Por Isabel Lustosa
Em 1935 Nássara apresentou, em parceria com Ari Barroso, a marcha “Garota Colossal”. A letra desta música diz: “Você é o meu hino nacional / Teu sorriso é uma bandeira / que ilumina a terra inteira / Ó garota colossal”. Esta primeira parte, letra e música, era do Ari. Nássara acrescentou os versos e a melodia dos seguintes: “Por você eu faço tudo / fico cego, surdo e mudo / sou capaz de trabalhar / Eu amarro o sol com a lua / por uma vontade sua / faço o mundo se acabar”. Acontece que o Ari, para dar mais publicidade à música, disse no rádio que tinha incluído na sua parte umas notas do Hino Nacional. Apesar dos apelos de Ari a Filinto Muller, demonstrando que a música usava apenas um compasso do hino, a censura foi implacável e “Garota Colossal” ficou proibida.
Ari Barroso faz parte daquela galeria de personalidades que sempre mereceram a admiração do Nássara. No tempo em que todos gostavam de beber, se encontravam pelos bares. Uma vez, Nássara e J. Cascata estavam em um café ali na esquina da Uruguaiana com a Presidente Vargas, dando os últimos retoques em “História Antiga”, cuja inspiração era ajudada pelo bom uísque (“porque eu sempre fui pobre e atrevido, nunca bebi cachaça”) que ornamentava a mesa, quando chegou o Ari Barroso. Não se impressiona com a música, só tem olhos para a garrafa. É que o Ari estava doente e não podia beber. Pegou o uísque, encharcou o lenço e disse: “Me deixem pelo menos cheirar.” Nássara diz que fez até caricatura com esta história.
“Tem umas piadas dele, assim, pessoais… Uma vez, ele entrou no mictório e estava doente, coitado, com uma dificuldade terrível para expelir a urina e tal, chegou, virou-se assim: “Veja você a que chega um homem! Eu, quando vim para o Rio, pegava e começava, desde ali da praia do Leme: Ari Evangelista dos Santos Barroso… E agora não dá dois pingos! Ele era muito espontâneo, não é? As coisas vinham e pronto.
Era um cara muito engraçado, pessoalmente, o Ari Barroso. Fisicamente ele já era engraçado. Aquela cara, aquela coisa, não é? Personalíssimo. Física e artisticamente. E o Ari foi lutador. Ele fazia tudo. O Ari fez música para carnaval, fez samba de meio de ano, fez samba-canção… quer dizer, ele era um camarada eclético. Foi locutor de futebol. Como em tudo que fez: personalíssimo. Para não fugir à musicalidade inata, usava uma gaita de boca para anunciar os gols. Quando estes eram contra o Flamengo emudecia, num silêncio ensurdecedor. Tocava piano. O Ari ao piano! Um espetáculo! Batucava nas teclas como se fosse tamborim, conseguindo efeito deslumbrante. Polêmico, conquistou por este motivo um grupo de detratores que nunca lhe perdoou o talento indiscutível.”
Além de “Garota Colossal”, Nássara fez ainda mais duas músicas com Ari Barroso: “Dona Helena” (marcha de 1935) e “Chiribiribi quá-quá” (marcha de 1936). Quando em julho de 1939 Ari Barroso estreou no Teatro Municipal o espetáculo “Joujoux e balangandãs”, dele e de Henrique Pongetti, dirigido por Luís Peixoto e patrocinado por Joaquim Rolla, o dono do Cassino da Urca, as músicas, segundo consta na Enciclopédia da Música Brasileira, eram dele, em parceira com Lamartine Babo e Nássara.
Nássara conta que, certa vez, estava tomando um chopinho com Silvio da Fonseca, quando um velho amigo de São Cristóvão chegou. Era o Morais, colega deles na Noite Ilustrada que fora escolhido Rei Momo do Carnaval e estava preocupadíssimo com seu desempenho. O Morais, apesar de Rei Momo, não gostava de samba nem de marcha, achava aqueles ritmos terríveis para alguém com seu peso. Nássara disse logo que o seu problema estava revolvido, pois tinta uma valsa que fora gravada pelo Carlos Galhardo (“que, aliás, é um profissional cem por cento”), com o selo RCA Victor, no ano anterior, e que poderia ser lançada pelo Rei Momo naquele ano de 1941. De fato, conta o Nássara, foi o que aconteceu: “Nós queremos uma valsa”, com orquestração de Pixinguinha, foi oficializada como a música do Rei Momo. Aonde quer que o Morais fosse, ela tocava.
Mas o grande sucesso do carnaval de 1941, e talvez de todos os carnavais daí em diante, foi “Alá-la-ô”, feita em parceria com Haroldo Lobo e gravada por Carlos Galhardo. Nássara, com a generosidade com que costumava homenagear as pessoas de quem gostava, dizia que foi Pixinguinha o “verdadeiro responsável” pelo grande sucesso de “Alá-la-ô”, em virtude da maravilhosa orquestração com que a música foi gravada e chegou às ruas.
“Eu tinha indo à RCA Victor e o chefe, Mr. Evans, me disse que era preciso adiantar a gravação do Alá-la-ô. Quem fazia as orquestrações para a RCA, na época, era o Pixinguinha. Levei a partitura para o imortal Pixinguinha, que residia na rua Chichorro, 84, em Catumbi. Sabe como é o Catumbi, ao meio-dia no verão? O sol chega a fura o asfalto. Encontrei o Pixinguinha de cuecas, no piano, suando por todo lado e mostrei-lhe Alá-la-ô juntamente com uma parte, já pronta para o piano. Apesar de bastante atolado com inúmeros trabalhos, Pixinguinha mandou eu cantar e leu a melodia. Falou-me: Nássara, tudo errado! E rasgou a parte feita para o piano cuja linha melódica não caía perfeitamente. Chamou sua mulher, Geny, e disse: Traga papel de música. Escreveu novamente toda a melodia e fez o arranjo que todos conhecem. No dia da gravação eu e Carlos Galhardo ficamos estarrecidos, Pixinguinha tinha dividido a melodia em compassos marcantes, saltitantes, brejeiros, originais, vestindo-a com roupagem da alma popular. E eu tive uma sorte danada porque Alá-la-ô ficou sendo uma das música mais tocadas no carnaval. Das que fiz, foi a única música que me rendeu alguma coisa.”
Alá-la-ô ô ô, / Mas que calor ô ô. / Atravessando o deserto de Saara, / o sol estava quente / e queimou a nossa cara / Alá-la-ô ô ô. / Viemos do Egito / e muitas vezes nós tivemos que rezar: / Alá, Alá, Alá, / Meu bom Alá, / mande água para Ioiô, / mande água para Iaiá, / Alá, meu bom Alá…
Em 1942, para aliviar o clima pesado da guerra, Nássara e Frazão apareceram com a hilária “Danúbio azul”. A marchinha aludia à valsa de Strauss, mas fazia mesmo piada era com a “derrota de Stanlingrado” dos alemães (o Danúbio) pelos russos (o Volga), geralmente descrita como uma das principais causas da derrocada alemã.
Uma vez um rio valente / quis crescer um pouco mais, / porém encontrou pela frente / quem lhe rasgasse o cartaz. / Danúbio azul, fiau, fiau, / mudou de cor, fiau, fiau, / quis se meter, fiau, fiau, / a lutador, fiau, fiau, / e sobre o Volga, / como um louco, se atirou. / Mas o Volga / não deu folga / e o Danúbio… / azulou… .
Nesta, realmente, Nássara se superou. É demais: vaiar um rio e rimar Volga com folga. Não tem coisa mais representativa do espírito moleque do carioca do que essa música. Segundo Sérgio Augusto, quase que “Danúbio azul” ficou registrada também pela sétima arte. Com interpretação de Virgínia Lane, a música de Nássara e Frazão foi incluída entre os números do filme musicado “Samba em Berlim”, de Luiz de Barros, mas ficou de castigo na sala de montagem, por ordem da censura, que implicou com a cara de Stalin desenhada no cenário.
A. M. E. I (de Nássara e Frazão)
A. M. E. I quer dizer amei, amei / S. O. F. R. I. quer dizer sofri, sofri / Que pena o alfabeto não ter / Letras pra gente escrever / Tudo aquilo que eu senti por ti, por ti. / Eu nunca tive professor / Para me ensinar o verbo amor / Aprendi o ABC do amor / Na cartilha azul do teu olhar. / Quando eu te dei meu coração / Não podia nunca imaginar / Que existisse a palavra ingratidão / Na cartilha azul do teu olhar.