de queijo-de-minas”, acrescentei, tentando ser mais preciso para simular, assim, uma segurança que na verdade eu não sentia.
Quando pareceu satisfeito, Nelson pediu desculpas novamente por ter me acordado, me desejou um bom dia e desligou. As coisas eram simples assim: ele simpatizara comigo e me contemplara com o posto de um de seus interlocutores; mas, pressionado pela distância que nos separava, eu sentia necessidade de complica-las. Eu é que não estava preparado para o presente que ele me dava, presente sim, pois não é todo dia que um rapaz tolo tem a chance de conversar com Nelson Rodrigues. E voltei a me agarrar à esperança, que na verdade era uma manifestação de meu medo, de que ele desistiria. Achei que flagrar-se em uma situação embaraçosa, a de ter me acordado tão cedo, o faria parar. Não parou.
A partir daí, Nelson continuou a me telefonar, regularmente, várias vezes por dia. Era sempre gentil, é justo que eu diga, enchia-me de atenções, de manifestações de amizade e até de admiração. Ora elogiava a reportagem que eu assinara na Veja, ora destacava o modo sereno com que, ele afirmava, eu o tratara durante nossas entrevistas, às vezes detinha-se em considerações informais sobre o tempo, a baixa qualidade de nossos programas de televisão, o calor, ou as vantagens de ter nascido no subúrbio.
“Repórter são sempre afobados, você não”, ele me disse um dia, como elogio. E eu me embaraçava naquele movimento duplo: por um lado, satisfeito porque o dramaturgo mais importante do país (eu já achava isso, e continuo ainda hoje a achar) me elegera como objeto de suas atenções. De outro, assustado com essas mesmas atenções, perseguido pela ideia de que devia haver ali alguma trapaça, uma armadilha que eu não podia perceber e que, por isso mesmo, me intimidava.
Passei a cogitar, inseguro, quais seriam suas razões. Talvez estivesse compondo um personagem inspirado em mim, eu pensei, levando a vaidade ao extremo. Um jornalista, talvez um jornalista tolo com sua fé na verdade ou, o que era pior e mais provável, algum parente próximo da estagiária de calcanhar sujo, aquela repórter raivosa e pouco feminina a quem os fatos teimam em não obedecer.
Essa suposição me levou a vigiar, discretamente, as crônicas de Nelson em O Globo, na esperança, e no temor, de nelas encontrar uma figura qualquer que se parecesse comigo. Não é preciso dizer que não encontrei. Talvez eu estivesse lhe servindo, pensei ainda mais ousado, como modelo para um personagem de teatro. Quem poderia desejar mais? Mas até essa ideia, se me enchia de satisfação, também me angustiava.
Nelson é o escritor dos personagens extremos, em situações limites, amorais, sem máscaras e desprovidos de freios e sensatez. E eles começaram a desfilar, ameaçadores, por minha mente. Pensei no Idiota da Objetividade, com que desafiava a mentalidade pragmática e os dogmas da ciência, no Padre de Passeata e em sua versão feminina, a Freira de Minissaia, que levaram a esquerda à exasperação, na Estudante de Psicologia da PUC, uma figura alvoroçada e tola com que ele ridicularizava as feministas, além do Obvio Ululante, que lhe servia para expressar as verdades incontestáveis, cristalinas, que a mente moderna se recusava a ver.
Mas o personagem que talvez melhor representa o espírito irascível de Nelson, habitante de uma zona sombria situada entre a metafísica e o subúrbio, é o Sobrenatural de Almeida, personagem que está eternamente, a toalha no ombro e a escova de dentes na mão, perfilado em uma fila de banheiro numa casa de cômodos do Irajá.
E o medo se alargava cada vez que o telefone de minha casa soava outra vez. Medo não só do devassamento, mas também daquele sentimento sem nome, constante e irrefreável, que fazia Nelson me procurar com tanta obstinação. E quanto mais os dias passavam, mais Nelson me cercava com seus telefonemas: ligava para saber se eu tinha almoçado, ligava depois do almoço para saber que prato eu havia apreciado mais, ligava no meio da tarde para controlar minha digestão, ligava à noite para saber se eu estava cansado, se pretendia sair, se estava deprimido, se pretendia dormir cedo.
Mais tarde, através de um amigo chegado ao meio teatral, soube que ele não fazia isso apenas comigo, mas que havia outras vítimas. Que ele sempre tinha dois ou três eleitos de plantão, pessoas que escolhia como seus preferidos temporários e que eram, na verdade, personagens tampões de sua imensa solidão.
Nelson se alimentava de nós, não porque fôssemos grande coisa, mas porque ele sim era um grande criador. Nós, os escolhidos, éramos suas criaturas, não como a obra que o escultor retoca, mas como a vítima de quem o vampiro suga o sangue. Nelson, o grego do subúrbio, era também um tapuia: às vezes eu via nele até um pouco de selvageria. Era assim que eu me sentia: assando em seu caldeirão.
Tenso, sentindo-me incomodado com algo que não compreendia e que por isso mesmo me apavorara, passei a não atender os telefonemas de Nelson Rodrigues. Hoje, muitos anos depois, começo a ter uma noção, ainda muito vaga, do quanto perdi.
Naquela época, eu dividia um apartamento no Jardim Botânico com dois amigos, que se empenharam em me salvar. Ainda não tínhamos nem mesmo o conforto, a proteção da secretária eletrônica. Eram tempos mais diretos, sem intermediários, em que a vida estava menos cercada de barreiras e as pessoas se aproximavam com menos temores.
Com o passar dos dias, Nelson passou a ligar menos, cada vez menos, até desistir em definitivo de mim. Eu ouvia meus amigos responderem seus chamados, com as mesmas desculpas programadas de sempre, e me sentia muito mal, mas não estava preparado para outra solução. Nem mesmo desfrutar daquelas atenções transitórias eu me permiti, o que hoje só posso lamentar.
Tratei de ler as peças de Nelson Rodrigues – era a resposta que eu poderia me dar. Quer dizer: que ele poderia me dar. Mas não achei respostas claras, só encontrei mais desencontro e confusão. Nelson Rodrigues tinha o projeto de escrever um grande romance, que nunca realizou, e talvez se possa entender por quê: ele foi um escritor de rompantes, que escrevia aos surtos, e que precisava da realidade para sobreviver, enquanto os romances exigiam um apego radical à fantasia. Levava uma vida reclusa e, por isso, sequioso da realidade, se consolava com o telefone, pois precisava de fatos para viver. Não posso deixar de dizer que chegou o dia em que Nelson Rodrigues deixou de me telefonar. No fim daquele mesmo ano, ele morreu.
Nos anos 70, numa entrevista a O Pasquim, o poeta e crítica Ferreira Gullar produziu uma frase que sintetiza tudo o que os intelectuais sentiam a seu respeito: “Não o leio para não amargar diariamente o suicídio moral de um bom sujeito”, frase reproduzida em minha reportagem de Veja.
Releio hoje essa frase, e nem sei se Gullar ainda a assinaria, ou se foi mesmo dita assim; apesar dessas ressalvas, ela sintetiza, melhor que qualquer outra, toda aquela ira santa que Nelson Rodrigues sempre despertou. Creio que as pessoas continuam despreparadas para suportá-lo e não consigo imaginar como ele sobreviveria num mundo chapado e sem sutilezas como o de hoje.
Ainda me lembro, vagamente, de nossa última conversa. Ele me telefonou para perguntar se eu sentia, às vezes, alguma melancolia. Temendo ser invadido em meu mundo pessoal, vacilante, desconversei, com uma resposta detestável: “Sinto só um pouco, como todo mundo.”
Não se importando com minha evasiva, que provavelmente já esperava, Nelson me falou então de uma antiga vizinha que, nas horas de amargor, se punha a cantar árias de ópera. Estava na área de serviço, debruçada sobre o tanque, esfregando suas calcinhas, e, de repente, súbita como um fantasma, a tristeza aparecia.
Mas não havia depressão que uma boa ária do Rigoletto não solucionasse, e era assim, gorjeando entre espumas e pregadores, que a pobre vizinha se salvava de si mesma. “Tinha a sensação de que um maçarico me perfurava o coração.” Perguntei, envergonhado, que solução ele próprio costumava dar para suas melancolias. Nelson não vacilou em responder: “Se fico triste, escrevo.”
(Publicado no livro “Inventário das Sombras”, de 1999)