Por Aldisio Filgueiras (*)
Enquanto o verão chove em rápidos disparos a Oeste da cidade de Manaus, e o vento desemprega e despeja a poeira operária do Leste sórdido, nosso caminho entre o porto e o aeroporto se polvilha de cinzas e a loucura atinge a sua maior audiência em todos os fusos horários.
A cor cinza das cinzas corteja as avenidas e seu desenho de asfalto copiado da engenharia infantil do último grafiteiro da cidade de Manaus.
O asfalto, agora cinza, é o caminho mais curto entre o rio, que já se torna cinza, e o espaço aéreo cinza da nação brasileira, e estabelece uma perfeita ligação entre o Norte e o Sul.
As emissoras de rádio da cidade de Manaus não perceberam ainda a estática das cinzas em suas antenas. Isto não é bom. As emissoras de televisão da cidade de Manaus também não perceberam a tonalidade das cinzas em seu padrão de cores.
Isto é bom sinal.
Em breve os automóveis e o vidro dos edifícios da cidade de Manaus, as delegacias e as escolas noturnas, a comida dos que ainda comem, o sono dos que ainda dormem, todos estes que já são poucos e as cinzas muitas, até o gozo e os lençóis de cama dos motéis, e a poesia ruim da Imprensa Oficial, tudo estará tomado de poeira cinza.
As crianças e os animais cativos do zoológico do CIGS hão de sentir primeiro a mudança do tempo e os termômetros se recusarão a registrar a hipertensão na temperatura que driblou os satélites e as razões de Estado.
“Isto não existe”, desconfiará o Governo, se algum dia for solicitado a pensar no assunto, “o nosso asfalto é de Primeiro Mundo, se não houver reação ninguém sairá ferido”.
A nuvem cinza das cinzas em nevoeiro devolverá aos aviões os pontos de onde nunca deveriam ter partido. E os barcos sem contato com as estrelas lançarão âncora e sinais de socorro que não vencerão a solidão das cinzas. Ainda assim o expediente nas repartições públicas e nos bancos e no comércio da cidade de Manaus não sofrerá alteração, como se fosse um feriado de longa duração.
Os boatos que alimentam o cotidiano sem imaginação da cidade de Manaus se tornarão todos reais e uma onda de permissividade evangélica conquistará as galeras lesas de Santa Etelvina com a promessa de um piquenique ecumênico no feriado da condenação do Amazonas à categoria de Província.
As debutantes ridentes da revista Manaus Magazine serão exorcizadas no Parque Aquático do Rio Negro e começarão a jogar pôquer no salão do Ideal Clube de Letras e Câmbio. Os braços em cruz do Cristo Redentor dobrarão sob o peso das cinzas. Mas não existe Cristo nem Redentor na cidade de Manaus ou morro corcovado que o alcance em altura. Nem por isso a cinza das cinzas perderá o seu alvo. Eu próprio estarei ocupado demais e de menos e sem tempo de registrar num poema decente este monumento histórico.
O campus universitário da cidade de Manaus acionará o seu plantão de greves contra a poluição cinza das cinzas. O INPA não entenderá a coqueluche do momento e nem a Fiocruz saberá o que é bom para a tosse cinza. As igrejas da cidade de Manaus perderão o controle das esquinas para os supermercados e a palavra de Deus distribuirá ingressos para o Juízo Final.
E Deus, enfim, vai conhecer o inferno que os poetas não foram capazes de imaginar e meditará sobre suas cinzas como um pai encurralado por sua própria Justiça: “Onde foi que Eu errei?”
As prostitutas históricas da rua Itamaracá buscarão no Sebrae o apoio para sua cooperativa de pequenas e médias empresas. A economia do sexo sofrerá um abalo ecológico e cairão os juros bancários sob o peso das cinzas. Neste momento os semáforos da cidade de Manaus estarão apontando para todas as direções e depois se apagarão como sempre fizeram quando foram mais necessários. Nada ficará impune.
Os sete leitores de poesia que um dia honraram as duas únicas bibliotecas da cidade de Manaus perderão sua visão profética e a lama cinza das lágrimas cobrirá a página com um soluço de menino de rua. Os cemitérios ampliarão mais e mais os territórios de silêncio e caminharão sobre as avenidas encolhidas sob as cinzas dos tempos.
Depois virão as águas de um novo começo e o leito cinza do rio, macio como o chão de um útero, produzirá raízes mágicas que assumirão formas estranhas ao nosso paladar e tato.
E as águas estacionadas na cúpula do Teatro Amazonas exibirão vitoriosas uma pequena canoa que escapou das cinzas, longa como o rastro de um boeing em fuga. Só muito tempo depois – dirá o mito – um rebanho de anfíbios erguerá o focinho para o sol, como se o assunto não fosse com ele.
E o sol acenderá as fogueiras e aquecerá aqueles focinhos. Neste exato momento um pensamento de nova geração taxiará com calma para trocar sinais de amizade com a pequena canoa e seus engraçados habitantes.
E a minha ira terá se aplacado. Espere pra ver.
(*) Aldisio Filgueiras é poeta, jornalista, compositor, cantor de blues e membro da Academia Amazonense de Letras