Memória Viva

Nássara, Figueroa, Mário Filho e Nelson Rodrigues

Postado por Simão Pessoa

Por Isabel Lustosa

Quem descreve bem o mexicano Enrique Figueroa é Mário Lago, que o encontrou uma vez no Bar Nacional, na Galeria Cruzeiro. Baixo e atarracado, traços rebeldes de índio que não se deixou dominar pelo conquistador espanhol, Figueroa viveu pouco, tinta 30 anos quando morreu de maneira trágica, dez dias antes do empastelamento de crítica, em 14 de outubro de 1930. Figueroa, junto com Guevara, era quem garantia a qualidade gráfica do jornal de Mário Rodrigues.

“Figueroa tinta uma boa educação, era um rapaz culto, delicado, uma dama, mas vivia com uma mulher, mexicana também, que era horrível. A gente até dizia que ele bebia por causa dela. Mas ele não podia começar: ou ele ficava totalmente distante da bebida, de não poder nem passar por botequim, trabalhando, desenhando, ou então, quando faziam aquela maldade de dar a ele a primeira dose, ele aí ficava sem comer e bebia uma semana inteira, e ficava num estado desesperador. Eu ainda me lembro como se fosse hoje: num aniversário d’A Crítica, ele começou a beber, depois, sumiu. Levou uma surra desgraçada e morreu de espancamento policial. Não foi como político, nem caricaturista, foi porque ele, que era forte pra diabo, sempre que bebia, gostava de brigar com a polícia. Mexicano, sabe como é, cheio de dúvidas: que o mundo está muito mal dividido… (rindo) Aquela coisa, coitado…”

Diz Mário Lago que sempre que ia ter uma recaída o Figueroa se recolhia por iniciativa própria à casa do professor Juliano Moreira. E que, de fato, quando a bebedeira alcançava o auge, “todo seu ódio de anarquista nato se voltava contra a polícia, não encontrando sossego enquanto não armava uma briga com os da farda”. Depois do espancamento, sabendo-se que trabalhava na temível Crítica, do não mesmo temível Mário Rodrigues, que não fazia graça para ninguém, antes que a notícia corresse, foi levado apressadamente para um hospital e, atendido de maneira precária, morreu de tétano. (LAGO, p. 169.)

O próprio Mário Lago foi testemunha do exaltado espírito revolucionário do mexicano. Conta ele que vinha uma vez com Figueroa e Orestes Barbosa, quando um mendigo pediu uma esmola. Orestes levou naturalmente a mão ao bolso no que foi detido por um furioso Figueroa. Não contente de impedir o mendigo de se beneficiar da caridade de Orestes, Figueroa ainda lhe deu uns safanões, berrando: “No pida lismosna. Haga su protesta, hijo de um perro sinverguenza y sin cojones.”

Confessa Nássara que, mesmo sabendo das dificuldades de Figueroa com bebida, não podia ajudar muito, porque também gostava de beber.

“Mas eu sempre fui… engraçado, nunca me viciei. Fiz tudo. Não vou dizer tudo porque… é chato. Mas fiz. Mas acabava e pronto. Uma vez o Di Cavalcante me disse isso: Isso não é vantagem, que eu também fiz e não sou viciado em nada. Quer dizer, é uma sorte, sei lá. Agora, pago. Hoje, muita gente pensa que ainda sou assim…”

Quando se deu a derrocada da família Rodrigues, após o assassino de Roberto Rodrigues, por Sílvia Serafim, Nássara estava lá, numa sala bem vizinha. É o que se pode chamar de testemunha ocular da história. Os episódios que se seguiram estão definitivamente registrados no excelente livro de Ruy Castro sobre Nelson Rodrigues.

Era mesmo de Mário Rodrigues a linha editorial que determinava que Crítica deveria atuar sobretudo em duas frentes: participando de forma intensa do debate político e cobrindo os casos de polícia mais escandalosos, os crimes que faziam tanto sucesso entre o público leitor da página oito do jornal. Nássara acreditava que foi justamente a tal da oitava página a culpada pela sucessão de episódios trágicos que atingiram a família Rodrigues em 1930: a morte de Roberto no final de 1929 foi seguida pela de seu pai, Mário, no mês de março seguinte e, finalmente, pelo empastelamento de Crítica em 24 de outubro de 1930.

“A oitava página era uma espécie de… penetração perversa na vida íntima de certas pessoas. Não sei por que cargas-d’água, o Roberto, não sei se era para treinar um pouco, ele fazia as ilustrações dessa página (ele mesmo, pessoalmente), completamente diferente do traço dele de ilustração. O traço dele era finíssimo, era avançado, todo mundo tinha uma admiração. Ele era um grande desenhista mesmo, mais moderno que o Portinari, naquela época. Se estivesse vivo, estaria numa situação de privilégio. E aquele negócio era mais brutal, mais direto, primário até.”

Roberto levou um tiro de Sílvio Serafim Thibau, em plena redação de Crítica, por conta de matéria injuriosa publicada na página oito em que se faziam alusões maldosas àquela dama da sociedade carioca. Ele morreu na madrugada do dia 29 de dezembro de 1929. Sílvia Thiabau foi mais tarde absolvida. Ruy Castro revela que o autor da matéria fatal, publicada sem identificação de autoria, era o futuro parceiro de Nássara: Eratóstenes Frazão, autor, entre outras, da “Florisbela”.

Na sequência de desgraças que atingiu a família Rodrigues veio o empastelamento de Crítica que se mantivera fiel ao governo Washington Luís. Atacando impiedosamente os responsáveis pela Revolução de 1930, inclusive Getúlio Vargas, o jornal da família granjeou inimizades que contribuíram para o seu fim. Com a vitória dos revolucionários em outubro, a redação da Crítica foi incendiada.

“Com a morte do Roberto, o Dr. Mário começou a beber o triplo do que já bebia. Ele, que já era uma pegada dura, com esse fato a martiriza-lo, então… Daí, foi embora tudo: Crítica acabou e a gente teve que correr. Eu corri uma vez, na rua, tive que correr… Palavra de honra. Distraído como sempre fui, quase me aproximando da área dos imbecis, não é… (risos) Estava na Galeria Cruzeiro conversando, passou um crioulo que me conhecia, tinha raiva de mim… Aquele trabalhava n’ A Crítica!… Daqui a pouco, eu senti que eles vinham correndo atrás de mim, eu entrei pela Galeria Cruzeiro e me livrei. Estavam pegando na rua.”

Nássara foi um dos que ficou desempregado com o fechamento de Crítica naquele ano de 1930. Começou a pegar uns biscates: amigo do peito de Rubem Gil, dava-lhe uma ajuda no jornal Radical. “Nesse tempo eu podia ficar pela rua conversando, fazendo música, o que fosse, mas às 6 horas ia lá, e preparava a primeira página para ele.”

O Radical (também, com esse pelo nome!) não durou muito, e Nássara acompanhou o que restava da família Rodrigues para o recém-criado O Globo. Sua função era paginar e fazer bonecos para a seção de esportes que então ganhava importância nos jornais, graças, sobretudo, a Mário Rodrigues Filho, que daria mais tarde o seu nome ao estádio do Maracanã. Apesar de conseguir empregar todos os irmãos e até alguns amigos como o Nássara, o salário era modesto e Mário Filho resolveu tentar a sorte criando um outro jornal.

“Mário Filho fez amizade com o jovem Mário Martins – na época apenas filho do proprietário de uma farmácia no Estácio, mas que seria futuramente senador –, que lhe arranjou dinheiro para montar um jornal, o Mundo Esportivo, que apesar de não ter obtido sucesso algum, deixou uma página importante na cultura brasileira, mais especificamente carioca, ao inventar o concurso entre as escolas de samba, hoje internacionalmente conhecido. (…) A redação de Mundo Esportivo ficava numa única sala da rua Miguel Couto e todos os funcionários cabiam nela. Mário Filho levava com ele Milton, Nelson e Joffre. Teria também levado Guevara, se este não tivesse voltado para Buenos Aires depois do empastelamento de Crítica.” (CASTRO, p. 118.)

Na falta do Guevara, Nássara tornou-se o paginador do novo jornal. Naquele tempo, jornal de esportes tinta vida curta: só durava o período em que os clubes jogavam; quando acabava o campeonato, o jornal não tinta como sobreviver. E o primeiro número do Mundo Esportivo saiu justamente no fim do campeonato carioca de 1931, vencido pelo América. Um dos repórteres, Carlos Pimentel, muito ligado aos sambistas da Estácio, foi quem deu a idéia salvadora: por que o jornal não promovia um concurso entre as escolas de samba? As escolas já desciam para a Praça Onze informalmente. Faziam ali uma espécie de concurso, igualmente informal. Mas ainda eram muito malvistas pelo Rio elegante.

“Numa dessas incríveis fatalidades do destino, contra e a favor, tinta lá um rapaz , que já vinha do tempo d’A Crítica, chamado Carlos Pimentel. Esse Pimentel vivia no Estácio. Era daquele tipo de repórter que não redigia, mas trazia histórias de sambas: Joel Silva… os grandes do Estácio, que ainda não eram grandes na época. Na Mangueira já tinha o Cartola e o Gradim, no Estácio já tinha Ismael Silva, enfim, nomes de sambistas que faziam o carnaval na Praça XI. O Maciste, o Cartola e o Gradim ainda não tinham gravado. Enfim, grandes sambistas que faziam o carnaval na Praça Onze mas eram praticamente inéditos: o resto do Rio de Janeiro desconhecia a existência deles. Quem os conhecia realmente era o Pimentel que ia ao Estácio, ao Rio Comprido, para saber o que já havia de samba nas escolas. Já havia blocos que usavam o nome de escola. Então, o Mário Filho (um bom jornalista, bom mesmo), sentindo que o negócio ia fechar porque estava próximo do carnaval, teve a ideia de fazer um concurso entre elas e exigiu que tivesse um regulamento, como em todo concurso. E o Pimentel foi quem determinou: tantos pontos para a evolução, tantos para a porta-bandeira, tantos para bateria, para harmonia etc. E houve o concurso, patrocinado por um jornal sem tostão, não tinha nem dinheiro para fazer um coreto para os jurados ficarem.”

Mesmo assim o primeiro concurso de escolas de samba foi um sucesso. Num coreto armado na Praça Onze, o júri formado, entre outros, por Álvaro e Eugênio Moreyra, Orestas Barbosa, R. Magalhães Júnior e Herbert Moses (que estava em todas, não é?), elegeu a Mangueira como a melhor escola. Mas o samba vitorioso foi o da Portela, que então ainda se chamava Oswaldo Cruz. Bem no espírito da poesia popular do tempo, seus primeiros versos diziam: “Lá vem ela, chorando, / O que é que ela quer. / Pancada não é, já dei. / Mulher da orgia, quando começa a chorar, / Quer dinheiro, dinheiro não há!”

A manchete de O Mundo Esportivo anunciando o desfile é de Nelson Rodrigues. Criada para caber no cabeçalho do jornal e paginada por Nássara, tem um ritmo e uma poesia que o tempo demonstrou serem permanentes. E até o próprio Nássara teve de reconhecer que Nelson não era só o irmão menos esperto de Mário Filho.

“Eu paginava o Mundo Esportivo, tinha que fazer o “alto”, quer dizer, nem era manchete, era o “alto”: duas linhas de corpo 96. O Mário Filho ordenava: “Nelson, faz logo, tem que ir para o Nássara já.” E o Nelson botava uma xícara de café e jogava cinza em cima e escrevia: A alma sonora dos morros descerá para a cidade. São duas linhas mesmo. Eu ainda tive que contar letras. Era um talento puro.”

Mas foi o único elogio que dedicou a Nelson Rodrigues, enquanto não se cansava de falar da sua admiração imorredoura por Mário Filho. Dizia até que o Mário tinha um verdadeiro talento premonitório para a música popular: Nunca teria errado, dizendo com uma precisão incrível as que viriam a fazer sucesso. E garantia: Mário previra o sucesso que teriam “Balzaquiana” e “Mundo de zinco”.

“Eu trabalhava com o Mário Rodrigues Filho na seção de esportes, fiquei muito amigo dele e o admirava. O Nelson era da minha idade, eu convivi muito com ele, era um camarada difícil. O Mário, não. O Mário foi um grande jornalista mesmo. Mas, você vê, o outro acabou herói nacional. Para mim foi uma surpresa esse sucesso do Nelson. Por quê? Por causa desse menino que escreveu o livro sobre ele, Rui Castro. Esse cara deu muito mais ao Nelson do que o Nelson a ele.”

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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