O Brasil perdeu a Copa de 50 em pleno Maracanã e foi desclassificado em 1954 pela Hungria. A moral nacional estava meio abalada quando Marta Rocha, uma baiana exuberante, loira de olhos azuis, surgiu no horizonte. Estávamos na fase democrática da era Vargas e a febre do voto havia contaminado o povo.
Patrocinado pelos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, o concurso de Miss Brasil ganhou popularidade. Gente de todo o País recortava os cupons dos jornais e escolhia a mulher mais bela do Brasil, que podia ser uma prima ou até a vizinha. Era uma verdadeira zorra.
Na finalíssima, no hotel Quitandinha, em Petrópolis, um júri formado por notáveis como o poeta Manuel Bandeira e o escritor Fernando Sabino consagrou Marta Rocha. A Miss Brasil tinha a missão de chutar a canela da estrangeirada e mostrar como éramos bons de pernas, cintura, busto e tudo mais. E foi com essa bandeira que ela seguiu, no mesmo ano de 54, para o concurso de Miss Universo, em Long Beach, na Califórnia.
Fomos vice e Marta teria perdido, na versão do jornalista João Martins que trabalhava em O Cruzeiro e cobriu o evento na época, por ter duas polegadas no quadril a mais do que no busto. O segundo lugar serviu até de inspiração de uma marchinha que foi gravada pela própria Marta:
– Por duas polegadas a mais / Passaram a baiana para trás. / Por duas polegadas / E logo nos quadris / Tem dó, tem dó, seu juiz!
A versão menos emocionada dá conta de que a americana Mirian Stevenson venceu Marta Rocha porque o concurso estava em decadência nos EUA e precisava de um fôlego.
Bem-humorada, a baiana, que reinou absoluta durante anos na sociedade carioca, brincava com o folclore que fez de sua derrota uma vitória moral para o País, afinal ela tinha quadril em excesso, um orgulho nacional.
– Meu consolo é que até hoje ninguém sabe quantos centímetros tem duas polegadas – costumava dizer.
Vice-prefeito de Zé Esteves no início dos anos 60, Souza Filho assumiu a prefeitura de Parintins quando Esteves renunciou ao cargo para disputar o mandato de deputado federal. Segundo o ex-prefeito Gláucio Gonçalves, Souza Filho era um dos políticos mais articulados do Amazonas, porque combinava uma inteligência acima da média, uma educação refinada e um discurso que beirava o poético. Em linhas gerais, o sujeito era um verdadeiro diplomata.
Quando exercia o mandato de deputado estadual, bem antes de assumir a prefeitura do município, Souza Filho foi encarregado de homenagear Marta Rocha, na Assembleia Legislativa do Estado, quando a beldade visitou Manaus.
Depois de fazer mil elogios rasgados à plástica perfeita da quase-Miss Universo, Souza Filho encerrou o seu discurso com uma chave de ouro:
– Eu queria saudar essa beleza baiana com uma metáfora bem amazônica e neste momento a imagem que me vêm à mente é a de uma garça morena na beira da canarana…
Marta Rocha adorou a comparação elogiosa.
Em agosto de 1988, a estonteante atriz Adele Fátima veio a Manaus para participar das festividades oficiais pelos “Cem anos de Abolição da Escravatura”. O Amazonas entrou no roteiro por ter sido o segundo estado brasileiro a libertar seus escravos, logo depois do Ceará. O deputado estadual Enéas Gonçalves foi escolhido por seus pares para saudar a deusa de ébano na Assembleia Legislativa do Estado (ALE).
Adele Fátima, que era uma das cabrochas favoritas do saudoso Osvaldo Sargentelli, chegou na ALE num apertadíssimo vestido de cetim, deixando antever suas ancas bem fornidas. Os deputados estavam babando na gravata. Enéas começou seu discurso enfatizando o significado histórico da Abolição da Escravatura, mas, no meio do caminho, pegou um atalho para elogiar a beleza da mulata e, no final, partiu para a cantada explícita, sem subterfúgios:
– Concluindo meu discurso, minha querida Adele Fátima, o que me vem à cabeça neste momento são as saudosas palavras de um deputado estadual parintinense chamado Souza Filho, um verdadeiro poeta, um homem de coração puro e que nesta casa, homenageando a nossa inesquecível Marta Rocha, comparou-a com uma garça morena na beira da canarana. Eu gostaria de dizer o mesmo, mas com um pequeno adendo. Sua beleza estonteante, minha querida Adele Fátima, é de uma garça morena na beira da canarana, enquanto cá estou eu, nesta tribuna, como um maguari faminto a contemplá-la…
A Assembleia quase veio abaixo, de tantas palmas. A mulata de 400 talheres sentiu um calafrio perpassando-lhe a espinha e ficou ruborizada. Ela podia até não saber que diabo era um maguari, mas percebeu nitidamente que havia uma conotação sexual naquela mensagem.
Para quem não sabe, maguari é o nome da maior de nossas garças, uma ave fabulosa, que mede 1,25m de altura por 1,80m de envergadura (em termos comparativos, a rainha das garças do Velho Mundo – a famosa cegonha dos bebês – mede entre 90 e 98cm).
Reza a lenda interiorana que um maguari faminto come até tracajá, com casco e tudo.
Se Adele Fátima comprovou ou não a lenda, Enéas Gonçalves nunca falou…