CORRIA O ano de 1969, ano em que Tostão se tornou titular na Seleção Brasileira. O time verde-amarelo fez um amistoso com o Millonarios, time colombiano, em Bogotá, preparando-se para enfrentar a Colômbia pelas eliminatórias da Copa do Mundo poucos dias depois.
Era o dia 1º de agosto. Tostão, um dos maiores craques que o futebol mundial conheceu, domina a bola, mas não consegue evitar o choque com o zagueiro Castaños e machuca o olho esquerdo, para preocupação de todos os amantes do futebol-arte.
Em 24 de setembro de 1969, outro lance viria a dividir a carreira de Tostão. Jogavam Corinthians e Cruzeiro, pelo Torneio Roberto Gomes Pedrosa, no Pacaembu, à noite. Tostão recebe o impacto de uma bola chutada pelo zagueiro Ditão de raspão no mesmo olho esquerdo e sofre descolamento de retina.
A torcida brasileira, de Norte a Sul, acompanha o drama de um craque genial. Do craque e do cidadão Eduardo Gonçalves de Andrade, às vésperas do Mundial do México 1970.
Em 2 de outubro de 1969, Tostão é submetido a uma cirurgia em Houston (Estados Unidos), pelo médico mineiro Roberto Abdalla Moura, no Hospital Metodista da cidade. Todos torciam para sua recuperação.
Um jovem de 22 anos, inteligente, culto, leitor de autores incomuns aos seus companheiros de profissão, ligado nos acontecimentos do mundo, fã do arcebispo dom Helder Câmara, preocupado com as injustiças sociais, defensor da liberdade e da democracia, temas pouco afeitos ao universo do futebol.
O técnico João Saldanha saiu da seleção e deu o lugar a Zagallo. Este não acreditava na recuperação do craque mineiro, que só foi liberado para voltar às atividades a três meses da Copa. O médico Lídio Toledo, também não. Mas, não se sabe se por feeling, pela velha estrela, por superstição, o fato é que Zagallo deu todas as chances a Tostão.
Às vésperas do embarque, o craque reassumiu seu lugar no time, ao lado de Pelé. E a dupla atuou as seis partidas da epopeia do tricampeonato mundial. No dia seguinte a cada jogo, o doutor Abdalla era personagem de uma operação sigilosa que o levava à concentração brasileira, para examinar o olho esquerdo que mais preocupava o Brasil.
Mesmo com todo risco e com desconfiança dos dirigentes, Tostão disputou a Copa de 1970 com a camisa 9 e voltou do México com seu mais importante título: tricampeão mundial. Quem não se lembra da jogada genial na partida contra a Inglaterra (então campeã mundial), quando driblou vários adversários e originou o gol da vitória, feito por Jairzinho? Fez ainda dois gols contra o Peru naquele Mundial. Boa parte da crítica europeia o apontou como o maior craque do Mundial.
Afinal, disputar uma Copa sem o talento inigualável de Tostão seria um risco muito grande. Por força de um sopro dos deuses da bola, Tostão venceu todos os obstáculos e foi ao México, onde desfilou jogo após jogo, toda a sua arte. De seus pés – e de seu cérebro – surgiram jogadas empolgantes e gols decisivos. E Tostão, que por pouco não foi à Copa, acabou-se transformando em um dos heróis da conquista do tricampeonato mundial pelo Brasil.
Nascido no dia 16 de janeiro de 1969, em Parintins, filho de Florildes (“Dona Flor”) e Henrique Assayag, David Assayag Neto ainda não tinha completado dois anos de idade quando esse drama do jogador Tostão começou a se desenrolar.
Primo por parte de pai do arquiteto Simão Assayag, David Assayag teve uma infância e adolescência igual à de todos moleques da cidade: estudando de manhã, brincando à tarde e descansando à noite. Desde os 10 anos de idade, sua voz melodiosa já era vista como uma “benção divina” e ele se esmerava em decorar as letras dos cantores de rádio que ouvia em casa.
Alto e magro para os padrões locais, David Assayag começou a cantar aos 14 anos, se arriscando por áreas menos exóticas que as toadas. Fã de Emilio Santiago, Chico Buarque e Tom Jobim, fazia shows de MPB em barzinhos da cidade. Foi quando sua vida começou a virar de ponta-cabeça, em um episódio que não gosta de lembrar.
Era para ser um dia comum e rotineiro, como todos os outros. Ele foi à escola no período vespertino, depois participou de um “rachão” de futebol com os amigos do bairro, onde machucou a cabeça ao receber uma bola chutada com força por um adversário. Além de uma dor de cabeça insuportável, nada de extraordinário aconteceu. Mais tarde jantou em casa e foi dormir. Tudo na maior normalidade possível.
Quando acordou no dia seguinte, sua visão começou a falhar, escurecendo tudo à sua volta. Fez uma bateria de exames para saber se era glaucoma, miopia ou astigmatismo. Nada. Continuou tocando a vida, tendo lapsos de visão de vez em quando, quando tudo escurecia.
Na realidade, o problema na visão de David Assayag começara alguns anos antes, quando ele, ainda criança, tomava banho com outros moleques da mesma idade no Lago do Ropoca, que ficava próximo à casa dele, e, ao mergulhar, bateu com a cabeça em um toco de árvore, submerso nas águas. Foi uma pancada de respeito.
– Foi depois desse baque que comecei a ter problemas com a visão ficando turva e apagando tudo de vez em quando. Somente alguns anos depois foi que aconteceu o acidente com a bola que levei no rosto – explicou.
Aos 18 anos, quando participava de uma excursão musical pelas noites de Belém (PA), se viu envolvido em um acidente de carro, onde machucou a cabeça mais uma vez. A dor de cabeça insuportável da adolescência retornou com força total. Não havia analgésicos que fizessem parar. Só que dessa vez foi bem mais complicado.
Um dia, já em Parintins, ao acordar, percebeu que havia ficado completamente cego. Muitos e muitos anos depois, descobriu que havia sofrido deslocamento de retina.
A retina é uma membrana muito fina, flexível e delicada que reveste a superfície interna da parte posterior do globo ocular. Nela existem receptores fotossensíveis que convertem a imagem luminosa advinda do exterior em impulsos elétricos que, através do nervo ótico, são enviados para área do cérebro em que se processa a visão.
A retina não possui nenhum elemento de fixação especial que a prenda ao globo ocular. É o vítreo, uma substância gelatinosa e transparente, situada entre ela e o cristalino, que a mantém na posição anatomicamente adequada, ou seja, em contato com outras estruturas que lhe garantem suporte e nutrição (vasos sanguíneos e nutrientes).
O descolamento de retina é uma alteração que se caracteriza pelo desprendimento dessa estrutura da superfície interna do globo ocular. Essa separação interrompe o fornecimento de nutrientes e promove a degeneração celular. Por conta disso, os oftalmologistas classificam o descolamento da retina como uma urgência médica. Se não for tratado convenientemente e depressa, pode evoluir para perda total da visão.
Foi exatamente isso que aconteceu com David Assayag. Tivesse tido os recursos financeiros de Tostão, a história seria outra. Mas o cantor era de uma família muito pobre e foi obrigado a conviver com a deficiência visual, sem se abalar, a despeito de ter feito algumas cirurgias para tentar corrigir o problema.
David Assayag iniciou sua carreira de levantador de toadas cantando no boi Caprichoso, no final dos anos 1980, mas não chegou a ser item oficial da arena, participava apenas das gravações de fitas K7 e dos ensaios no curral.
Ele foi um dos fundadores da banda Canto da Mata, que, inicialmente, era independente e bastante eclética, não estando ligada a nenhum dos bois de Parintins. Posteriormente, a banda Canto da Mata foi anexada ao Caprichoso.
– Eu tinha uma certa resistência para entrar no clima da toada, achava que aquela não era minha praia. – relembra o cantor. – Só algum tempo depois assumi a toada como meu ritmo oficial. É uma música com conteúdo, que dá a oportunidade de a gente cantar expressando nossas próprias emoções.
Em 1994, a convite do apresentador Paulinho Faria, um dos maiores fãs do cantor desde seus tempos de Caprichoso, David Assayag tornou-se o levantador oficial de toadas do boi Garantido, onde permaneceu durante 15 anos.
Na época, o cantor morava na casa do compositor J. Carlos Portilho e antes de aceitar o convite lhe consultou a respeito.
– Eu falei que por mim tudo bem, mas que a diretoria do Caprichoso iria comer meu fígado ao saber que eu tinha deixado escapar do nosso firmamento uma estrela de primeira grandeza! – recordou J. Carlos Portilho. – E dei a dica: te muda pra casa da Roseane Novo e fica escondido por lá até o anúncio oficial, que eu vou falar que estava resolvendo uns problemas em Manaus e não sabia de nada!
Com a ajuda do compositor Tadeu Garcia, do Garantido, foi realizada a “operação mudança”, em sigilo absoluto, e David Assayag ficou malocado na casa da Roseana Novo até o anúncio oficial do Garantido, uma semana depois.
Na Baixa de São José, David teve o espaço que sempre mereceu para mostrar o seu talento, ganhar fama internacional e ser reconhecido como a voz mais bonita do Amazonas, sendo batizado pela galera vermelha e branca de “Rei David”, em alusão ao personagem bíblico que derrotou o gigante Golias e foi pai de Salomão.
A sensibilidade artística de David Assayag sempre se sobressaiu frente a qualquer limitação imposta pelas contingências da vida. Como se não bastasse apenas o talento para cantar, soube usar o dom musical e o próprio carisma para abrir portas que o alçaram a episódios históricos, seja vencendo por 15 anos consecutivos como o melhor levantador de toadas do Festival Folclórico de Parintins – feito único na história da celebração tupinambarana –, seja recebendo, em 1997, das mãos do então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, a medalha de “Honra ao Mérito Cultural”, pela sua contribuição em defesa da cultura popular verdadeiramente amazônica.
Em 1996, o Garantido finalmente se firmara em Manaus, o Olímpico Clube era o point nas sextas-feiras e sua atração principal era a voz revelação do festival folclórico de Parintins. David Assayag acabara de estourar com “Vermelho”, então sucesso nacional na voz dele e de Fafá de Belém.
Com tanto sucesso, era hora de fazer um registro à altura de seu talento e para isso a gravação de um show ao vivo era fundamental. O palco escolhido foi o icônico anfiteatro da praia da Ponta Negra, em Manaus.
– Foi um trabalho e tanto. O produtor Marco Mazzola esteve aqui em Manaus para produzir o álbum. Uma equipe enorme se reuniu para fazer o projeto acontecer – recordou o cantor.
O álbum “David Assayag – Ao Vivo na Ponta Negra”, é um registro obrigatório na playlist de quem admira ou curte o ritmo dos bumbás de Parintins. O álbum contém 14 faixas registradas ao vivo. Entre os clássicos, estão obras como “Apocalipse Karajá”, “Lamento de Raça”, “Um Canto Novo”, “Boi do Carmo”, “Vermelho”, “Tambores do Tempo”, “Kananciuê” e muitas outras, que fizeram história nos bois Garantido e Caprichoso.
– Lembro da voz da multidão cantando comigo, do clima de festa, da empolgação da massa. A cada toada, aplausos, gritos, gente cantando junto. Uma noite que marcou minha vida e entrou para a história da música amazonense – diz o cantor.
No final de 2009, Davi foi contratado pelo boi Caprichoso, em uma espécie de retorno às origens, o que gerou bastante polêmica e repercutiu intensamente na mídia amazonense.
Em 2012, teve sua vida contada no enredo do GRES Unidos do Alvorada, do carnaval de Manaus, e também foi um dos homenageados no enredo do GRES Grande Rio, do Rio de Janeiro, que falava sobre a superação.
Em agosto de 2019, David Assayag surpreendeu seus fãs com a notícia que poderia recuperar a visão. Dois meses depois, ele utilizou as redes sociais para anunciar que após uma série de exames não poderia realizar a cirurgia de reversão por seu quadro ser irreversível. O motivo, segundo ele, foram as primeiras cirurgias que não foram bem-sucedidas.
O procedimento cirúrgico seria realizado na cidade portuguesa de Coimbra, assistido pelo médico oftalmologista Antônio Travassos. Desde a chegada no hospital, David compartilhou com fãs e admiradores a expectativa para os exames pré-operatórios. Horas depois, ele dividiu com o público a notícia de que não mais faria o procedimento.
– Passamos mais de três horas na clínica e fizemos todos os exames relacionados à minha vista. Exames bem criteriosos. Infelizmente, não tive uma notícia muito boa. Há uns anos atrás eu fiz algumas cirurgias e, infelizmente, não foram bem-sucedidas, que vieram a danificar os olhos. E como eu passei muito tempo sem fazer tratamento nenhum, infelizmente, não teve condições de realizar o procedimento que o doutor Antônio Travassos faz – declarou David Assayag.
De maneira otimista, David afirmou que estava tranquilo e consciente de tudo.
– Quero agradecer a todas as pessoas que me ajudaram a realizar essa viagem para que eu pudesse realizar esse sonho que, infelizmente, não deu certo. Mas, a vida continua. A gente está tranquilo. Muito obrigado pelas orações, também. Tiveram muitas. Gratidão que eu nunca vou conseguir agradecer na minha vida – complementou.
No ano seguinte, David Assayag voltou ao bumbá Garantido, após um afastamento de 10 anos. E continua encantos as duas galeras com sua voz extremamente melodiosa. É um herói do nosso tempo.