Por Edu Goldenberg
O Samba do Trabalhador, no Andaraí (no Clube Renascença), é mais uma das invenções do Moacyr Luz que deu certo (e continua dando, diga-se).
Falando nele, Moa, e antes de me ater ao assunto principal, quero aqui reproduzir um texto que escrevi em abril de 2017, a pedido da produção de um show que ele fez em São Paulo. Ei-lo:
“Moacyr Luz nasceu em Jacarepaguá, em 1958, na rua Barão e entre os 2 e 3 anos de idade foi morar na rua do Chichorro, no Catumbi, época da qual guarda a primeira visão de que se lembra: ele, com três anos de idade, e o avô, músico da Banda do Corpo de Bombeiros, o ensinando a escrever música. Foi no Catumbi, na zona norte do Rio de Janeiro – cidade que se confunde com sua obra – que começou essa relação indissociável entre o compositor, a música e a zona norte da cidade.
“(…) a zona norte é feito cigana lendo a minha sorte…”, escreveria anos depois Aldir Blanc, um dos principais parceiros de Moacyr.
Se o avô paterno de Moacyr foi quem apresentou ao neto a música, foram seus avós maternos que o apresentaram aos mercados de rua – ambos eram feirantes.
Moacyr morou ainda em Bangu, em Copacabana, no Méier, no Grajaú, na Muda (um pedaço sagrado da Tijuca), mas notabilizou-se por um fenômeno marcante em sua carreira, uma característica muito forte, um traço de sua personalidade: Moacyr sempre vergou o espaço e o tempo na direção da zona norte – a cigana.
Aliado a esse outro traço, um talento dentre tantos que carrega: o de ser agregador. Começou, a certa altura, a fazer reuniões quinzenais em sua casa, já na Muda, zona norte, na rua Garibaldi (no mesmo prédio em que mora Aldir Blanc até hoje), para onde iam Guinga, Fátima Guedes, Leila Pinheiro, Selma Reis, Oscar Castro Neves, Paulinho Pinheiro, Sérgio Natureza, Chico César, Lenine, Dudu Falcão, Beth Carvalho, Leny Andrade, Cláudia, gente que ia lá só pra tocar, cantar, mostrar música nova.
Foi numa dessas reuniões que mostrou “Saudade da Guanabara” quando eram apenas suas a música e a letra, samba que já cantara, muitas vezes, no Caras & Bocas, botequim na Tijuca – zona norte – que ganhou fama já por conta do poder agregador do Moacyr.
Dessa primeira versão, Moacyr lembra apenas dos primeiros versos: “Eu sei / Que o silêncio da madrugada / Faz a gente chorar por nada / Faz um homem sofrer de amor / Chorei / Com saudade da Guanabara / Meia-noite era noite clara / Meio-dia era o meu cantor”.
Beth Carvalho disse ao Moacyr que o samba era ótimo, mas a letra nem tanto. Até que um dia Moacyr, com Paulinho Pinheiro e Aldir em casa, mostrou o samba e pediu uma letra. Aldir subiu e desceu meia hora depois com a primeira metade pronta. E no final do dia, por fax, Paulinho Pinheiro mandou a outra metade daquele que se tornaria hino afetivo da cidade do Rio de Janeiro. Foi feita na Tijuca, zona norte.
Moacyr Luiz inventou o Bar da Dona Maria, na rua Garibaldi, na mesma rua em que morava, um bar que não existia… Não tinha nem queijo, não tinha nada! Mas teve visita de Paulinho da Viola, de Luiz Fernando Veríssimo, de Beth Carvalho, de gente que vinha de todos os cantos da cidade pra ver mais aquele sonho do Moacyr virando realidade.
Ali, no Bar da Dona Maria, Moacyr inventou o bloco “Nem Muda nem Sai de Cima”, que mudou a filosofia da Tijuca – as palavras são do próprio Moacyr.
A Tijuca, que ficava entregue às baratas no Carnaval, quando tijucano tinha que ir pra Região dos Lagos ou atravessar a cidade pra brincar em outros blocos, Simpatia, Barbas, quando não havia a menor possibilidade de ficar por ali…
Moacyr, ao lado das outras pessoas que pensaram o bloco, criou a necessidade de que o enredo falasse da Tijuca ou de um tijucano, e isso começou a recriar um sentimento diferente no bairro. Começava ali essa história do cara achar bacana falar do bairro, do Rio Maracanã, do Paulo Emílio, do Vavá…
E esse sentimento – o amor arraigado do carioca pela sua cidade – que cresceu e se solidificou por diversas razões (que não cabem agora), deve muito ao Moacyr Luz, que incansavelmente, como reza a letra do samba, tira, dia após dia, “as flechas do peito do meu padroeiro”.
Na mesma rua Garibaldi, Moacyr – voltando no tempo, indo, sabe-se lá, ao encontro dos avós maternos – deu de reinventar a feira. Cooptou um feirante, arrendou uma barraca e passou a fazer, sempre às sextas-feiras, às margens do rio Maracanã, uma reunião de amigos que, como acontece com tudo onde põe as mãos, virou evento de proporções olímpicas.
Tinha uca, açúcar, cumbuca de gelo e limão, camarão comprado e frito na hora, ostras praticamente vivas, jiló, alho e óleo, uma horda de malucos e de malucas que passavam as manhãs e atravessavam os começos das tardes em torno dele, dono absoluto do pedaço, anfitrião daquela barraca, mais um degrau na trajetória zona norte do Moacyr.
Moacyr foi virando, aos poucos, “o embaixador dessa cidade”, título que Paulinho Pinheiro deu a Pixinguinha em letra (comovente) feita para samba do Moacyr.
E foi mesmo: São Paulo passou a reverenciar o Moacyr como embaixador de São Sebastião do Rio de Janeiro, e ele passou a frequentar cada vez mais a cidade injustamente carimbada como “túmulo do samba”. Fez do Bar Pirajá, a “esquina carioca” em São Paulo, uma espécie de bunker seu.
Ia pra São Paulo levando o violão e, junto com ele, além das seis cordas, os seis postos de Copacabana – “do um ao seis” – e a zona norte, sempre ela, regando cada pedaço por onde passava pra São Paulo ganhar novo alento – e ganhou, gerou frutos, e não por outra razão é o segundo convidado da série “O Samba na Roda”, depois da estréia com o mestre Wilson Moreira, também seu parceiro.
Moacyr também sonhou o Samba Luzia, que hoje é realidade, às margens da Baía de Guanabara – foi quem plantou a primeira semente, que germinou.
O Renascença é um fenômeno. Foi de novo Moacyr quem sonhou aquele encontro entre músicos, às segundas-feiras, e que se transformou naquela loucura que o Andaraí – zona norte! – vive semana após semana, com mais de mil pessoas em volta da mesa que comanda, como se fora, ele próprio, o anjo da velha guarda que cantou sobre verso de seu mais fiel parceiro, Aldir Blanc, abençoando a rapaziada que divide com ele a alegria daquelas tardes.
Mais outra prova de que Moacyr Luz faz das suas para torcer a trilha do samba para a zona norte da cidade? O Samba da Ouvidor, realidade também consolidada pela liderança de Gabriel Cavalcante, tijucano de escol, dileto seguidor da luz do Moacyr, ele próprio já com luz própria, começou com as suas bênçãos.
Num dia 16 de setembro de 2006, tendo como testemunhas não mais do que 10, 15 pessoas, Moacyr desfiou sua obra durante uma tarde inteira.
Já escuro, sol posto, a pedidos acabou por reencenar ali um número somente testemunhado pelos felizardos partícipes daquelas reuniões indescritíveis em sua sala-botequim na Muda, cantando a canção que fez sozinho, música e letra, pra seu pai. “Luzes acesas na minha memória, escuto o silêncio e sinto saudade da voz de meu pai…”.
Os presentes sentiam que Moacyr, uma vez mais, estava plantando algo que brotaria forte pra fazer História. Seguiu cantando: “Luzes acesas, mãos tão tremidas, movem o curso da minha vida…”, e fincou-se em cada um a certeza de que Moacyr não é mero espectador do curso de sua própria vida e da vida da cidade que ajudou a reerguer. Moacyr, como ferreiro, torceu o tempo, torceu as ruas, torceu os morros e a geografia da cidade pra mover, ele próprio, o samba para a zona norte da cidade, e dali para todo o Brasil, que reconhece nele o Embaixador da mui amada e leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.”
Fato é que, seis anos depois desse texto, o Bar Pirajá acaba de receber das mãos do prefeito Eduardo Paes, com quem tenho a honra de trabalhar, placa concedida pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro reconhecendo o bar como patrimônio cultural (o primeiro fora da cidade) – uma espécie de embaixada afetiva da cidade mais bonita do mundo.
E justamente o Pirajá promove, já há alguns anos, claro que reconhecendo há muito tempo que o Moacyr exerce, naturalmente, esse posto diplomático, três vezes por ano, a roda de samba do Samba do Trabalhador.
Já estive na roda no Andaraí um sem fim de vezes – perdi mesmo a conta. A primeira vez ainda em 2005, a última há algumas semanas.
Aquilo virou uma Meca: vem gente de todos os cantos do Brasil (e do mundo) pra ver ouvir o Moacyr e a rapaziada que o acompanha há 18 anos: Daniel Neves (violão de 7 cordas), Alexandre Marmita (voz e cavaco), Gabriel Cavalcante (voz e cavaco), Nego Alvaro (voz e percussão), Luiz Augusto Lima (percussão), Nilson Visual (surdo), Junior de Oliveira (percussão) e Mingo Silva (voz e pandeiro).
A mesmíssima roda de samba que acontece no Pirajá três vezes por ano.
Com uma impressionante diferença.
No Rio, onde vive desde que nasceu, Moacyr é personagem incorporado à paisagem cotidiana.
Fora do Rio de Janeiro, figura já deveras conhecida pelo Brasil, o Moacyr – segundo um amigo seu de Manaus (AM) – tem mais que um coletivo de fãs, tem uma seita.
Em São Paulo, e notadamente no Pirajá, o Moacyr atrai, a cada apresentação do Samba do Trabalhador, uma multidão que começa a chegar 3, 4 horas antes pra formar a fila.
Um contexto: o Pirajá não cobra ingresso. A casa abre ao meio-dia e às 09h da manhã já tem gente na fila – que parece interminável.
Eu já estive lá em algumas dessas ocasiões e lhes dou o testemunho: o que acontece lá é catártico.
Valho-me, aqui, de uma imagem usada por meu caro, meu querido e meu saudoso amigo Rodrigo Carvalho no seu Meninos da caverna: Moacyr e seus companheiros reproduzem, a cada roda, a Santa Ceia – só que mais bonita. Ele diz:
“Às vezes é fechar os olhos e respirar fundo. Às vezes é fechar os olhos e respirar fundo numa roda de samba. Já faz tempo que sigo, com humildade, as palavras de Toninho Geraes e Moacyr Luz. Este último, toda segunda-feira, na rua Barão de São Francisco, número 54, no bairro do Andaraí, no Rio de Janeiro, junta menos que doze numa mesa comprida, ergue o cálice e passa a noite na reza do samba, rimando ´coração´ com ´devoção´, falando em Deus, alma, Iansã, Nanã e Xapanã. Não entendo tudo, mas ergo até as mãos para o céu. Desando a beijar e a abraçar os amigos, os amigos dos amigos e até desconhecidos, uma espécie de paz de Cristo no rito da comunhão. Volto pra casa leve, leve. Talvez isso também seja fé.”
Comunhão. Fé. Emoção à flor da pele.
Dessa última vez, 02 de setembro, vi um sem fim de pessoas chorando emocionadas vendo Moacyr comandando o samba. Como o próprio diz, mesmo sem que seus sambas sejam executados à larga por aí, todo mundo canta, todo mundo chega junto, todo mundo comunga daquela mesma fé, daquela mesma luz.
Eu conheço Moacyr há mais de 30 anos e vejo: ainda hoje ele se comove, se embevece e se embriaga dessa mesma emoção que toma conta de quem chega pra mais perto pra vê-lo e ouvi-lo.
A foto lá em cima foi feita pela Marluci, companheira do Moa. Estávamos na laje do Pirajá, pouco depois de sua apresentação no primeiro set.
Ele, cansado, dizia que não voltaria pra cantar mais – o que não seria, em absoluto, um problema.
Os meninos dão conta do recado e Moacyr já tinha cantado durante mais de uma hora desfiando seu novelo sem fim de canções bonitas como a que fez pra seu amor.
Mais um tempo, mais uns brindes, muitas gargalhadas e muitas histórias depois, ele diz:
— Vou descer, vou cantar mais.
Era 02 de setembro.
Era dia de aniversário de Aldir Blanc.
E ele de fato desceu e foi ter com seu povo.
Um troço lindo demais de se ver.
Em novembro tem mais – a última de 2023.