Manaus-Babilônia Extended

CAPÍTULO 7 – Relembrando os embalos de sábado à noite

Uma das matinês da boate Spectron, nos anos 90, em Manaus
Postado por Simão Pessoa

Em Manaus, os DJs sempre fizeram parte da nossa cultura musical, seja comandando programas radiofônicos (Josué Filho, no “Josué Filho Comanda o Embalo”, e F. Cavalcante, no “For Making Love”, ambos na Rádio Difusora, eram líderes de audiência nos seus horários), seja comandando as pick-ups em clubes, boates ou festas particulares (e o manauara Raidi Rebello, seis vezes eleito o melhor DJ de Flashback do Brasil continua sendo o símbolo mais icônico da profissão).

Para saber um pouco mais sobre o desdobramento da discotecagem nas últimas décadas, fizemos uma linha de tempo desde os anos 60 para mostrar algumas características básicas das baladas daquela época e sua posterior evolução até os dias de hoje.

Anos 60 – De certa forma as baladas nos anos 60 eram parecidas com as atuais: um lugar para curtir, conhecer gente e ouvir música. Mas o ambiente era bem diferente. O rock, que havia estourado nos anos 50, era o principal gênero de música jovem.

No Brasil, a maior influência no som e no comportamento eram programas como Jovem Guarda, da TV Record, que lançou artistas como Roberto Carlos e Ronnie Von. Mesmo diante da difícil realidade da ditadura militar, eles ensinavam por que (e como!) valia a pena se divertir. Na caça aos brotinhos não adiantava roupa dos Beatles ou uma cuba libre na mão: beijo só rolava depois de muito namoro.

Nas boates só maiores de 18 podiam entrar. Não que isso exigisse muito controle: os mais novos nem as consideravam uma opção de diversão. Para eles, as festas eram na casa dos amigos (as célebres “brincadeiras”), na escola ou no clube, devidamente supervisionadas e encerradas antes da meia-noite.

Assim como hoje em dia, drogas eram ilegais. Poucos baladeiros se arriscavam. Um ou outro mais “moderninho” fumava maconha, mas sempre do lado de fora. Nos EUA, a erva ganhava espaço com o movimento hippie e dava o pontapé inicial na psicodelia.

Em termos de acocho (que depois virou “amasso” e hoje se chama “ficar”), não existia essa pegação fácil de hoje em dia! Os casais, geralmente apresentados por amigos em comum, passavam semanas apenas conversando. Só depois rolavam mãos dadas e, talvez, um beijinho. O máximo de contato, em público, era dançar mais juntinho.

Os drinques da época eram a cuba libre (rum com coca-cola) e o hi-fi (vodca com refrigerante de laranja). Tinham tudo a ver com a transição do público: misturavam algo adulto (a bebida alcoólica, geralmente duas doses) e algo infantil (o refrigerante, servido até completar o copo).

A pista era animada por bandas ao vivo ou uma vitrola, e iluminada pela indefectível “luz negra”. A figura do DJ ainda não existia, mas, em algum lugar do salão, um discotecário “invisível” cuidava do som. Grande conhecedor de música, ele tentava trocar os discos rapidinho para não perturbar o baile.

Os meninos absorveram tudo dos Beatles: do cabelo comprido no corte “cuia” aos terninhos. Calças de bocas largas e paletós despojados também funcionavam. Para as garotas, quem ditava regra era a modelo Twiggy, com maquiagem bem marcada nos olhos. Pernocas de fora (em minissaias ou tubinhos curtos) ganhavam as ruas. Os discos eram de vinil. A troca exigia habilidade, já que era preciso colocar a agulha da vitrola no ponto exato.

Boates e clubes de Manaus onde o agito rolava: Ideal Clube, The In Crowd Club (“Boate dos Ingleses”), Bancrévea, Cheik Clube e União Esportiva Portuguesa. Principais DJs da época: Zé Cury, Carlinhos Areosa, Leonel Couto, Jorge Meireles e Joaquim Marinho. Músicas-símbolos: “Twist And Shout”, dos Beatles, “San Francisco (Be Sure To Wear Flowers In Your Hair)”, do Scott McKenzie, “Festa De Arromba”, de Roberto e Erasmo Carlos, “Rua Augusta”, de Ronnie Cord, e “My Pledge Of Love”, do Joe Jeffrey Group.

Anos 70 – Na década da disco music, as casas noturnas começavam a apresentar algumas características típicas de uma balada até hoje, como o forte show de luzes dando destaque à pista e a presença do DJ comandando o som. Mas o que marcou o período foi a mentalidade do público. O hedonismo (a busca pelo prazer) era a arma dos jovens contra a caretice e a repressão do regime militar. Sexo, drogas, funk, disco e soul music embalavam as noites. Nas boates mais populares, jovens de todas as classes sociais, negros e brancos, gays e héteros se reuniam para dançar como se não houvesse amanhã. Luz, som, cores, drogas: tudo motivava o público a se jogar na pista.

A cuba libre, sucesso nos anos 60, ainda era a bebida preferida de muita gente. Disputava espaço nos balcões com uísque, vodca e cerveja. Os mais refinados apostavam no dry martíni, famoso graças ao espião 007: três doses de gim, um pouco de vermute e gelo, batido na coqueteleira e decorado com a clássica azeitona no palito.

Extravasar era a palavra-chave: a galera usava muita cor, brilho e materiais sintéticos. O lurex (um tecido com fios metálicos) aparecia em blusas, macacões e vestidos. No look das garotas, maquiagem forte, meia arrastão e plataformas altíssimas eram essenciais. Elas se inspiravam na novela “Dancing Days”, enquanto os garotos copiavam “Os Embalos de Sábado à Noite”.

A pista se consagrava como a grande atração. Não podia parar jamais! Por causa disso, essa época vê surgir a figura do DJ, que comandava o som. Ele tinha área de destaque no salão e interagia com o público. O uso de dois toca-discos foi uma grande revolução, mas poucos avançaram nas mixagens próprias.

A exigência de infraestrutura forçou a profissionalização do ramo. Baladas começaram a virar grandes negócios e consagravam os “reis da noite” – empresários como Ricardo Amaral, dono da Hippopotamus (no Rio) e da Papagaio (no Rio e em Sampa). Outras casas que marcaram a época foram a paulistana Banana Power e a fluminense Dancin’ Days Discotheque, que até virou nome de novela.

Ainda rolavam drogas psicodélicas, como maconha e LSD, herdadas da onda hippie. Mas a noite tinha uma nova musa: a cocaína, que mantinha a galera fervendo na pista. Drogar-se não era mais um ato de contestação, como na década anterior. O pó era uma droga cara e virou simplesmente mais um bem de consumo associado a glamour e status.

Se, nos anos 60, ainda reinava o pudor, na década seguinte todos queriam curtir. Beijar já não exigia tanta intimidade. A dança servia para aproximar os casais, que depois procuravam cantos escuros para uns amassos mais quentes. Alguns esticavam a noite em um lugar mais reservado. Os ousados já partiam para os “finalmentes” no banheiro da boate.

O globo espelhado, os neons e a luz estroboscópica ajudavam a deixar o ambiente mais frenético. As discotecas cobravam a entrada e algumas já exigiam a famigerada “consumação mínima”. A falta de mesas e assentos era proposital: forçava as pessoas a circular ou se concentrar na pista de dança. Quem podia ostentava uma invejável cabeleira black power, um sinal de orgulho racial, vindo da luta pelos direitos civis no fim dos anos 60.

Boates de Manaus onde o agito rolava: Danilo’s, Le Bec Fin, Refúgio, Toka do Pajé e Limelight. Principais DJs da época: F. Cavalcante, Serginho Medeiros, Elcio Tavares, Rui Bikinho e Álvaro Pontes. Músicas-símbolos: “Dancing Days”, das Frenéticas, “Stayin’ Alive”, dos Bee Gees, “I Will Survive”, da Gloria Gaynor, “That’s The Way (I Like It)”, do KC and the Sunshine Band, e “Love To Love You Baby”, da Donna Summer.

Anos 80 – As danceterias brasileiras dessa década eram locais de efervescência cultural. Ajudaram a revelar bandas como Legião Urbana, Ira e RPM – o rock nacional estourou e trouxe a música ao vivo de volta às baladas. Também eram o ponto de encontro de novas “tribos”, como góticos, punks e fãs da new wave.

A agitação espelhava a redemocratização do país: o cidadão (em especial, o jovem) podia voltar a expor opiniões sem medo de represálias. Por outro lado, o perigo da aids se tornava cada vez mais próximo, mudando radicalmente os hábitos sexuais.

A noite oitentista misturava tudo: DJ, música ao vivo e até videoclipe. Os anos 80 viram nascer, nos EUA, o canal MTV, que revolucionou o consumo de música. Agora, vinham em forma de clipe! As baladas foram atrás: algumas tinham TV para exibir vídeos que hoje são clássicos, como “Thriller”, de Michael Jackson, “Like a Virgin”, de Madonna, e “Kiss”, de Prince. A galera até copiava as coreografias.

Não havia internet e as rádios brasileiras nem sempre eram rápidas em reproduzir o que bombava lá fora. Resultado: o DJ com acesso a discos importados se tornou um grande formador de opinião. Muita gente o abordava na cabine para saber o nome das músicas. Mas, se ele colocava um som que não agradasse, era vaiado.

Antes considerada doença exclusiva dos gays, a aids aos poucos começou a fazer vítimas entre heterossexuais. A paranoia bateu forte e o amor livre da geração anterior foi deixado de lado. O conselho geral era levar camisinha para a farra. Alguns copiavam a postura assexuada (e/ou andrógina) de ídolos como Morrissey, dos Smiths.

No bar, a cuba libre e o hi-fi seguiam populares. Mas houve outras febres ao longo da década. Uma delas foi a do Keep Cooler, bisavô das bebidas “ice” atuais. Parecia um refrigerante com sabor de frutas (pêssego, uva, morango, maracujá…), mas levava vinho branco e tinha teor alcoólico de cerca de 5% (similar ao da cerveja).

Eram comuns os shows ao vivo. Foram em palcos de baladas que surgiram bandas como Blitz, Ultraje a Rigor e Paralamas do Sucesso. Ávidos por novidades musicais, os frequentadores pagavam uma taxa de “couvert artístico” nessas noites e dançavam mesmo quando a música não era exatamente feita pra isso.

O individualismo dos anos 70 (apelidados pelo escritor Tom Wolfe como “a década do eu”) aumentou nos 80. Cada um buscava uma expressão pessoal, inclusive na moda. Na pista, havia cabelos “mullet”, moicano ou cheios de gel. Os góticos investiam no preto e a galera new wave vestia cores cítricas vibrantes.

Boates de Manaus onde o agito rolava: Starship, Crocodilo’s, Spectron, Studio Tropical e Brilho. Principais DJs da época: Raidi Rebello, João Cury, Graciano Rebelo, Sidney Almada e Augusto Omena. Músicas-símbolos: “Bizarre Love Triangle”, do New Order, “Burning Down the House”, do Talking Heads, “Geração Coca-Cola”, do Legião Urbana, “Tainted Love”, do Soft Cell, e “Should I Stay or Should I Go?”, do The Clash.

Anos 90 – Baladas longas e regadas a muita música eletrônica. Nessa época, a busca por uma experiência mais intensa e diferente (e longe das autoridades) consagrou um formato novo – o das raves. Eram festas de até 14 horas, geralmente ao ar livre, que propunham uma fuga da realidade à base de muito som, dança e uso de drogas sintéticas. O termo “rave” já existia na Inglaterra desde a década de 50, mas foi revitalizado no fim do milênio com a ascensão da cultura eletrônica e a transformação dos DJs em verdadeiros superstars.

Enquanto os anos 80 celebravam a individualidade (já ouviu o hit “Dancing With Myself”, do Billy Idol?), as raves tinham um quê meio hippie. Tudo era coletivo, num clima de paz, amor, liberdade e comunhão com a natureza. O uso de drogas sintéticas e a batida dos gêneros eletrônicos techno e trance (“transe”, em inglês) deixavam o público numa vibe hipnótica.

Ainda rolavam maconha e LSD. Mas a droga do momento era o ecstasy, também chamado de “bala”. Seu principal componente, o MDMA, causa euforia e bem-estar. Também aguça sentidos como o tato – por isso tantos se abraçavam ou ficavam passando a mão um no outro. Mas não pense que era pura pegação. O clima era mais sensual do que sexual.

A bebida mais consumida era… água! Não só porque as festas eram verdadeiras maratonas, mas também porque o ecstasy aumentava a temperatura do corpo (e aconselhava-se não misturar com álcool, pois alteraria seus efeitos). Além disso, a infraestrutura itinerante das raves não permitia drinques de preparação complexa.

Além de chamariz para o público, o DJ era encarado como um xamã, responsável por conduzir o ritual da dança. E agora ele não apenas selecionava o que iria bombar como também mixava músicas ao vivo. A habilidade de manipular sons de outros artistas para criar algo novo se tornava essencial para um bom profissional. Havia até torneios para escolher os melhores!

Muitas raves rolavam em praias e sítios. nos arredores de grandes cidades. Algumas tinham até ônibus fretados para trazer a galera de volta pra casa. Em caso de chuva, tendas abrigavam pista de dança, bares e áreas de descanso. A decoração era completada com canhões de laser e telões, que exibiam imagens do espaço sideral, ícones da mitologia hindu, padrões psicodélicos…

O clima lúdico estava em todo lugar. Foi nessa época, por exemplo, que fazer malabares se tornou algo descolado. Havia ainda quem encarasse tudo como uma grande brincadeira infantil, levando chupeta, apito e bichos de pelúcia. Brigas e confusões eram raras – os seguranças eram orientados a ser tolerantes e só interviam em casos de excessos.

Conforto era prioridade para encarar as festas intermináveis: camiseta, bermuda, tênis, óculos de sol. Outros preferiam looks mais produzidos. Era a tribo “clubber”, que começava a se destacar especialmente nas baladas das grandes cidades, com roupas vibrantes e customizadas, estilos sobrepostos, muitos acessórios etc.

A década viu bombar dois novos tipos de bebidas prontas: os energéticos e as “ice”. Nos centros urbanos, o desejo por longas jornadas fez surgir os afterhours, uma “balada pós-balada” que vai até o meio-dia. Na pista, todo mundo queria saber de dançar. Só nas áreas de descanso a galera realmente interagia e fazia amizades.

Boates de Manaus onde o agito rolava: Mikonos, Notívagos, Hype, Coração Blue, All Night Pub, Beer Dance, Hangar 39, Bora Bora, Club A2, Casablanca, Mamute, Antares, Cabaret Night Club, Les Gens 300, Kabanas Hall, Manaus Show Clube, Amazon Palace, Musique Nuit, Mazika Hall, Sin House, Planeta Talismã e Nostalgia. Principais DJs da época: Fernando Araújo, Ernesto Coelho, Kleber Romão, Ary Guedes, Laerte Antonaccio, Alex Marques, Fefa Cacheado, Alberto Chã Filho e Luiz Carlos Mestrinho. Músicas-símbolos: “Pump Up The Jam”, do Technotronic, “Red Alert”, do Basement Jaxx, “Born Slippy”, do Underworld, “Rockafeller Skank”, do Fatboy Slim, “The Rhythm Of The Night”, do Corona, “Believe”, da Cher, “Around The World”, do Daft Punk, “Ray Of Light”, da Madonna, “Get Ready”, do 2 Unlimited, “The Power”, do Snap!, “How Bizarre”, do OMC, “Virtual Insanity”, do Jamiroquai, “Breathe”, do Prodigy, “Whoomp! There It Is”, do Tag Team, “The Sign”, do Ace of Base, e “Hip Hop Hooray”, do Naughty By Nature.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

Leave a Comment