Por Sergio Augusto
A nostalgia não é mais o que era. Quando, nos anos 197o, a atriz Simone Signoret teve o lampejo de dar esse espirituoso título a seu livro de memórias, a nostalgia, ao contrário do que ela acreditava, ainda era o que havia sido. Basicamente porque, além e aquém das guerras e demais flagelos do passado, ainda restava uma abundância de coisas boas e gente muito especial para serem recordadas. Hoje até as décadas de 1970 e 80 só provocam suspiros em quem delas é capaz de se lembrar.
Ok, não havia internet, outros acrescentariam o celular e até o Viagra, mas tantas e tamanhas são as evidências da piora geral (cultural, social, econômica, ambiental etc), que eu me pergunto do que sentirão falta os futuros saudosistas. O que suas madeleines irão deflagrar? Ou melhor, o que lhes restará de inolvidável para remoer com saudade, orgulho e deleite?
Praticamente nada. E não estou pensando em Trump e outras calamidades estrangeiras, mas exclusivamente no Brasil da desigualdade social escandalosa e da violência institucionalizada (uma em cada cinco chacinas cometida por policiais), do desemprego em massa, do Brasil usurpado por milicianos e contaminado pelo ódio, pela ignorância soberba, pela desesperança ressentida, do Brasil assaltado por um bando de fanáticos religiosos, terraplanistas e inimigos declarados da ciência, da cultura, dos pobres e dos índios.
Nem sequer com as dádivas da natureza, em acelerado processo de deterioração, podemos mais contar. Perdemos o protagonismo internacional de alguns anos atrás, notoriamente nas discussões e programas ligados à sustentabilidade, desdouro algum se, ao invés de coadjuvantes, não tivéssemos virado vilões da destruição ambiental. Mais do que vilões, tomamo-nos alvos de chacota mundial, graças ao que dizem e fazem o presidente e o núcleo doidivanas de seu ministério.
Levantei a questão da nostalgia numa roda de amigos, e um deles respondeu: “Eu já estou até sentindo saudades do governo Collor, imagina.” Todos apenas riram. A que patamar descemos.
E porque descemos abissalmente em quase tudo (inclusive no futebol) e fazia, justo naquele dia, 80 anos da primeira gravação de Aquarela do Brasil, mítico fundador do gênero samba-exaltação, ápice do ufanismo em nossa também decadente música popular, alguém levantou outra questão procedente: se ainda existisse samba-exaltação, o que o Ary Barroso de hoje exaltaria?
Para começar, não poderia comparar o Brasil a um “mulato inzoneiro”. Mais do que politicamente incorreto, passível de enquadramento na Lei Afonso Arinos, embora pouquíssima gente saiba o que significa inzoneiro (sonso, enganador), já em desuso quando Ary Barroso pintou sua utópica aquarela. O próprio Francisco Alves, o primeiro a gravar o samba, ignorava seu significado, talvez porque a tenha registrado como “linzoneiro”.
As feministas poderiam implicar com a “morena sestrosa de olhar indiscreto”; mas o calcanhar de Aquiles do samba é a estrofe que proclama o verde que o Brasil dá, “para o mundo admirar”, comprometida pelo desmatamento e incêndios na Amazônia e em outros verdes que o mundo aprendeu a admirar, e o governo Bolsonaro e seu ministro do meio ambiente se apressam em agronegociar e, por via de consequência, destruir.
Palavras, em tom de queixa, de um pecuarista paraense, suposto beneficiário das políticas ambientalistas do atual governo: “Bolsonaro inflamou o desejo pelo desmatamento”. Que, diga-se, cresceu 66% em julho. Sem contar as dantescas queimadas, que provocaram indignação mundial, a suspensão de verbas para o Fundo Amazônico por parte da Alemanha e Noruega, e renderam vários apelidos ao presidente, entre os quais “Bolsonero” (apud Marcelo Rubens Paiva) e “Dragão da Maldade” (apud Aroeira).
Ao culpar as ONGs de atear fogo em nossas matas, outro epíteto lhe cairia bem: “Bolsonóquio”.
Mas voltemos à octogenária aquarela do Ary. Tirantes a mulata sestrosa, o Rei Congo, a “Mãe Preta do Serrado” e a “Sinhá Dona” que arrasta pelos salões o seu vestido dourado, o Brasil que nela predomina é o da natureza exuberante, selvagem, de fontes murmurantes e matas sem fim. Nisso Ary manteve-se fiel à edenização da paisagem estabelecida pelos colonizadores portugueses, teorizada por Sérgio Buarque de Holanda em Visões do Paraíso, e deu a tônica ufanista aos sambas-exaltação que em seu rastro logo surgiram e fizeram de Francisco Alves seu menestrel de plantão.
Brasil, “continente a caminhar”, “onde o azul é mais azul”, proclamavam os versos de David Nasser para o samba de Alcyr Pires Vermelho, lançado meses depois de Aquarela do Brasil e acusado de plágio por Ary. A hipérbole do “azul mais azul” seria retomada por Braguinha em Onde o Céu é Mais Azul, também de 1944, tonitruante propaganda das riquezas vegetais e minerais deste “país grande e sem fim”, de um “povo bom e tão feliz”.
Os “saborosos cambucás” são de outra e menos antiga exaltação, Olhos Verdes, de Vicente Paiva, lançado em 1950 por Dalva de Oliveira, celebração da mulata e da cadência do seu andar, réplica mimética dos “requebros e maneiras das palmeiras esguias e altaneiras”, e de seus olhos da cor do mar e da cor da mata.
O samba-exaltação surgiu e floresceu, paradoxalmente, numa época imprópria ao seu cultivo. Em 1939, a Europa se preparava para uma guerra mundial e o Brasil vivia sob a ditadura do Estado Novo. Mas, apesar de tudo, havia muita esperança por estas bandas, de resto justificada, pouco depois, pela derrota dos nazistas e o fim da ditadura. Bons tempos aqueles.