Em março deste ano, o escritor Simão Pessoa teve um projeto aprovado na Lei Rouanet (Projeto nº 240704 do PRONAC), para a produção de 1.000 exemplares do livro “Manaus-Babilônia e o Reggae da Periferia Zion”, que será distribuído gratuitamente para a população manauara. O projeto também contempla uma versão audiolivro do produto, que será doada para o acervo da Biblioteca Braille do Amazonas, podendo ser reproduzida gratuitamente em novas cópias para os interessados. Como parceiros-financiadores dessa aventura, estão a Ventisol da Amazônia e o Grupo Samel.
“O reggae é um gênero musical que merece ter reconhecimento e conhecimento por parte da população como um patrimônio imaterial da cultura afro-manauara”, diz o escritor. “Ele ainda busca consolidar-se como um gênero musical que reúne várias gerações, antigas e jovens, unidas por um sentimento de pertencimento étnico-racial caboclo, pardo, negro, cultural e artístico”.
Segundo Simão Pessoa, nos últimos 20 anos o movimento sofreu uma explosão de diversidade, surgindo inúmeros coletivos, bandas e artistas, cada um deles com suas próprias vertentes, mas ainda assim o reggae permanece invisibilizado pela grande mídia, dominada pela música sertaneja do agronegócio.
“Mostrar a resistência da nação regueira para um número cada vez maior de pessoas parece ser uma tarefa inadiável”, resume o escritor. “E aí é preciso agradecer publicamente ao Ministério da Cultura (MinC) e às empresas Ventisol da Amazônia e Samel porque sem o valioso apoio da renúncia fiscal, seria humana e financeiramente impossível a realização deste projeto, na medida em que o mesmo exige investimentos que o proponente não pode bancar sozinho. Quanto ao custo-benefício para a sociedade, ele se baseia no princípio de que todas as atividades relativas ao projeto serão gratuitas. Irie!”
O livro terá 8 capítulos que estão assim distribuídos:
CAPÍTULO 1 – A Conexão Jamaica-Brasil
Com forte influência da cultura etíope, do rastafarianismo, do culto pan-africano e uma larga herança musical, a Jamaica passou a dar um novo colorido à música universal. Com a versatilidade e capacidade de improvisação inigualáveis dos músicos jamaicanos, a música da ilha do Caribe começou a se destacar já no final dos anos 50 e começo dos anos 60, com a edição de dois gêneros derivados do rhythm & blues americano, o ska e o rock-steady, até desaguar no embalo irresistível do reggae. Mais que um simples gênero musical, o reggae, com o passar dos anos, tornou-se uma verdadeira religião. E não só em seu berço esplêndido, a Jamaica. As mensagens político-pacifistas saídas das canções produzidas na ilha irradiaram-se rapidamente pelos quatro cantos do planeta, transformando seus intérpretes/arautos em ídolos populares, Bob Marley à frente. Marley, aliás, tornou-se objeto de culto universal, no mesmo patamar de Elvis Presley, John Lennon e, em termos de Brasil, de Raul Seixas e Renato Russo. O gênero musical jamaicano tem flertado com músicos brasileiros já há algum tempo, levando Caetano Veloso a gravar a canção “Nine Out Of Ten”, em 1972, considerada um marco do reggae nacional. O cantor Gilberto Gil também homenageou Bob Marley com o disco “Kaya N’Gan Daya”. Mostrar como o ritmo caribenho conquistou o país é o objeto desse capítulo.
CAPÍTULO 2 – A Conexão São Luís-Manaus
Segundo a lenda, foi preciso o radioleiro Riba Macedo comprar seu primeiro disco de reggae no comércio informal das calçadas de Belém do Pará, em meados dos anos 70, e levar para São Luís, dando início a uma febre pelo ritmo jamaicano na capital maranhense, que transformou São Luís na capital brasileira do gênero. Em Manaus isso não aconteceu porque as importadoras de discos da ZFM traziam em primeira mão os discos de reggae que começavam a estourar no Primeiro Mundo: “Catch A Fire” (1973), “Natty Dread” (1974) e “Rastaman Vibration” (1976), de Bob Marley, estavam disponíveis nas lojas manauaras, mas eram consumidos apenas por alguns poucos iniciados. Um deles era o cantor Cileno Conceição, que participou de um festival de música popular com a canção “Feira Hippie”, em 1976, considerado o primeiro reggae Made in Manaus. Foi com a chegada de milhares de maranhenses, em meados dos anos 80, para trabalharem no Distrito Industrial, que o ritmo começou a se popularizar na periferia da cidade. Aqui cabe lembrar que um dos nomes mais importantes no rastafarianismo é Zion (Sião em português e Tzion em hebraico), que possui o significado bíblico de terra prometida. Inicialmente era o nome do monte em Jerusalém, no qual foi construída a cidade do rei Davi. O Monte Sião passou a designar a terra prometida ou a própria Jerusalém. O significado bíblico do nome Sião é usado em religiões como o Cristianismo, que acredita ser Sião uma terra sagrada destinada aos fiéis após o Armagedom. Em Manaus, o nome Zion passou a designar os bairros periféricos onde se curte reggae (Monte das Oliveiras, Redenção, Monte Horebe, Planalto, Zumbi dos Palmares, Jorge Teixeira, Cidade de Deus, São José Operário, Santa Etelvina, etc). Esse capítulo abordará esse assunto.
CAPÍTULO 3 – De como a ZFM virou uma nova Babilônia
Decisões de governo, durante a ditadura militar, eram tão importantes quanto informações privilegiadas de governo. A Zona Franca de Manaus (ZFM) foi criada nesse período e serviu de plataforma para muitas empresas do Sul-maravilha que perceberam a oportunidade de implantar um capitalismo selvagem e predatório, sem qualquer controle institucional.
Os projetos do Distrito Industrial de Manaus irrigaram setores inteiros com crédito subsidiado. A Babilônia que surgiu daí transformou meia dúzia de empresários paulistas em milionários da noite para o dia – Matias Machline (Sharp), Isaac Sverner (CCE), Afonso Hennel (Semp-Toshiba), Leo Kryss (Evadin-Mitsubishi), Ernesto Pereira Lopes (Sanyo), Eugênio Staub (Gradiente), para só ficarmos na indústria eletroeletrônica – e desfigurou a cidade com a mais completa e arrasadora favelização de que se tem notícia. Os trabalhadores das fábricas, obviamente, foram morar nesses locais inóspitos, em habitações precárias. Segundo um estudo realizado pelo MapBiomas, Manaus foi a capital do país que registrou o maior crescimento de áreas ocupadas por favelas, de 1985 a 2021, totalizando um território equivalente a cerca de 10 mil campos de futebol. A expansão da urbanização evidentemente tem impactos no consumo dos recursos naturais, na qualidade de vida e, de uma maneira geral, na sustentabilidade urbana, mas quando falamos das favelas, além disso, há uma chance muito grande do aumento de ocupação de áreas de risco por populações mais vulneráveis e da eclosão da violência em todos os níveis. É sobre isso que iremos tratar nesse capítulo.
CAPÍTULO 4 – Os Pioneiros do Reggae Caboclo
Seis (6) entrevistas biográficas com os cantores Cileno Conceição, Armando de Paula e Eliakin Rufino, e com os integrantes das bandas Johnny Jack Mesclado, Dada Mao e Deskarados, que foram os primeiros a levantar a bandeira do reggae em nosso solo. A ideia aqui é descobrir como, quando e porque se interessaram pelo ritmo jamaicano, dar um panorama de suas carreiras e mapear o que almejam para o futuro.
CAPÍTULO 5 – A Segunda Dentição da Periferia Zion
Dez (10) entrevistas biográficas com os integrantes das bandas Jahgube, Na Humilde, Nossas Raízes, Reggaetown, YemanJah, Marcello Ipanema e o Izunomê, Canhamukaya, La Responsa, Jahraqui e Cidade Flutuante, mostrando a atualidade da cena reggae em nossa cidade. Aqui também a ideia é descobrir como, quando e porque se interessaram pelo ritmo jamaicano, dar um panorama de suas carreiras e mapear o que almejam para o futuro.
CAPÍTULO 6 – As Vozes Femininas da Nação Reggueira
Cinco (5) entrevista biográficas com as cantoras Carol Luna, Jéssica Lima, Márcia Siqueira, Rebeca Messing e Letícia Correia, mostrando o empoderamento feminino no ritmo jamaicano. Da mesma forma, a ideia é descobrir como, quando e porque se interessaram pelo ritmo jamaicano, se há discriminação contra mulheres na cena local, dar um panorama de suas carreiras e mapear o que almejam para o futuro.
CAPÍTULO 7 – Pilotos e Co-Pilotos dos Sound-Systems
Quatro (4) entrevistas biográficas com o DJ Marcos Tubarão, DJ Zulu, DJ Carlos Ferraz e DJ Cleuson Silva, cujos sets vão além do reggae tradicional e incursionam pelo dance hall, toasting, dub & poetry, white reggae, pop reggae, two tone e ragamuffin. Do mesmo modo, a ideia é descobrir como, quando e porque se interessaram pelo ritmo jamaicano, o que faz um raggamuffin ser diferente de um reggae roots, o que faz um dance hall ser diferente do dub, dar um panorama de suas carreiras e mapear o que almejam para o futuro.
CAPÍTULO 8 – Considerações finais
É verdade que nem tudo é paz, amor e harmonia na cena reggae. O gênero musical ainda enfrenta muitas desvantagens em Manaus, na medida em que as rádios comerciais estão inteiramente dominadas pelo estilo sertanejo. A mídia tradicional também não esconde um mal disfarçado preconceito de que reggae é sinônimo de “ganja”. Além disso, o sucesso do sertanejo também está ligado ao mercado fonográfico e às estratégias de marketing e divulgação dos artistas e gravadoras, bancados pelo “Agro é Pop” (?!), que têm investido cada vez mais na produção e promoção desse gênero.
De qualquer forma, ainda há uma pequena luz no fim do túnel para a galera do reggae porque hoje não se pode falar de música sem considerar a força das plataformas de streaming, como o Spotify e o YouTube. O streaming é o futuro da música porque, além de ajudar bastante a divulgar novos compositores, também barateia os custos de produção, divulgação e comercialização. Antigamente, as pessoas baixavam música por meio do mp3, o que atrapalhava muito o faturamento dos artistas. Hoje em dia, o consumidor tem música acessível, mas paga um preço justo. É sobre isso que iremos falar no último capítulo, incluindo a utilização das redes sociais na popularização do reggae manauara. Irie!