Meu brother há 50 anos, o empresário João Pedro Baranda nasceu em 1952, no lugar conhecido como Caldeirão, na zona rural de Parintins, onde viveu até os 13 anos. Seu pai, o velho Baranda, tinha uma família numerosa: 12 filhos, sendo oito mulheres, e mais uma agregada da família. Para calçar tanta gente, ele mesmo fabricava tamancos de mongoló com tiras de couro cru. E ai de quem fizesse barulho quando caminhasse pelo assoalho da casa, feito de itaúba: entrava na peia. As meninas aprenderam a andar quase flutuando que nem miss. Os moleques desenvolveram a pisada macia dos “pés de pano” e aquela manemolência típica dos malandros das antigas.
A casa da família Baranda ficava a 200 metros da beira do rio. De manhã cedo, quando os moleques iam escovar os dentes, o velho Baranda passava a tropa em revista para conferir se alguém estava indo para o rio “de mãos abanando”. Todos eles, os “marmanjos da casa”, cada vez que se dirigissem ao rio, tinham que levar pelo menos duas latas vazias de Manteiga, aquele galão de 5 litros com um pedaço de pau atravessado na boca, para facilitar a empunhadura, e retornar com elas cheias d’água.
A exigência do patriarca fazia sentido. Com dez mulheres na casa, sempre havia alguma menstruada – e sua presença, nessas condições, na beira de rio era severamente proibida, “para ela não ser emprenhada pelo boto”. Os moleques tinham que providenciar água, diariamente, para as mulheres se assearem em terra firme. Naquele mundão perdido no mato, água encanada era ficção científica.
Somente aos 13 anos, quando João Pedro Baranda foi morar na cidade para iniciar seus estudos, é que ele ganhou seu primeiro sapato (um vulcabrás) e sua primeira calça comprida. Até então, o adolescente só conhecera calções de morim e tamancos de mongoló. No grupo escolar Araújo Filho, Baranda conheceu João Batista Oliveira de Araújo, depois conhecido nacionalmente como o incendiário deputado federal Babá, do PSOL-PA. Os dois chegaram a brigar diversas vezes, por causa de papagaios de papel, cangapé e bolinhas de gude, antes que Babá se mudasse para Belém do Pará e João Pedro para Manaus, em 1970.
Na capital amazonense, João Pedro, aos 18 anos, começou a trabalhar no Serviço de Segurança e Proteção Patrimonial (SPP), como vigia do London Bank. À noite, estudava no curso colegial do Sólon de Lucena. Ele deixou o SPP, onde arriscava a vida para ganhar uma miséria, e foi ser ajudante de caminhão. Depois, virou ajudante de soldador na remoção de chapas metálicas do navio Ayapuá, fundeado na baía de Educandos. Para economizar, almoçava pão doce com garapa de mangarataia vendidos pelos catraieiros do pedaço.

Escola Técnica Federal do Amazonas nos anos 70
Em 1973, concluiu o curso no Sólon de Lucena e, no ano seguinte, começou a estudar eletrotécnica na Escola Técnica Federal do Amazonas (ETFA). Nesse meio tempo, conseguiu um emprego de estoquista em um depósito de distribuição de cigarros da Souza Arnaud. Quando terminava seu serviço no depósito, ia ajudar os vendedores no balcão. Não demorou muito para ser promovido a atendente de balcão. Quando aprendeu a emitir notas fiscais, foi promovido a caixa. Alguns meses depois, foi promovido a vendedor externo.
Baranda pilotava uma kombi caindo aos pedaços para entregar as mercadorias nos bairros da Alvorada e recolher novos pedidos dos clientes. Um dia, no meio de uma entrega no bairro da Alvorada 1, desabou um dilúvio tipicamente manauara. Mais de três horas seguidas de chuvas torrenciais. O vendedor ainda precisava fazer uma última entrega – um pacote de Arizona –, para um quiosque localizado no final de uma ladeira bastante íngrime, na Alvorada 3, que as chuvas haviam transformado em um lamaçal escorregadio.
Ele deduziu, sabiamente, que se descesse a ladeira, a kombi não conseguiria mais subir de volta – os pneus eram tão carecas que ele vivia se desviando de bagana acesa de cigarro. E, de mais a mais, aquele sacrifício todo seria apenas para entregar um mísero pacote de Arizona. Preferiu não fazer a entrega e anotar na ficha de controle que o cliente não quis receber.
Quando chegou na distribuidora, o circo estava armado. O cliente já havia telefonado, reclamando que o vendedor não havia feito a entrega. O gerente da distribuidora chamou Baranda na sala, conversou longamente com ele e demitiu-lhe por justa causa. Antes de Baranda sair da sala, o gerente ainda deu um toque filosófico:
– Amanhã a gente arranja 100 vendedores para o seu lugar, mas substituir um cliente por outro é 100 vezes mais difícil…
João Pedro Baranda nunca mais esqueceu a lição.
Depois de trabalhar como talhador de carnes no Matadouro Municipal, no bairro da Glória, durante alguns meses, Baranda, graças a sua facilidade para fazer amigos, conseguiu alugar uma banca de carne no mercadinho da Praça 14, onde vendia miúdos de boi. Agora ele fazia uma dupla jornada de trabalho, vendendo miúdos durante a manhã e serrando ossos no matadouro, de madrugada. À noite, estudava na ETFA. Tirava as tardes para dormir e descansar.
Um belo dia, ele reuniu todas as suas economias e partiu para abrir seu próprio negócio. Alugou um açougue na rua Ramos Ferreira, próximo do restaurante Coqueiro Verde, comprou uma grande partida de carne, retalhou, colocou no frigorífico e foi dormir, para inaugurar o açougue, em grande estilo, na manhã seguinte.
Quando abriu o açougue para a grande festa de inauguração, teve uma amarga surpresa. O frigorífico estava tão velho, que já começara a “caducar”: em vez de gelar, esquentava. A carne toda havia apodrecido. Baranda ficou mais quebrado do que arroz de terceira. Voltou a serrar ossos no Matadouro Municipal.
Meses depois, ele partiu para uma nova tentativa. Convenceu um casal de japoneses, donos de um mercadinho de hortaliças na rua 24 de Maio, a lhe alugarem a parte de fundo da bodega para ele instalar uma banca de carnes. Os japoneses concordaram, já que isso ia agregar valor ao empreendimento sem competir com os hortifrutigranjeiros ali comercializados. Seis meses depois, Baranda abriu um novo açougue no cruzamento das ruas Ipixuna e Major Gabriel, que funciona até hoje. Ele então resolveu investir em novas áreas.
No início de 1977, João Pedro Baranda fez um teste para técnico de televisão, na Sharp do Brasil, onde eu trabalhava como Chefe do Controle de Qualidade e era responsável pela seleção do pessoal técnico da empresa para os outros setores. Ele não se saiu bem no teste teórico, mas me convenceu de que precisava apenas de uma oportunidade para mostrar serviço. Resolvi apostar na sua sinceridade e recomendei sua contratação para o setor de Revisão Elétrica.
Ele começou a trabalhar na empresa e, com a ajuda de Ivaldo Gama Barros, Edmilson Papagaio e Augusto César Gato, que eram técnicos mais experientes, transformou-se em um hábil consertador de televisores. O diabo é que seu chefe, o irascível Horácio Índio, um técnico paranaense oriundo da Embratel, não ia muito com a sua cara – aliás, ele não ia com a cara de ninguém, era um anti-social por convicção e gosto. Na primeira oportunidade, demitiu o Baranda, sem qualquer justificativa. Só vim saber da sacanagem quase um mês depois, porque havia viajado para fazer um treinamento em São Paulo.
Como eu já havia me tornado quindim do dono da empresa, o saudoso Matias Machline, fui falar diretamente com o Diretor Industrial, economista Antonio José Areosa, de quem era assessor informal. Expliquei a situação, com argumentos irrefutáveis. Invoquei o testemunho dos técnicos da Revisão Elétrica. Apelei para o lado sentimental e nativista do Tomzé Areosa (o rapaz tinha vindo do interior do Amazonas para tentar a vida na cidade grande e estava sendo sacaneado por um sujeito que nem havia nascido aqui). O certo é que, depois de muita conversa, Baranda foi contratado de novo e enviado para o setor de Calibragem, comandado pelo bonachão Lean Cláudio, meu colega de classe na Utam.

Fábrica da Sharp do Brasil nos anos 70
Em março de 1978, o empresário Matias Machline descobriu um novo nicho no mercado: vender televisores coloridos para a Argentina, que ia sediar a Copa do Mundo. A produção diária de 1 mil televisores praticamente dobrou. O índice de rejeito, idem. Numa época em que os cerca de 2 mil componentes de cada televisor eram inseridos manualmente, um a um, produzir 2 mil/aparelhos dias era uma verdadeira façanha. Isso significava manusear 4 milhões de componentes diariamente. Até hoje não sei como conseguimos.
Em maio, o estoque já estava abarrotado com quase 20 mil aparelhos semi-prontos e defeituosos. Dentro da fábrica, havia pelo menos o dobro de chassis no mesmo estado. Numa jogada de mestre, Antonio José Areosa reuniu os cerca de 80 técnicos existentes na empresa e fez uma proposta irrecusável: quem quisesse fazer hora-extra no período noturno, em um “mutirão de conserto”, não iria receber como hora-extra incorporada ao salário, mas sim um valor fixo por cada aparelho consertado (em valores de hoje, cerca de R$ 50,00). Era uma mão na roda. Quem conseguisse consertar mil televisores, embolsava R$ 50 mil – ou 10 vezes o salário de um Chefe de Departamento. E isso não era tão difícil assim: bastava consertar 4 aparelhos por hora.
Essa verdadeira saga, batizada de “mutirão de conserto”, começava às seis horas da tarde, logo após ser servido o jantar, e ia até às 5h da manhã seguinte. Somente os técnicos e uma meia-dúzia de estoquistas – para fornecer peças de reposição – dentro da fábrica. Cochilávamos das 5h até às 7h, do jeito que desse, e voltávamos a pegar no pesado até o meio-dia. Almoçávamos, e íamos pra casa dormir, para retornar às seis da tarde e recomeçar tudo de novo. De segunda a segunda, incluindo sábados e domingos. Nos sábados, havia uma exceção. Parávamos à meia-noite, e íamos para a gandaia, retornando de lá diretamente para a fábrica. Em pouco mais de um mês, zeramos o estoque de produtos defeituosos. Todo mundo encheu o bolso de dinheiro. Baranda, por exemplo, comprou seu primeiro carro – um transado fusquinha 66.
Em agosto, depois de encabeçar uma greve mal-sucedida, fui demitido da Sharp por justa causa e colocado na “lista negra” do Distrito Industrial. Na mesma época, a Evadin, que então fabricava apenas aparelhos de áudio, se associou à Mitsubishi para fabricar televisores e começou a recrutar, a peso de ouro, os melhores técnicos e engenheiros existentes no mercado. João Pedro Baranda, que havia sido promovido a supervisor de Produção de Controle Remoto na Sharp, foi contratado para ser Chefe do Controle de Qualidade da Evadin, ganhando quase o triplo do salário. O caboquinho de Parintins havia vencido na cidade grande.
No início dos anos 80, João Pedro Baranda resolveu passar as férias em Parintins, para matar as saudades dos parentes. Na casa de seu pai, encontrou uma conhecida da família, que lhe fez uma proposta à queima-roupa:
– Eu estou com um barco de linha parado em Terra Santa, meu filho! – explicou a senhora. – Se você quiser tomar conta da embarcação fazendo a linha Oriximinã-Santarém, eu te dou 30% do lucro.
Baranda nunca tinha estado em Oriximinã ou Santarém, mas não pensou duas vezes. Aceitou a proposta no ato.
Quando voltou a Manaus, para pedir as contas da Evadin, deixou seu gerente perplexo. Ele era um dos melhores quadros da empresa. O gerente acenou com aumento de salário, estágio no Japão, na fábrica da Mitsubishi, curso intensivo de inglês e uma série de outras mordomias, mas Baranda estava irredutível. Ficou acertado que, se em seis meses as coisas não saíssem conforme o previsto, ele retornaria a Manaus para reassumir seu cargo na empresa. Baranda se despediu do gerente e se mandou para Terra Santa. Nunca mais colocou os pés no Distrito Industrial.
Infelizmente, as coisas não saíram conforme o previsto. Na terceira viagem do barco, o comandante dormiu no leme e entrou no meio do mato deixando a embarcação montada em cima de um gigantesco toco de árvore. Os passageiros entraram em pânico. Com a gritaria, Baranda saiu do camarote e pisou em uma cobra, que havia – sabe-se lá como! – ido parar no convés. O barco havia se transformado em um hospício, com gente querendo se jogar n’água e sendo contida à força. Um outro barco, que vinha logo atrás, aproximou-se para prestar socorro.
Eles amarraram um cabo de aço na traseira do barco encalhado e a outra ponta na proa do segundo barco. Quando este deu marcha-ré, aconteceu o inimaginável: toda a parte traseira do motor encalhado foi arrancada violentamente. Cozinha e sanitários ficaram sobre um vão livre. O pânico voltou a se instalar no barco. Depois de acalmar os passageiros, Baranda seguiu até Óbidos no barco que tentara o resgate, para providenciar uma balsa e refeições para passageiros. Sem dinheiro – havia investido sua indenização em melhorias no barco – lembrou-se que tinha Cr$ 80,00 numa conta no Banco do Brasil, em Oriximinã.
O gerente da agência em Óbidos não quis nem perder tempo consultando o seu saldo. Já era meio-dia, horário em que todo o comércio se fechava na simpática cidade paraense para só reabrir às três da tarde. Urrando de fome, Baranda ficou pensando no que fazer, sentado sobre um monte de casca de castanhas, catando alguma sobra das amêndoas para enganar o estômago. Por volta das três da tarde, ele se lembrou do nome de um comerciante chamado Fortunato Chocron. Num ponto de táxi, ensinaram o endereço do empresário.
Baranda, que não conhecia o comerciante pessoalmente, contou sua história. Chocron trocou o cheque para Baranda e lhe emprestou uma balsa, um empurrador, uma talha patente e uma roladeira (serra circular). Tudo na base da confiança. Quando Baranda retornou ao local do desastre, um outro barco já havia conseguido retirar o barco encalhado do meio do mato e ele se preparava para seguir viagem até Santarém. Baranda retornou a Óbidos e foi agradecer ao comerciante:
– Mestre, eu queria saber quanto eu lhe devo? – indagou Baranda.
O comerciante respondeu com uma outra pergunta:
– Meu filho, o senhor já resolveu o seu problema?
– Já, graças a Deus! – respondeu Baranda.
– Então era só isso que eu queria! – devolveu o comerciante. – Que você resolvesse o seu problema! Você não me deve nada!
Baranda se despediu do comerciante sem saber como retribuir aquele favor. Na época, Fortunato Chocron já era uma dos homens mais ricos do Pará, exportando castanha (que ele comprava desde os contrafortes do Acre), cumaru, andiroba, marapuana, madeira, etc.

Santarém, a Princesinha do Tapajós
O barco passou uma semana no reparo e logo voltou a fazer a linha Oriximinã-Santarém. Para economizar nos custos, Baranda morava no barco e fazia, ele próprio, o carregamento das mercadorias e teréns dos passageiros. Depois, para preencher a falta do que fazer nos sábados e domingos, quando o barco ficava parado, Baranda começou a comprar tomates e cebolas para revender na feira de Oriximinã. Ensacando os produtos e cobrando mais barato, para ganhar no volume de vendas, ele descobriu que seu negócio era mesmo o comércio.
Um dia, o gerente do Banco do Brasil lhe procurou para que ele levasse uma televisão colorida para ser consertada em Santarém, porque o aparelho não estava mais ligando. Baranda abriu o televisor e percebeu que era um fusível queimado. Ele substituiu a peça defeituosa e meia-hora depois – para impressionar o cliente, claro! – devolveu o aparelho ao gerente, que ficou surpreso.
Baranda então explicou que era técnico em eletrônica e que ele não precisava pagar nada pelo conserto. O gerente ficou tão satisfeito que resolveu presentear Baranda com um talão de cheque Ouro (cada folha valia Cr$ 300,00 e o banco honrava o cheque mesmo que o cliente não tivesse dinheiro na conta. Ou seja, como o talão tinha 20 folhas, Baranda havia colocado as mãos, sem querer, em Cr$ 6 mil, graças a um simples fusível.).
Ele, então, começou a visitar os comerciantes de Oriximinã para saber se não estavam precisando de mercadoria, que ele poderia trazer de Santarém. Começaram a aparecer os pedidos de linha corrente, fecho-éclair, ilhoses, botões, agulha de mão, agulha de máquina e outros itens de armarinho. Para começar a trazer feijão, arroz, açúcar, charque, enlatados, etc, foi um pulo. Sua engenhosa capacidade de apostar no escuro faria corar os economistas e financistas mais conservadores.
Baranda chegava em Santarém, dirigia-se ao Banco do Brasil e transformava os cheques Ouro em dinheiro vivo. Depois ia às compras, barganhando com os comerciantes locais – já que estava pagando à vista – com a convicção de um judeu ortodoxo. No dia seguinte, retornava a Oriximinã, entregava as mercadorias, recebia o dinheiro também à vista e depositava a grana no Banco do Brasil. Como os cheques de Santarém levavam, em média, 15 dias para cair na conta, Baranda começou a ter um excelente saldo médio. Que ele, espertamente, transformava em novos talões de cheque.

Mercado Ver o Peso em Belém do Pará
O problema é que a dona do barco cedido a Baranda – e supostamente sua sócia – tinha um outro barco, bem maior, que fazia linha para Belém e trazia mercadorias de lá para vender em Óbidos, Oriximinã, Terra Santa, Faro e Nhamundá. Só que chegou uma determinada época em que o barco do Baranda ancorava no trapiche de Oriximinã, ao lado do barco da patroa, vendendo as mesmas mercadorias por um preço bem mais baixo.
Para evitar a concorrência predadora, ela pediu seu barco de volta e Baranda perdeu o emprego. Triste como um dia de fome, ele desembarcou em Santarém apenas com uma pequena maleta e meia dúzia de objetos pessoais. Passou a noite em claro, num hotel pulguento, sem saber o que fazer.
Na manhã seguinte, foi ao aeroporto, comprou uma passagem e se mandou para Belém. Horas depois, estava batendo na porta da casa de sua ex-patroa. Ela tomou um susto:
– O que é que você está fazendo aqui?
– Não é nada não, mas é que lá no hotel eu estou pagando pra dormir, estou pagando pra comer, estou sem uma fonte de renda e não sei o que fazer da vida. Eu queria que a senhora me desse um agasalho…
– Você está chateado comigo, por que eu lhe dei sua conta?
– Não, em absoluto. Eu só quero um lugar pra eu ficar enquanto penso no que vou fazer…
Sua ex-patroa concordou. Baranda passou três semanas na maior mordomia, só comendo, dormindo e vendo televisão. Até que um dia, na hora do almoço, a ex-patroa soltou uma indireta.
Olhando para uma das filhas, ela disparou o exocet:
– Rutinha, minha filha, por que você não casa logo com o Baranda. Assim, pelo menos, ele não precisa mais ir embora daqui…
A mocinha enrubesceu. Baranda entendeu o recado e resolveu tirar o time de campo. Se demorasse mais uns dias, ia acabar mesmo casando.
Quando ainda estava trabalhando na Sharp, Baranda costumava gastar seu décimo-terceiro comprando vitelos, que mandava para a fazenda de seu pai, em Parintins. Pelos seus cálculos, já possuía umas 20 reses.
Na mesma época, ele havia comprado títulos de vários clubes de Manaus, como Bancrévea, Rio Negro, Olímpico, Cetur, etc. Também havia deixado em Manaus, na casa de um amigo, seu velho fusca 66, um aparelho de som e uma linha de telefone (antes da desregulamentação do setor promovida pelo FHC nos anos 90, possuir uma linha telefônica era um verdadeiro luxo). Ele então resolveu vender as reses, os títulos, o carro, a linha telefônica e o aparelho de som, para começar uma vida nova.
Baranda se mandou de Belém para Parintins, de lá foi a Manaus, retornou novamente a Parintins e, com todo o seu patrimônio transformado em dinheiro vivo, viajou para Alenquer, a fim de negociar com o primeiro dono de barco que estivesse disposto a acompanhá-lo na aventura. Não precisou esperar muito.
Um sujeito tinha um barco, mas não sabia o que fazer com ele. Baranda juntou a fome com a vontade de comer. Ele encarou o sujeito e jogou os dados na mesa:
– Olha, parente, eu tenho uma linha de passageiros Oriximinã-Santarém e quero propor o seguinte! – avisou. – Você fica com a linha de passageiros e eu trabalho de graça pra você no comando do barco. Em troca, você leva as minhas mercadorias de graça.
O sujeito concordou.
Baranda comprou uma camionete C10, com 10 cheques Ouro pré-datados, e ele mesmo começou a distribuir as mercadorias em Oriximinã, economizando no carreto.
Com seis meses, o porão do barco de linha estava carregando, praticamente, apenas as mercadorias do invocado empreendedor. O sócio resolveu rediscutir a negociação.
– Então, vamos fazer o seguinte! – propôs Baranda. – Eu fico na terra, você vai trabalhar no barco e continua com a linha de passageiros, e eu pago 50% do frete das mercadorias que você trouxer pra mim.
O sujeito concordou.
Baranda alugou uma casa caindo aos pedaços e cheia de goteiras, para ser sede da “distribuidora”. Quando chovia, ele precisava cobrir as mercadorias com uma lona preta. Numa puxada, nos fundos da casa, colocou sua rede e um fogão de duas bocas, onde fritava ovos e esquentava sardinhas. E foi tocando a vida.

A cidade de Porto Trombetas
Quando surgiu uma grande ampliação da Andrade Gutierrez, em Porto Trombetas, no Pará, a empresa Reicon, dona dos postos Petroamazon, começou a vender cimento para a obra, que ela comprava em Santarém. Nas cidades do interior, essas notícias correm rápido como fogo na mata atlântica.
Assim que soube da história, Baranda procurou o comprador da Andrade Gutierrez e jogou a isca:
– Olha, parente, se tu comprares cimento da minha empresa, eu divido o lucro meio a meio contigo!
O sujeito nem pensou duas vezes. Topou na mesma hora.
Baranda não tinha capital para vender cimento para a Andrade Gutierrez, mas tinha coragem de sobra. Ele começou a comprar cimento do município de Capanema, perto de Belém, também conhecido como a “Terra do Cimento” por sediar a fábrica de Cimentos Brasil S.A (Cibrasa).
Ele pagava a mercadoria à vista com o famoso cheque Ouro. As balsas chegavam em Porto Trombetas antes dos cheques serem descontados. Seu “sócio” pagava a mercadoria recebida, à vista, em dinheiro, e ele depositava no banco, para cobrir os cheques. O lucro das operações era rateado entre os dois. Era uma transação mais fácil do que pescar em bilha.

João Pedro e Márcia Baranda
Estava indo tudo às mil maravilhas, quando um dia, no meio da viagem, a balsa que transportava o cimento quebrou. Dessa vez os cheques iam chegar primeiro do que a mercadoria. Baranda procurou o “sócio”.
– Olha, parente, eu vou emitir as notas fiscais, mas não vou entregar a mercadoria. Só que você tem de me pagar, para eu poder cobrir os cheques voadores. Se der galho, explica pros diretores da Andrade Gutierrez que você não quer receber a mercadoria agora porque não precisa e diz que me mandou segurar o cimento em Oriximinã. Nesse meio tempo, eu arrumo a balsa e entrego a mercadoria. Ou a gente faz isso, ou nós dois vamos nos lascar de vez…
Sem outra alternativa, o “sócio” concordou. O dinheiro da compra foi antecipado, os cheques foram cobertos e, três dias depois, o cimento foi desembarcado em Porto Trombetas. Com o lucro auferido na venda de cimento, Baranda investia na distribuidora de Oriximinã, que já se transformara na maior empresa comercial da cidade. Mas seu sonho era retornar para Parintins.
Em maio de 1984, Baranda tirou uma semana de férias para rever os parentes em Parintins e resolveu conhecer o curral do bumbá Caprichoso. Durante o fuzuê, o empresário Dodozinho Carvalho acabou lhe apresentando para uma bela morena chamada Márcia, que era namorada do apresentador do bumbá Garantido, Paulinho Faria, membro de uma das mais tradicionais famílias do município (sua mãe, Mariângela Faria, foi madrinha eterna do Garantido e ficou famosa porque só admitia as cores vermelha e branca em sua residência, inclusive na piscina).
A história do casal de namorados já fazia parte do folclore da ilha. Sobrinha do prefeito Gláucio Gonçalves, Márcia era fanática pelo boi Caprichoso, mas namorava desde a adolescência com Paulo Faria, que passou 25 anos como apresentador do boi Garantido. Por culpa da rivalidade entre os bumbás, os dois acabavam brigando no pré-período do festival de bumbás de Parintins e ficavam de mal “pro resto da vida”. Depois da ressaca da festa bovina, o casal reatava o namoro como se nada tivesse acontecido até brigar no ano seguinte.
Aos 22 anos de idade, Márcia Auxiliadora era filha de Vilma e Raimundo Teixeira Cardoso, o seu “Preto Buretama”, e irmã do ex-vereador Ray Cabeça, da missionária irmã Maristela, do médico Francisco Cardoso, do ex-presidente do Sulamerica Flávio Cardoso, do funcionário de segurança Cristiano Cardoso e do empresário Cesar Cardoso.
Irmão do atual presidente do IDAM e ex-deputado estadual Valdenor Cardoso, cunhado do ex-deputado estadual Geraldo Medeiros e cunhado da ex-diretora do Sistema Alvorada de Comunicação Raimunda Ribeiro da Silva, seu Preto, como gostava de ser chamado, era um comerciante muito conhecido, especialmente pela sua panificadora Edem, considerada a primeira de Parintins, e do Restaurante Du Preto.
Botafoguense de coração e Sul-americano roxo, seu Preto Buretama coordenou com os filhos, por várias vezes, a Festa da Padroeira da Diocese de Parintins, Nossa Senhora do Carmo. Ele faleceu no dia 16 de março de 2021, em São Paulo, aos 83 anos.
Baranda ficou enfeitiçado pela brejeirice da morena, que tinha um sorriso verdadeiramente cativade. Ficou mais impressionado ainda ao saber que ela trabalhava com os pais no ramo do comércio desde os 13 anos de idade. Aquela era a sua alma gêmea e ele não perdeu tempo: pediu o telefone dela para ligar qualquer dia. Ela deu.
Quando João Pedro Baranda chegou à sua casa em estado de êxtase, após ter sido apresentado a Márcia no curral do Caprichoso, não encontrou uma mísera caneta para anotar o telefone da menina. Com medo de dormir e acordar com um branco na memória, ele utilizou dezenas de palitos de fósforo para escrever o número do telefone. De volta para Oriximinã, começou a disparar telefonemas diários para a nova musa.
Exatamente no dia 12 de junho, no Dia dos Namorados daquele ano, Márcia, mais uma vez, brigou feio com Paulinho Faria por causa da rivalidade entre os bumbás e ficou injuriada. Quando soube da história, Baranda colocou as balas de prata no velho Colt 45, montou no melhor alazão disponível e se mandou para a cidade, disposto a raptar a mocinha e enfrentar, de peito aberto, os vaqueiros do boi contrário. Trocando em miúdos: no mesmo dia, Baranda criou coragem e pediu para namorar a morena brejeira.
Provavelmente, só para sacanear com Paulinho Faria, Márcia aceitou. Os dois começaram a namorar e Baranda virou torcedor do Caprichoso desde criança. Suas idas a Parintins, para ver a namorada, ficaram mais frequentes. Ele resolveu montar uma filial da sua distribuidora na cidade e a batizou de Depósito de Cimentos Tropajós (mistura de Trombetas e Tapajós, nome dos dois rios onde efetuava negócios). Márcia nunca mais quis saber de Paulinho Faria.
No dia 24 de janeiro de 1985, os dois namorados resolveram casar e foram morar numa casinha da Sham, que ninguém queria. A casa estava localizada em um verdadeiro pântano. Mal comparando, era um minúsculo caixote de concreto cercado de lama por todos os lados. Pra completar, vivia infestada de sapos.
Um dia, Márcia, gestante de seis meses, sentou no vaso sanitário, e um sapo, que estava dentro do vaso, saltou em sua direção. O susto foi tão grande que ela quase perdeu a criança.
Para combater a praga anfíbia, Baranda comprou patos, marrecos e gansos, usou vários tipos de inseticidas, inventou armadilhas com alçapões e cercas elétricas, defumou a casa com arruda e alecrim, espalhou sal grosso no entorno da residência, enfim, fez o diabo a quatro, mas foi inútil. Os sapos venceram.
Sem outra saída, o jovem casal teve que aprender a conviver com aquela presença incômoda, que aparecia nos locais mais inconvenientes (em cima da cama, dentro da pia, nos sofás da sala, em cima da televisão e por aí afora). O único consolo dos futuros papais é que naquele ano o Caprichoso sagrou-se campeão e logo depois nasceu Egreen, a primogênita do casal.
Márcia, além de uma excelente companheira – tanto que estão juntos há até hoje –, mostrou-se uma trabalhadora “pé de boi”, igual ao marido. Juntos, os dois começaram a construir um verdadeiro império, fruto de muito trabalho e dedicação. Baranda vendeu tudo que possuía em Oriximinã e reinvestiu em Parintins. Construiu um primeiro supermercado e depois não parou mais.
Hoje, ele é o principal comerciante do município, com uma diversificada carteira empresarial, que envolve desde o Kuati Clube até a criação de gado, em Nhamundá, passando por distribuidora de bebidas, lojas de material de construção, balsas, empurradores, fábrica de gelo, etc.
Além de Egreen, o casal teve uma segunda filha, Érika, mãe de Maria Clara, primeira neta dos dois.
Por imposição de Márcia Baranda, ainda nos anos 80, João Pedro Baranda começou a frequentar os ensaios do bumbá Caprichoso e a olhar para a brincadeira dos bois de um jeito mais pragmático. Sua conclusão: se o festival deixasse de ser aquela coisa amadora, exibida em um simples tablado de madeira, e começasse a se profissionalizar, aquela festa iria crescer. E ele também estava disposto a crescer junto com a festa.
Na época, a arrecadação de recursos para a brincadeira era feita por meio de quermesses. Os brincantes de mais posses doavam pratos da culinária local ou caixas de cerveja, para serem vendidos durante a festa. Parte do dinheiro arrecadado era investida em chumbo e pólvora para alguém abater garças, ciganas e outros pássaros – única maneira de conseguir penas para as tribos indígenas. Outra parte do dinheiro era investida na aquisição de cipós, fibras de tucum e talas de buriti, que, pintadas, simulavam penas de faisão. Ou seja, além de completamente artesanal, a brincadeira dos bumbás era, até certo ponto, meio antiecológica.
A situação começou a mudar quando Amazonino Mendes assumiu o governo pela primeira vez, em 1987. No mesmo ano, ele doou cerca de 1.500 salários mínimos para cada bumbá investir na brincadeira (em valores de hoje, cerca de R$ 2,5 milhões). As penas de pássaros nativos foram substituídas pelas plumas e penas importadas, vendidas em Manaus, na Importadora Tropical, e no Rio de Janeiro, na famosa Casa Costa. A diferença é que na Importadora Tropical, onde o Garantido fazia suas compras, um item custava 10 vezes mais caro do que na Casa Costa, onde o Caprichoso se abastecia.
O festival foi um sucesso inesquecível. A lenda conta que o governador Amazonino Mendes ficou tão empolgado com a apresentação do seu boi de coração, o Garantido (o campeão daquele ano foi o Caprichoso), que, tão logo a poeira baixou, começou a construir, a toque de caixa, o Bumbódromo de Parintins, inaugurado no ano seguinte, durante a 24ª edição do Festival. O Garantido sagrou-se campeão na nova arena e repetiria o feito no ano seguinte.
De qualquer forma, para quem estava acostumado a ver Manaus como o umbigo do mundo, a construção daquela obra monumental no meio da selva não passava de mais um delírio de grandeza do governador. A imprensa amazonense caiu matando em cima do Bumbódromo. Mas Amazonino intuíra, com razão, que aquela brincadeira poderia transformar Parintins em um importante pólo turístico e cultural e resolveu apostar todas as suas fichas. Começava uma nova era para os bumbás de Parintins.

Curral Zeca Xibelão
Em 1989, Baranda, já no papel de conselheiro informal do presidente Rai Viana, do Caprichoso, lançou uma sugestão, logo aceita pela diretoria, de construir um galpão para guardar as sobras do desfile. Até aquela data, os dois bois “acabavam”, literalmente, no último dia. Como não tinham onde guardar o material utilizado para uma possível reciclagem no ano seguinte, o destino imediato era a lixeira do município. Depois do dia 30 de junho, era impossível fazer uma apresentação-extra dos bumbás, mesmo que fosse para ser assistida pelo presidente da República em pessoa.
Na base do mutirão e da solidariedade, os simpatizantes do touro negro começaram a contribuir com o que fosse possível. Uma senhora doou 300 tijolos, que comprara para fazer um banheiro em sua casa. Outros doavam uma saca de cimento. Pedreiros apresentaram-se para trabalhar de graça na obra. Era um trabalho de formiguinhas, mas que estava dando certo. Em cada reunião eram recolhidos os donativos e levados para o canteiro de obras. O galpão, localizado no atual curral Zeca Xibelão (que ainda não existia), começou a ser levantado.
No início de 1990, o monumental galpão estava pronto, mas faltava o principal: a cobertura. Foi quando o engenheiro civil Pauderney Avelino, então debutando na política como candidato a deputado federal, e o ex-prefeito Gláucio Gonçalves, candidato a deputado estadual, procuraram João Pedro Baranda, um eterno crítico de todas as administrações municipais da ilha:
– O que é que você quer para ficar do meu lado? – questionou o ex-prefeito.
– Olha, seu Gláucio, do seu lado eu não vou ficar. Mas eu prometo ficar calado se o senhor der as telhas para cobrir o galpão do Caprichoso! – devolveu Baranda.
– Se for assim, negócio fechado! – concordou o ex-prefeito. – Faça um levantamento do que vocês vão precisar, que irei providenciar!
Gláucio Gonçalves cumpriu a palavra e comprou as telhas. Pauderney Avelino pagou a mão-de-obra para executar o serviço. O primeiro galpão de um bumbá de Parintins, fruto do trabalho coletivo de seus brincantes, foi inaugurado com pompa e circunstância.
No festival daquele ano, o apresentador do bumbá Garantido, Paulinho Faria resolveu apelar. Enquanto o Garantido se apresentava na arena, ele tentou vender gato por lebre para os jurados.
– Senhores jurados, senhores jurados, prestem atenção nesse boi que está dançando na arena! – começou ele, com uma voz trêmula, como se estivesse prestes a irromper em um choro emocionado. – Esse é um boi dos humildes, dos pobres moradores da Baixa do São José. É um boi do povão, sem condições financeiras de apresentar fantasias mais elaboradas. Esse é um boi diferente do contrário, do boi dos ricos, que esse ano inaugurou uma obra faraônica nesta cidade. Quando forem dar as notas, levem isso em consideração!
Os jurados não caíram no canto de sereia do apresentador e o boi Caprichoso se tornou campeão.

Curral Cidade Garantido
Em 1991, Zé Walmir foi eleito presidente do Garantido. Na época, Baranda e Mario Guerreiro eram donos da Fabriljuta, que estava praticamente desativada, mas possuía um galpão gigantesco ao lado de um trapiche. Sem Márcia saber, Baranda procurou o presidente do boi contrário e lhe fez uma proposta:
– Zé Walmir, vamos fazer o seguinte. Eu vou ter dar o galpão da Fabriljuta, para vocês usarem como depósito de material. No dia em que tu tiveres condições de fazer um pra vocês, tu me devolves o meu!
– Mas lá não tem luz! – avisou Zé Walmir.
– Eu te dou os cabos elétricos para vocês puxarem da rua! – devolveu Baranda.
– Mas lá não tem lâmpadas! – insistiu Zé Walmir
– Eu te dou as lâmpadas, as calhas e os interruptores! – devolveu Baranda.
– Mas aquilo lá está muito destiolado! – explicou Zé Walmir
– Você vê o que precisa ser feito que eu pago a reforma! – devolveu Baranda.
Sem outros argumentos negativos para esgrimir, Zé Walmir aceitou o gigantesco galpão da Fabriljuta. Com o passar dos anos, ele se transformou na fantástica Cidade Garantido.
Quando Márcia Baranda ficou sabendo da história, quis pedir o divórcio. O seu próprio marido ajudando o boi contrário? Não, pelamordedeus, mas aquela era a mais deslavada traição que alguém poderia cometer. Foi um custo da moléstia para João Pedro Baranda descascar o abacaxi.
– Minha mulher, não existe Garantido sem Caprichoso, nem Caprichoso sem Garantido! – explicou ele. – Nós não podemos acabar com o Garantido. O Garantido não aguenta três porradas, que ele vai se acabar. O Caprichoso aguenta perder três, quatro, cinco, dez vezes seguidas, e não vai se acabar. Mas o Garantido não aguenta três porradas, que ele não tem estrutura. E se um dos dois bois acabar, se acaba também o festival!
Não convencida pela argumentação do marido – para ela, ajudar o boi contrário é pior do que bater na mãe! –, Márcia fez greve de sexo durante três meses e só descobriu que Baranda tinha razão da pior forma possível: com uma desgraceira que se abateu sobre o próprio Caprichoso.
Até o festival daquele ano, os bumbás faziam um único enredo do boi, que era apresentado aos poucos. No primeiro dia, exibiam 70% do enredo. No segundo dia, 80%. No último dia, 100%. Ou seja, as tribos, destaques, itens oficiais e alegorias do primeiro dia, salvo pequenas modificações, também entravam na arena no segundo e no terceiro dia. Era preciso um cuidado extremo durante as apresentações para as fantasias não se danificarem.
No dia 28 de junho de 1991, numa noite de céu estrelado, o bumbá Garantido fez uma apresentação medíocre, abaixo da crítica, e saiu da arena quase vaiado. O bumbá Caprichoso percebeu a oportunidade de decidir a disputa logo no primeiro dia e entrou no Bumbódromo com força total: as melhores fantasias, as melhores alegorias e as tribos mais bonitas foram convocadas quase às pressas.
Assim que o touro negro iniciou sua evolução, levando a galera azul e branca ao delírio, o pessoal do contrário intuiu que o título tinha ido pras cucuias e começou a deixar o Bumbódromo.
De repente, sem que ninguém esperasse, caiu um aguaceiro infernal pra Noé nenhum botar defeito. Durante 50 minutos, um temporal diluviano varreu a ilha e, literalmente, detonou todas as alegorias, fantasias, capacetes e cocares das tribos do Caprichoso. A maioria dos índios ficou só com a pintura de guerra no corpo.
Quando, no meio do temporal, o levantador de toadas, Arlindo Jr., começou a cantar uma pungente toada, que dizia “Nossa Senhora, não molhe mais esse chão”, a galera do Caprichoso começou a chorar copiosamente.
O apresentador do bumbá, Gil Gonçalves, ficou mudo, incapaz de comentar o que estava acontecendo. A Marujada de Guerra só faltou esfolar as mãos para retirar algum som dos tambores encharcados de água. O título daquele ano, literalmente, tinha ido pro brejo. A galera do Garantido voltou em peso para a arena, a fim de comemorar a desgraça do contrário.
Para salvar algumas das fantasias para o desfile da noite seguinte, a diretoria do Caprichoso transformou o entorno do Bumbódromo em uma feira de exibições de compressores. Mas era impossível secar as penas sem destruir ainda mais as fantasias. Foi um tratamento de choque. O Caprichoso desfilou nas duas noites seguintes apenas para cumprir tabela. A diretoria do touro negro decidiu, então, que, a partir de 1992, haveria um enredo para cada noite. O Garantido copiou a idéia e o formato se mantém até hoje.
Os problemas dos bumbás, entretanto, estavam apenas começando. Naquele ano, o governador Gilberto Mestrinho havia assumido o governo pela terceira vez e mantinha um desprezo olímpico pelo Festival de Parintins. Seu interesse era revitalizar o carnaval de Manaus, que estava agonizante, e para tanto investiu todo o seu esforço na construção do Sambódromo, ao lado da Vila Olímpica. As verbas para os bumbás de Parintins foram reduzidas drasticamente. Nos quatro anos de governo do boto navegador, Garantido e Caprichoso passaram a pão e água.
Para compensar a falta de verbas, a criatividade dos parintinenses explodiu. Era a única maneira de fazer a brincadeira continuar evoluindo e atraindo, cada vez mais, turistas para a cidade, gerando emprego e renda no município. Em Manaus, o Movimento Marujada, do Caprichoso, e o Movimento Amigos do Garantido, desdobravam-se em promoções para angariar recursos e enviar para os bois da ilha. O sentimento reinante era um só: não deixar a peteca cair.
A situação de penúria só terminou quando Amazonino Mendes voltou ao governo em 1995. Foi ele que arregimentou a iniciativa privada para investir na brincadeira e, por meio de um incessante trabalho de divulgação e promoção, ao longo dos seus oito anos de mandato, deu visibilidade ao Festival, tanto no resto do Brasil, como no exterior.
Hoje, calcula-se que o Festival movimente R$ 50 milhões e gere 20 mil empregos, entre fixos e temporários. Além do governo do Estado e da Coca-Cola, a festa conta também com o patrocínio do Governo Federal, Bradesco, Kaiser, Amazônia Celular, Correios, Petrobras, Nestlé e Força Sindical.
– Quer queiram, quer não, o Amazonino é o pai desse festival! – analisa João Pedro Baranda. – Quem acompanhou esse festival como nós, sabe! O povo de Parintins tem obrigação de ser grato ao Amazonino. Se esse festival não existisse, ninguém vinha a Parintins. Por que as pessoas não vão a Faro ou Nhamundá? Porque lá não tem nada. O que faz essa ilha ser maravilhosa, ser fantástica, é esse boi. Esse boi move moinhos!
Formada em administração de empresas com especialização em administração pública pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Márcia Baranda resolveu se aventurar na política e pautou sua trajetória levantando a bandeira do empreendedorismo, com foco no trabalho duro, na vontade de servir à comunidade e no compromisso de promover o bem-estar das pessoas.
Como presidente da Associação Folclórica Boi Bumbá Caprichoso, (2011-2013), tendo sido a primeira e única mulher a exercer o cargo até agora, Márcia desenvolveu uma gestão de excelência executando projetos de promoção cultural e turística, atividades educacionais com formação de crianças e adolescentes e ações de assistência a famílias em vulnerabilidade social.
Em 2016, Márcia foi candidata à Prefeitura de Parintins, mas ficou em segundo lugar no pleito, tendo sido derrotada por Frank Bi Garcia.
Na eleição de 2020, ela abriu mão da candidatura majoritária e apoiou a reeleição de Bi Garcia, se candidatando a vereadora, onde obteve seu primeiro mandato.
Em 2024, foi reeleita vereadora e é a atual vice-presidente da Câmara Municipal de Parintins. Márcia Branda também é a única representante feminina no legislativo municipal.
Tudo índio, tudo parente.