Considerado o primeiro ritmo musical do Terceiro Mundo a ter repercussão mundial, o reggae surgiu em uma ilha do Caribe, a terceira maior da região, com uma extensão territorial de aproximadamente 11 mil km² – tamanho equivalente à metade do território do estado de Sergipe. Na ilha, que está relativamente próxima de Cuba, do Haiti e das Ilhas Caymans, vivem cerca de 2,9 milhões de pessoas, 90% descendentes de africanos. Desde o século 16 até meados do século 20, a ilha foi submetida às políticas exploratórias do sistema colonial. A população nativa, composta pelos índios Arawak (Taino), chamava a ilha de “Xaymaca” (“Terra dos Mananciais”), e tal denominação foi a única herança que deles restou.
Cidade mais populosa do país, a capital da Jamaica se chama Kingston e tem aproximadamente 670 mil habitantes. Localizada na costa sudeste, Kingston é o centro cultural e econômico do país. A cidade é conhecida por sua mistura única de influências culturais, refletidas na música, arte e vida cotidiana. Kingston serve como um hub para a ilha, conectando as áreas rurais e urbanas da Jamaica. Além disso, é um ponto de partida ideal para explorar outras regiões da ilha, graças à sua localização estratégica. Nas proximidades de Kingston, você pode visitar cidades e atrações como Spanish Town, a antiga capital da Jamaica, que fica a apenas uma curta viagem de carro. Outro destino próximo é Port Royal, conhecida por sua história como um importante porto durante os tempos dos piratas no Caribe.
A ilha foi “descoberta” por Colombo em 1494 e ficou sob domínio espanhol até 1660, quando foi tomada por piratas ingleses como Harry Morgan, mais tarde feito governador da nova colônia. Relegada a ser mais um simples fornecedor de cana-de-açúcar e outras matérias-primas, a Jamaica foi, durante 250 anos, um dos muitos destinos dos africanos tirados à força de suas terras para trabalhar nas plantações do Novo Mundo. A grande maioria veio da costa ocidental do continente negro, de etnias como a dos Ibos, Coromantee, Hausa, Mandingo, Nagô e Yorubá. Os dois últimos povos também foram a origem de grande parte da mão-de-obra escravizada trazida para o Brasil.
As tradições destes povos foram preservadas na Jamaica atual em comunidades como a nação Bongo, no leste da ilha, e entre os Maroons. Segundo o historiador Richard Price, a palavra maroon é variante do francês marron, que por sua vez deriva do espanhol cimarrón, termo provavelmente adaptado da língua dos índios Arawak (Taino), povo que habitava as ilhas caribenhas na época de seu descobrimento pelos europeus. Aplicava-se a princípio a palavra cimarrón para referir-se ao gado que fugia para os morros e se tornava selvagem. O significado inicial ampliou-se para incluir, primeiramente, o índio que escapava do domínio do colonizador espanhol e, a seguir, o escravo africano que fugia sozinho, unia-se a bandos de outros fugitivos, ou integrava comunidades isoladas e independentes.
Richard Price denomina os agrupamentos maiores e mais estáveis de “maroon societies”, sociedades economicamente viáveis e politicamente organizadas à margem do poder colonial. Como no caso dos quilombos brasileiros, há evidência de pluralidade étnico-racial nesses grupos, que foram integrados primeiramente por escravos fugitivos ou livres, mas receberam também brancos, índios e mestiços. Ainda hoje, as comunidades Bongo e Maroon se dedicam a práticas religiosas chamadas por lá de kumina ou pocomania, parecidas com as que temos nas crenças afro-brasileiras, como o candomblé e o tambor de crioula.
No entanto a influência puramente africana na Jamaica é mais remota porque lá o tráfico de escravos foi abolido mais cedo, em 1807, enquanto que as colônias espanholas do Caribe, como Cuba, continuaram a receber novos escravos até 1860. Mesmo assim a música que vinha de seus tambores teve uma influência direta sobre o reggae, como pode ser ouvido em canções como “Rastafari Is”, de Peter Tosh, ou no canto tradicional “Rastaman Chant”, gravado pelos Wailers no álbum “Burning”. As canções tradicionais têm o formato de chamado-e-resposta, base de todos os estilos de música negra. A música popular europeia, na forma das quadrilhas e canções trazidas pelos ingleses, e os instrumentos trazidos por estes, como a rabeca, também teve um papel importante na evolução musical jamaicana.
No início do século 20 grande parte da população jamaicana era composta de camponeses descendentes de escravos, que mantinham viva a cultura dos povos africanos no que restara dos antigos agrupamentos maroons. Foi nessas comunidades que surgiu o “mento”, um estilo musical que unia a cultura africana, nítida nos cantos de chamada e resposta e nos tambores que faziam a percussão, junto com elementos da música europeia trazidos pelos colonizadores ingleses e espanhóis. Muito similar ao calipso – ritmo que teve origem na ilha de Trindad –, o mento se tornou a típica música rural da Jamaica. Suas letras contavam histórias ou retratavam o cotidiano no campo. Os instrumentos utilizados eram, principalmente, o saxofone e a flauta de bambu, violão, banjo, tambores e também a marímbula, conhecida na ilha como “rumba box”.
Ainda no começo do século, muitos camponeses começaram a deixar a vida rural para tentar ganhar a vida nas cidades, como a capital Kingston, levando o mento consigo. A partir daí surgiram as primeiras gravações e a indústria fonográfica jamaicana começou a caminhar. Diversos artistas destacavam-se nas rádios e nos festivais, como Sugar Belly. Foi na região urbana que o estilo foi se transformando aos poucos, ganhando influência de outros ritmos, principalmente o jazz. Por volta de 1950 a diáspora dos moradores do campo aumentou e o mento, que falava principalmente sobre as dificuldades da vida rural, foi perdendo popularidade. Junto disso, o rhythm & blues (R&B) vindo dos EUA conquistou o público jamaicano, que procurava por algo mais dançante.
Mesmo com a decadência, o mento é muito influente na Jamaica. Sua levada serviu de inspiração, principalmente, para os artistas de reggae que vieram em seguida. Até hoje existem grupos musicais que ajudaram a manter o estilo vivo através das décadas, entre eles o Jolly Boys, que chegou inclusive a gravar um reggae com Lee Perry, a bela “Conscious Man”. A versão mento deles para “Rehab”, de Amy Winehouse, pode ser vista no YouTube. É realmente emocionante observar aqueles senhores com mais de 70 anos demonstrando uma vitalidade e uma competência musical fora do comum. A grande contribuição do mento foi impulsionar a criação da indústria fonográfica jamaicana, já que os primeiros discos lançados por lá foram desse estilo.
A popularidade do R&B na Jamaica fez com que instrumentos de bambu e o banjo fossem aos poucos sendo deixados de lado. Muitos artistas da ilha também começaram a se aventurar nesse novo estilo, deixando a música jamaicana mais americanizada. Porém, no início da década de 60, o DJ Prince Buster juntou a música vinda dos Estados Unidos com elementos que ele havia escutado em rituais rastafári. O resultado foi a música “Oh Carolina” (que teve uma versão ragga que estourou mundialmente na voz do rapper Shaggy) e o surgimento de uma nova febre na Jamaica: o ska. Era o início de um movimento de revalorização da identidade cultural da ilha, que chegaria ao auge em agosto de 1962, quando a Jamaica conseguiu oficialmente se libertar da sua condição de colônia inglesa.
O jornalista e escritor Steve Barrow, autor do estupendo “The Rough Guide To Reggae” (“Guia Básico do Reggae”), chamou o ska de “declaração de independência musical jamaicana”, um estilo que nasceu ligado ao período de grande entusiasmo e afirmação dos valores culturais locais. Ao mesmo tempo que os discos de rhythm & blues ficavam cada vez mais difíceis de se encontrar, a Jamaica fervilhava de talentos musicais. O novo ritmo começou a surgir espontaneamente e apesar de muitos disputarem o título de “pai” do ska, como Prince Buster, Clue J, Coxsonne Dodd e outros, ele foi na verdade uma criação coletiva, como costuma acontecer nesses casos.
Primeiramente, o ritmo conquistou os guetos e em pouco tempo já era febre nas dancehalls de toda a ilha. Com uma levada dançante, o ska tinha uma forte presença dos instrumentos de sopro, como o trombone e saxofone. As bandas, inspiradas nas big bands americanas, eram compostas por um grande número de músicos, que viajavam pela ilha fazendo shows em rádios e dancehalls. Uma que recebeu grande destaque foi a Skatalites, chegando a gravar com nomes que fizeram muito sucesso posteriormente, como Jimmy Cliff, Peter Tosh e Bob Marley.
O ska virou uma febre e a indústria fonográfica jamaicana trabalhava a todo vapor. A grande maioria das músicas eram escritas e gravadas em uma tarde, para à noite serem tocadas nos bailes. Esse processo fez com que os artistas focassem em gravar compactos ao invés de discos inteiros e o baixo poder aquisitivo dos jamaicanos não permitia que eles comprassem o que era gravado. Junto a isso, nenhuma grande gravadora investia no mercado jamaicano fazendo com que o público ficasse preso ao nicho das pequenas gravadoras existentes na ilha.
Com a Jamaica independente, muitos jovens passaram a emigrar para a Inglaterra em busca de empregos. Os “rude boys”, como eram chamados os jovens marginalizados da época, apresentaram o ska para a classe operária inglesa, criando a segunda fase do ska. Um dos principais grupos responsáveis por difundir o ska em terras britânicas foi o próprio Skatalites. O ritmo caiu na graça dos ingleses, a partir daí começaram a surgir diversos grupos interracias, sendo o principal deles o The Specials.
Os jovens operários ingleses adotaram o estilo dos rude boys jamaicanos, usando roupas inspirada no visual dos gângsteres de filmes americanos, e também passaram a frequentar bares e danceterias de música negras. Foi a partir dessa fusão que o surgiu o movimento skinhead, que na sua origem não pregava segregação racial e ideologias fascistas. Já na música, o ska influenciou o punk inglês, principalmente no início dos anos 70. Muitas bandas, como o The Clash, começaram a utilizar melodias típicas jamaicanas em suas composições. Essa mistura de culturas da segunda fase do ska ficou conhecido como 2 Tone Ska, nome derivado da gravadora 2 Tone, do tecladista do The Specials, Jerry Dammers.
Mais recentemente o ska passou por sua terceira fase, que ficou marcada pelo reconhecimento mundial. Um bom exemplo disso foi o surgimento do ska punk, que teve seu auge no final dos anos 90 e início dos anos 2000. Bandas como Less Than Jake, Rancid e Goldfinger uniram a batida punk, muito popular entre os jovens dessa época, com os típicos instrumentos de sopro e ritmo do ska jamaicano.
O surgimento do reggae e a internacionalização do som da Jamaica
Com a alta demanda por novos sons provocada pelo ska nos anos 60, os DJ’s e donos de dancehalls jamaicanas estavam sempre à procura de algo novo que pudesse animar as festas, dando espaço para novos experimentos que proporcionaram a criação de um novo estilo musical. O rocksteady é o que mais temos de parecido com o reggae atual. Um dos primeiros registros desse ritmo surgiu quando o músico Hopeton Lewis sugeriu que diminuíssem o bpm (“batidas por minuto”) de um ska para que assim a métrica da sua letra se adequasse à batida. O resultado disso foi a música “Take It Easy”.
Muitos fatores são discutidos para explicar a evolução e popularidade do rocksteady. Um deles, é de que os instrumentistas de ska estavam ficando insatisfeitos com a baixa remuneração e alta demanda por música, abrindo espaço para novas influências. Os metais deram espaço à guitarra e ao baixo, vindos do rock & roll e do blues, e os vocais passaram a receber mais destaque. Os jovens jamaicanos logo se identificaram com o ritmo, principalmente pelas letras, que falavam sobre o cotidiano da vida urbana na Jamaica, que se industrializava rapidamente. As primeiras canções tinham como principal tema os rude boys, aqueles mesmos responsáveis por difundir o ska na Inglaterra.
Foi no auge do rocksteady, no ano de 1966, que Bob Marley retorna dos Estados Unidos e junta novamente sua banda, o The Wailers. Nessa mesma época, a religião rastafári se difundia entre os jovens jamaicanos, por conta da visita de Estado do imperador da Etiópia, Haile Selassie. Nessa época, existiam vários músicos e bandas produzindo rocksteady, inclusive o grupo de Marley. A verdade é que a Jamaica passava por um intenso processo de experimentação musical, com cada vez mais novos elementos sendo testados e a música jamaicana foi se transformando aos poucos.
Tais experimentos vieram junto com uma nova leva de músicos talentosos, como Earl “Chinna” Smith, Max Romeo e Aston “Familyman” Barret. As principais mudanças feitas por eles foram destacar ainda mais guitarra e bateria, deixar o baixo menos melódico e mais pulsante e mudar a forma de cantar. As letras começaram a soar mais ásperas e o canto acompanhou a mudança. Isso foi um reflexo dos protestos e reivindicações da população, na época, que sofria, principalmente, com a pobreza e o desemprego. Essas mudanças fizeram surgir o “roots reggae”, ou reggae raiz. Uma das teorias sobre o surgimento do nome reggae é que essa seria a onomatopeia do som feito pela guitarra nas canções.
A desigualdades social, o crescimento do rastafarianismo e a empolgação de uma recém independente Jamaica foram a combinação perfeita para transformar esses músicos em porta-vozes das comunidades pobres. As primeiras canções nesse novo estilo, como “People Funny Boy”, de Lee Perry, e “No More Heartaches”, dos Beltones, deixavam claro o sentimento de abandono das pessoas pobres que viviam na ilha.
Dentro da Jamaica o reggae já havia se consolidado, porém ainda precisava ganhar o mundo. Os primeiros passos para a internacionalização do estilo se deram com as comunidades jamaicanas em outros países, principalmente a inglesa, que já havia formado uma forte base de entusiastas do ska. Porém, foi no início da década de 70 que o maior nome do reggae surgiu para o mundo e se tornou responsável por divulgar o estilo.
Bob Marley e sua banda, o The Wailers – que contava com outros grandes nomes da música jamaicana, como Peter Tosh e Bunny Wailer – já tinham pelo menos sete anos de estrada e estavam estabelecidos na Jamaica, porém buscavam o mundo. O grupo começou fazendo uma turnê na Inglaterra, onde conheceram Chris Blackwell, dono da gravadora Island.
Esse encontro proporcionou ao The Wailers um contrato com a gravadora e logo começaram a produzir um novo disco. O foco deste trabalho era claro: conquistar o público do rock. Para isso, primeiramente, eles gravaram o álbum como uma unidade, diferente do que era feito na Jamaica, onde a maioria deles eram coletâneas. Músicas como “Stir it Up”, de Marley, e “Stop That Train”, de Peter Tosh, foram regravadas para poderem se adaptar à nova proposta. As músicas também ficaram mais longas e mais “limpas”. O baixo perdeu destaque e a guitarra foi ressaltada, junto disso foi adicionado teclados e uma percussão básica. Toda essa mistura deu origem ao disco “Catch A Fire”, um marco para a história do reggae.
Essa nova pegada ficou conhecida como “reggae internacional” e é a principal inspiração para muitos artistas que surgiram posteriormente ao redor do mundo. Entretanto, parte da adaptação para os padrões mundiais foi mudar o nome do grupo para “Bob Marley and The Wailers”, assim destacando Bob como o líder e vocalista principal, já que o formato com três cantores era considerado ultrapassado para os produtores da época. A mudança não agradou Peter Tosh e Bunny Wailers, que deixaram o grupo e focaram em sua carreira solo.
O sucesso de Marley foi estrondoso e sua morte, em 1981, foi muito sentida. Seu legado foi passado para as novas gerações ao redor do mundo, que buscam espalhar os ensinamentos do reggae e manter o estilo vivo, adicionando novos elementos para acrescentar ainda mais na sua musicalidade. É comum vermos novos grupos que utilizam uma pegada mais eletrônica e moderna, mas também há os mais saudosistas, que focam nos tambores rústicos da percussão e em instrumentos de sopro para não perderem as origens do reggae roots.
O movimento rastafári desafia a Babilônia
Cerca de 100 mil pessoas celebraram com grande entusiasmo quando o avião que transportava o imperador etíope Haile Selassie pousou no aeroporto de Kingston, na Jamaica, em abril de 1966. Para a grande maioria dessas pessoas, Selassie era um Messias, um salvador, herdeiro direto da chamada “dinastia salomônica”: os supostos descendentes da união entre o rei Salomão de Israel e a rainha de Sabá. Muitos dos que chegaram ao aeroporto também faziam parte de um pequeno movimento religioso que tinha sido perseguido por décadas pelas autoridades coloniais britânicas e depois pelas autoridades jamaicanas.
Para se identificar, o movimento usava o primeiro nome de Selassie antes dele ser coroado imperador – Tafari –, com o prefixo “ras” na frente, que significa “príncipe”, ou seja, Rastafari. “As boas-vindas foram muito impressionantes, foi algo que nunca foi visto na história”, diz Ras Igie, membro do movimento rastafári e morador de Kingston. “E para nós, rastas, que estávamos escondidos pela perseguição do governo e do povo, o imperador nos trouxe todo esse júbilo, essa alegria para nosso caminho”.
Hoje, após décadas de perseguição, o movimento é reconhecido em todo o mundo graças ao reggae e a seu maior expoente, o falecido cantor jamaicano Bob Marley. O movimento continua sendo relativamente pequeno – de acordo com o censo de 2011, apenas 1% da população da Jamaica, cerca de 30 mil pessoas, disse ser rastafári. Mas ele goza de participação no Parlamento e é uma voz reconhecida no país.
Originário da zona rural da Jamaica na década de 1930, o movimento rastafári começou como uma mistura de duas ideologias aparentemente não relacionadas. Primeiro o cristianismo, que viu um ressurgimento nas áreas pobres do país durante as últimas décadas do século 19 e as primeiras décadas do século 20, graças ao trabalho de missionários evangélicos, muitos deles americanos. Por outro lado, começaram a surgir movimentos nacionalistas negros que incentivavam as pessoas a olharem para África, com a intenção de regressarem à terra de onde foram desenraizados. Uma das vozes mais influentes do “Pan-africanismo” foi a do pensador jamaicano Marcus Garvey, que mais tarde também inspiraria as ideias de Malcolm X e da Nação do Islã nos EUA.
Garvey foi um dos primeiros pensadores a promover a ideia de amor próprio entre a população negra. Ele mesmo resumia seu lema de “Um Deus, um objetivo, um destino”, com uma expressão icônica que usava para encerrar seus discursos e que o movimento rastafári adotou como saudação: “One Love”, “um amor”, um único amor. Garvey também promoveu a ideia de unificar as raças negras do mundo, dispersas pelas forças coloniais, sob a bandeira do “Deus da Etiópia”, reiterando a suposta divindade da linhagem bíblica do único país africano que nunca foi colonizado (a Etiópia só foi ocupada durante 5 anos pelas forças italianas de Benito Mussolini, de 1936 a 1941, quando foram expulsas por forças aliadas na Segunda Guerra).
As ideias de Garvey coincidiram com a coroação de Selassie como imperador em 1930 e deram vida ao movimento rastafári, segundo Noel Leon Erskine, teólogo jamaicano da Universidade Emory (EUA). “Garvey, que os rastafáris veem como um profeta, disse ‘olhe para a África, olhe para a Etiópia’. E quando viram filmes da realeza britânica prestando reverência a Haile Selassie, um homem negro, deram a isso um significado especial. E, por serem seguidores da escritura, interpretaram que eram o povo escolhido”.
Após a coroação de Selassie, os primeiros membros do movimento rastafári começaram a pregar nas ruas da Jamaica. Personagens como Leonard Howell – considerado o pioneiro do movimento – começaram a apelar aos moradores dos bairros mais pobres (bastante afetados pelos efeitos da Grande Depressão de 1929) para rejeitarem o rei George VI da Inglaterra e, em vez disso, seguirem o reinado de Selassie da Etiópia. Em 1934, Howell foi preso pela polícia e passou 2 anos na prisão por sedição, marcando o início de um período de mais de 30 anos de perseguição contra os rastafáris.
Uma parte fundamental da ideologia rastafári, segundo o professor Erskine, é o papel do som na integração de conceitos filosóficos na linguagem. “Eles perceberam que o idioma era uma ferramenta de dominação para as forças coloniais. A primeira coisa que (essas forças) faziam era impor sua língua. Mas os rastafáris mandaram a língua inglesa para o inferno e disseram ‘vamos criar uma nova língua usando os sons’”. Assim como usam o termo “Babilônia” para descrever qualquer sistema de opressão – referindo-se ao período de escravidão dos israelenses na Babilônia no século 5 a.C. –, os rastafáris usam o termo “Sion” – Sião, a lendária fortaleza do Rei Davi em Jerusalém – para se referir à ideia de Terra Prometida.
Ras Igie explicou como esses conceitos são interpretados dentro do movimento, que poucos chamam de “religião” por ser uma ideia relacionada ao sistema da “Babilônia”. “Sabemos pelas referências nas escrituras que Babilônia era uma força que queria dominar a Terra. Uma força opressora contra os filhos do Altíssimo, os israelenses. Com a união de Salomão e da Rainha de Sabá nasceu um filho e com isso a velha Jerusalém passa para a nova Jerusalém na Etiópia. Dessa maneira, em ‘Sião’ ela é reconhecida como redenção através daquela força do bem que representa o reino mais justo na Terra.”
Alguns ensinamentos da religião rastafári
Depois de passar dois anos na prisão, Leonard Howell publicou o livro “The Promised Key” (“A Chave Prometida”), no qual apresenta muitas das ideias que moldariam o movimento rastafári, embora isso lhe tenha causado mais problemas com as autoridades. Ele foi confinado em um sanatório psiquiátrico porque no livro se referia ao papa como “Satanás, o diabo” e falava da “supremacia negra”. Ao sair, criou a primeira comunidade rasta, conhecida como comunidade Pinnacle, numa zona alta de Saint Catherine, no sul da ilha. Isso o colocaria de volta na mira das autoridades, e Howell foi novamente condenado a dois anos de prisão, por sedição.
A perseguição das autoridades levou à dissolução da Pinnacle na década de 1950, e as tensões entre as autoridades e os rastafáris tiveram seu auge em 1963, quando um violento conflito em um posto de gasolina de Montego Bay levou o recém-criado governo independente a emitir uma ordem para capturar os rastas “vivos ou mortos”. Embora não existam números oficiais, alguns historiadores acreditam que mais de 150 rastafáris foram torturados ou mortos nos meses seguintes.
“Houve um massacre”, disse Ras Igie, “e nós, rastas, procuramos o imperador para ser nosso protetor e salvador. E foi exatamente isso que aconteceu, com a chegada, três anos depois, do imperador à Jamaica”. De acordo com Ras Igie, isso deu a Selassie o estatuto de divindade, e fez com que muitos vissem sua visita como “uma segunda vinda de Cristo”. “Assim como Cristo, que passou três dias e três noites no coração da Terra, vimos uma ressurreição nos três dias em que ele passou na Jamaica”, avalia.
O professor Erskine diz que, durante essa viagem, Selassie disse aos rastafáris que ele, sendo cristão, não era o Messias e se ofereceu para criar um braço da Igreja Ortodoxa Africana. “O que os rastas responderam? Que Jesus fez o mesmo. Eles disseram que quando Jesus foi chamado de Messias, ele respondeu que não havia necessidade de chamá-lo de Deus”, recordou. Ao perguntar a Ras Igie se o rastafári poderia ser considerado uma “religião”, ele responde que é “um jeito de viver, um estilo de vida voltado para a justiça”, nas quais se incorporam conceitos inatos e aprendidos.
“Falando por experiência própria, nunca li nenhum livro sobre rastafári”, diz ele, acrescentando que sua compreensão (do rastafári) vem da internalização dos “problemas e tribulações da vida” através da meditação e da planta sagrada, a ganja, ou maconha. Para o rastafári, assim como outras religiões que usam a meditação, muitas das respostas são encontradas dentro de cada um, e não do lado de fora. Segundo Ras Igie, seguir os preceitos da ideologia, como manter uma dieta vegana, deixar o cabelo crescer livremente e a meditação combinada com o uso da maconha, permitem o entendimento da mensagem de Jah, o criador (Jah é a abreviação de Jeovah).
A interpretação por vezes literal de textos bíblicos levou a críticas sobre o tratamento dado a mulheres. Mas Ras Igie garante que são interpretações que foram reavaliadas pelas novas gerações rastafáris e que hoje as mulheres desempenham um papel importante no movimento. “Hoje, a esposa de Halie Selassie, que foi coroada ao mesmo tempo que o rei, é muito venerada. E essa grandeza do rei e da rainha faz com que as novas gerações destaquem e dediquem um maior respeito à figura feminina”.
O professor Erskine lembra que, quando era criança na Jamaica, o tambor era um instrumento proibido nas igrejas. “Crescendo nos anos 1940, alguns dos anciãos tocavam tambores nos guetos. Lembro-me de ir dormir com os tambores tocando a noite toda”, diz ele. Para Erskine, a grande genialidade de Bob Marley foi misturar aquele instrumento proibido nas igrejas – considerado selvagem pelos colonos, mas que era tocado nas ruas – com a mensagem rastafári. Foi a forma como conseguiu universalizar a mensagem do movimento.
“Marley alcançou muito mais pessoas do que a igreja poderia ter alcançado através do rádio. Essas pessoas, que eram vistas como as mais baixas da sociedade, que não tinham sapatos e não frequentavam a escola, conseguiram visibilidade através da música”, diz Erskine. “Acho que Marley foi o sinal de redenção do movimento. Não importa aonde você vá, as letras de reggae sempre estarão lá, esperando por você”, acrescenta.
Para Ras Igie, a força do reggae está no passado, nos tempos em que a música e o movimento eram praticamente uma coisa só. E que, por isso, os lucros do reggae deveriam ser divididos com a comunidade rastafári, “para que todos possam se beneficiar da grande música que nos colocou no mapa”. Ele diz que seus companheiros continuam sendo perseguidos por plantar maconha numa época em que a produção da planta é um negócio de “interesses” comerciais obscuros. “Embora o governo jamaicano tenha se desculpado pelo que foi feito de errado, os rastas deveriam ser melhor tratados. Continuamos sendo desprezados, mas pelo menos hoje temos a liberdade de andar, nos locomover e nos comunicarmos com o governo”.
Os rastas mantêm fortes objeções às alterações da figura do ser humano. Ou seja, seus adeptos não podem fazer tatuagens ou cortar e escovar o cabelo. É por isso que o rastafarianismo é tão associado às tranças em forma de dreadlocks. Esse visual é encarado como uma espécie de voto feito pelo recém-convertido, mas não é obrigatório. Apesar de reprovarem drogas, álcool e cigarro, seguidores dessa fé usam comumente a maconha (chamada de “ganja”) como uma forma de iluminação. O consumo segue um ritual: um grupo se reúne, reza em agradecimento a Jah e só então fuma a planta, que é considerada sagrada. O uso da maconha só para fins recreativos é considerado desrespeitoso.
Um dos nove princípios da religião prega o vegetarianismo. É proibido o consumo de carnes vermelhas, crustáceos, peixes sem escamas e caracóis. Dessa forma, os adeptos comem apenas “I-tal” (termo que significa puro, natural e/ou limpo), como Jah haveria ordenado. Para beber, preferência aos chás de ervas. As cores verde, vermelha e amarela, da bandeira da Etiópia, são um forte símbolo do movimento rastafári. Representam lealdade a Selassié e à África acima de qualquer outra nação. O verde remete à vegetação africana, o vermelho se refere ao sangue dos mártires e o amarelo à riqueza e prosperidade do continente (antes da exploração colonialista). O fato é que o movimento se tornou uma parte fundamental da vida jamaicana, como nos diz o professor Erskine: “Não há como evitar: não acho que se possa falar adequadamente sobre a cultura jamaicana sem falar sobre o rasta”.
O ritmo jamaicano desembarca no Brasil
A chegada do reggae ao Brasil ainda é um assunto um pouco nebuloso devido ao fato de não existir nenhum estudo histórico detalhado sobre o tema. Porém, alguns caminhos possíveis podem ser seguidos para tentar entender como esse estilo musical desembarcou em nosso país. O primeiro contato do público brasileiro com o reggae é simbolizado pela visita de Jimmy Cliff ao país, em 1969, para participar do Festival Internacional da Canção (FIC).
Em 1972, Caetano Veloso gravou “Nine Out Of Ten”, lançada no Brasil em 1972 no álbum “Transa”, e a música foi considerada um marco na história do reggae no Brasil – não necessariamente por SER um reggae. “Considero Nine Out Of Tem como a minha melhor música em inglês. Ela é histórica. É a primeira vez que uma música brasileira toca alguns compassos de reggae, uma vinheta no começo e no fim. […] Bob Marley e The Wailers foram a melhor coisa dos anos 70”, revelou Caetano em uma entrevista ao Jornal do Brasil.
Gilberto Gil também se arriscou na linguagem do reggae em 1977, no disco “Refavela”, mas não se jogou totalmente no gênero. Porém, logo em seguida, gravou a música “No Woman No Cry”, de Bob Marley, e a versão se tornou um grande sucesso no Brasil, com mais de 500 mil cópias do compacto vendidas. Simultaneamente a esse movimento, alguns estados, como Maranhão, Pará e Bahia também começavam a se apaixonar pelo reggae que era trazido pelas mãos de vendedores de discos importados.
Nos anos seguintes, os primeiros álbuns começaram a ser lançados no Brasil e, junto com a visita de Bob Marley ao país em 1980, o estilo começou a decolar de vez por aqui. No mesmo ano, Gilberto Gil e Jimmy Cliff fizeram uma turnê de sucesso com shows pelo Brasil. Começaram então a surgir as primeiras bandas de reggae no cenário nacional. Ainda no final dos anos 1970, aparece em Recife o Grupo Karetas, considerado a primeira banda de reggae do Brasil. Outro artista apontado como um dos pioneiros do gênero no país é Edson Gomes. Nascido na Bahia, o cantor gravou seu primeiro disco “Reggae e Resistência” em 1988, e seus hits se espalharam por todos os cantos.
Muitos outros grupos aparecem a partir da segunda metade dos anos 1980, entre eles a Tribo de Jah, no Maranhão. Até hoje o estado carrega o apelido de “Jamaica Brasileira” devido ao fenômeno que o reggae se tornou no local, e a Tribo foi uma das responsáveis pela difusão e fortalecimento desse título. O grupo, formado na Escola de Cegos do Maranhão, possui uma trajetória de sucesso até hoje, levando em sua mala shows realizados em diversos lugares do planeta, entre eles a Jamaica, Argentina, Europa, entre outros.
Ainda na década de 1980, chega a vez do rock se misturar ao reggae, por meio da banda Paralamas do Sucesso. Em 1986, no Rio de Janeiro, nasceu uma das bandas que atravessou gerações e ajudou a fortalecer ainda mais a cena: o Cidade Negra. Em 1992, o grupo carimbou o passaporte e voou até Montego Bay, na Jamaica, para tornar-se o primeiro grupo de artistas latino-americanos a participar do Reggae Sunsplash Festival. Com o fortalecimento do cenário nacional e várias apresentações de artistas brasileiros fora do país, o número de bandas se multiplicou nos anos 1990. Entre elas podemos destacar alguns nomes que atingiram o grande público, como Adão Negro, Alma Djem, Natiruts e Planta & Raiz.
Em 2012, trinta e um anos após a morte de Bob Marley, a presidente Dilma Rousseff decidiu homenagear o músico jamaicano instituindo o Dia Nacional do Reggae. A data é comemorada no dia 11 de maio, mesmo dia em que o cantor morreu aos 36 anos. O texto distribuído pelo Palácio do Planalto para divulgar a decisão dizia que nesta data “se homenageará o ritmo musical difundido mundialmente por Robert Nesta Marley”.