Por Edu Goldenberg
Hoje, na seção Das prateleiras do Buteco do Edu, blog que mantive ativo de março de 2004 a dezembro de 2020, o texto Desassossego, publicado em 28 de outubro de 2011.
(pra F. E. H.)
Suponhamos que vejo diante de nós uma rapariga de modos masculinos. Um ente humano vulgar dirá dela, “Aquela rapariga parece um rapaz”. Um outro ente humano vulgar, já mais próximo da consciência de que falar é dizer, dirá dela, “Aquela rapariga é um rapaz”. Outro ainda, igualmente consciente dos deveres da expressão, mas mais animado do afeto pela concisão, que é a luxúria do pensamento, dirá dela, “Aquele rapaz”. Eu direi, “Aquela rapaz “, violando a mais elementar das regras da gramática, que manda que haja concordância de gênero, como de número, entre a voz substantiva e a adjetiva. E terei dito bem; terei falado em absoluto, fotograficamente, fora da chateza, da norma, e da quotidianidade. Não terei falado: terei dito.” – Fernando Pessoa, página 362, Livro do Desassossego, editora Brasiliense, 2a. edição.
Antes de pedirem a segunda garrafa de cerveja, e quando eu já estava embriagado diante de seus olhos – não por conta da cerveja, parece-me desinfluente dizê-lo, eu bebia no mesmo ritmo que eles – ela deu de citar Fernando Pessoa. Estavam, os dois, em uma mesa na calçada e eu, como de praxe, bebendo de pé, diante do balcão de mármore daquele tradicional bar de pé-direito altíssimo. Era manhã de sábado, de um sábado cinzento, eu estava absolutamente só, pedira uma almôndega acebolada, um dos petiscos mais festejados da casa, e me flagrei, à certa altura, absolutamente absorvido pela conversa daquele casal.
Desde que deixei de fumar que ir-ao-bar passou a ser uma tarefa que me exige certas manobras que visam desviar minha atenção da fissura que, sim, ainda me assalta. Estou já há pouco mais de dois meses longe dos cigarros, mas o problema é que os cigarros não estão longe de mim, estão à minha volta, e todas as fumaças de todos os cigarros parecem gueixas de formas tênues vindo em minha direção, serpentando o ar, sensualmente, em busca de minhas mãos, em busca de meus braços, em busca de meu pescoço, de minha boca, de minha língua… Por isso passei a prestar atenção ao casal diante de mim.
Ele – justificadamente – aturdido diante dos olhos dela (que, mesmo à distância, também me embriagavam). Ela, soberana e evidentemente ciosa da perturbação do companheiro de mesa (não sei, confesso, se ela me percebia – achei, à certa altura, que sim). Ela usava sandálias que deixavam os pés à mostra, as unhas pintadas de branco, as mesmas cores das unhas das mãos, tão lindas quanto os pés, cabelos ora soltos e ora postos num rabo-de-cavalo que ela montava e desmontava (isso também me causou a impressão de certo desconforto) seguidas vezes, e acompanhar os movimentos de seus cabelos também me aturdia.
Pedi a terceira garrafa de cerveja no instante em que ele pedia água sem gás, e dois copos, ao mesmo garçom que me atendera.
Estávamos tão próximos, a mesa era tão perto do balcão, que eu ouvia tudo, e eu punha, ali, no ato de ouvir, toda minha atenção. Mas nada – nada! – me chamava mais a atenção do que os olhos dela. Havia um fogo em seus olhos, um fogo de não se apagar, e justamente quando este samba do Gonzaguinha ecoou no interior do bar foi que me dei conta do quão intensos eram seus olhos. Tristes, profundamente tristes, dotados de um brilho que, apesar de ser dia, reluzia como se fosse noite. Ele falava, o pobre-coitado (senti pena daquele homem e não sei lhes dizer o porquê), e ela sempre punha os próprios olhos num horizonte imaginário antes de responder. Eu me embriagava mais – de seus olhos.
Em determinado momento, pedindo outra cerveja, ele pediu também uma almôndega, e eu pensei que me imitava (eu e minha sensação que não cessa de que sou o centro das atenções). Ele serviu-se e depois estendeu a ela, gentilmente, o garfo já servido, e ela mordeu aquele pedaço, fechou os olhos, elogiou, e eu quis imitá-lo. Não podia, por óbvio.
Suas mãos não se encontraram em momento algum – notei também.
Seus olhos, entretanto, os quatro, os olhos dos dois (estou sendo detalhista para lhes dizer de minha aguda atenção), não se perderam um só momento. Eu, ali, era um voyeur clandestino, subversivo, que sorvia com uma ansiedade de adolescente aquela tensão visível que havia entre os dois.
Ele levantou-se, veio até o balcão, postou-se a meu lado e pediu a conta (pensei, num primeiro momento, que vinha tomar satisfações comigo). Enquanto a conta era feita, enquanto ele pagava, ela pegou uma caneta de dentro da bolsa e escreveu qualquer coisa num guardanapo, amassou, jogou no chão – foi a primeira vez que ela me olhou nos olhos.
Quando eles saíram, claro, fui em direção ao bilhete (pensei ser um bilhete, um número de telefone, um endereço de e-mail).
Não era nada disso.
Estava escrito apenas “desassossego”.
Sua letra era linda. Não tanto, entretanto, quanto ela.