Por Ivan Lessa
Foi meu falecido irmão que me incentivou muito. Desde pequeno não havia cristo que me fizesse largar do livro. O mundo das letras descortinava-se no horizonte quando deixamos Alagoas – um tio intercedera pessoalmente junto ao dr. Getúlio a fim de obter a transferência para o Ministério – com destino ao Rio. Em menos de ano eu já publicara escritos os mais variados em órgãos de prestígio tais como O Imparcial, A Pátria, A Batalha, O Radical e A Noite. Semanários como A Noite Ilustrada, Pan, Jornal das Moças, Tico-Tico e Carioca levavam quase que habitualmente minhas incursões literárias e jornalísticas.
Como qualquer outro profissional, tive por diversas vezes que abrir mão de minha almejada meta objetivando a prosaica subsistência diária. Os versos patrióticos e os contos de amor não eram estranhos à minha pena. Quantas vezes a vasta biblioteca de meu pai não me garantiu algumas notas de cinquenta ou vinte mil-réis: lá eu catava “Pérolas do Pensamento”, “Frases e Ditos Curiosos”, “Vidas dos Grandes Homens”.
Meu ponto, como o de tantos outros artistas, era a Praça Mauá, onde, no Tourist ou no Mauá, entre um chope e uma empadinha, troca de casos e anedotas, cambiávamos – nós, verdadeiros banqueiros do sonho – as notas rudes da realidade pela moeda dourada e reluzente da Arte.
Cercados pelo comércio – os escritórios das companhias de navegação, de exportação e importação, as casas de câmbio – convivíamos na harmonia trepidante sintomática da era moderna. O cifrão podia ser rei, mas nós seus menestréis. Em nossas mesas sempre havia lugar para um bobo, uma cortesã ou dama de companhia. A verdadeira nobreza distingue apenas talentos.
Disse alguém, lá, na Praça Mauá, 7, com o braço direito levantado chamando o garçom: “Estamos no porão do Castelo! Aqui é que se reina de verdade! Quando subimos no elevador para o 22.° andar estamos apenas baixando éditos oficiais!” Referia-se, evidentemente, à Rádio Nacional, PRE-8, 980 kilociclos, 25 kilowatts, em ondas médias, onde, eu também, defendia o meu. No bolso do paletó de meu terno de brim, duas páginas datilografadas de material para Lendas Orientais e Agora Conta Você, uns dez minutos de “ar”, pelo menos 150 mil-réis.
Com um chiste para uma beldade, um cumprimento amigo para o diretor de publicidade ou programação, eu entrava na fila do carro que ia apenas até o décimo andar e saltava no quinto para entregar e discutir trabalho de minha feitura para a Carioca. Ou no terceiro, em dia de pagamento. No caso, tinha de me avistar com o Rodrigues, no quinto andar, para deixar a reportagem que eu intitulara “Como comes?”. Três folhas com os pratos prediletos de personalidades destacadas do sem-fio. Desta vez, eu assinara Hélio Távora, já que Édel Tavares, naquele mesmo mês, estaria dando “presente” com “Bandeira do Brasil”, para o Almanaque do Tico-Tico, e “Amor em Vão”, para Vamos Ler.
O Rodrigues leu de pé o fruto de meu labor. Erguendo a tampa da escarradeira três vezes, cuspindo nela oito. “Essa umidade”, explicou. “Conta direito quem é esse dieteta argentino, tal de Pedro Escudero. Encaixa que um prato vitaminoso é mais valioso que uma panela cheia de farináceos. Pega o prato favorito da Bidu Reis que ela vai participar com destaque da programação de aniversário. Esse negócio do Albertinho Fortuna preferir banana frita e crua com café é verdade mesmo? Hum.” Pegou o lápis vermelho e mudou o título apoiando o papel na parede. “‘Como Comes’ vai dar sacanagem. Título fica sendo ‘Qual o seu prato favorito?’. Tudo bem. Vai em frente. Segunda te vejo depois das três. Tem um projeto aí que eu quero discutir contigo.”
Dei sorte. No elevador, Gracindo e Saint-Clair Lopes. Este, à minha pergunta, foi categórico: adoro um filet mignon com batatas. E o Gracindo: “Vatapá e vatapá. A sobremesa é morango com creme!” Subi pela escada até o sétimo, pedi uso da máquina ao Renatinho – ele me devia um pela letra de “I’m dreaming of you” – refiz o trabalho, acrescentando Gracindo e Saint-Clair, desci dois andares pela escada, deixei com o Saliva para entregar, cuidado, por favor, ao Rodrigues. Caixinha, obrigado. Qual o meu prato favorito? Cheio e duas_vezes por dia, ni minimis, s’il vous plait.
Pedi uma branquinha no Tourist. Lenitivo para minha dor, conforme dizia o Fraga. Quem me atendeu foi o Barcelona. Sempre tinha papel. Conhecia a radiofonia e o jornalismo brasileiro. Uma parada federal, o Barcelona. “Segura essa”, disse. “A Via-Láctea que desce cortando o céu em kermesse. Hein? Gostou é seu. Vintão leva o resto.” Investi. Mais de uma vez o espanholzinho me safara de boa. Pendurei quinze, levou cinco. O Gordo se sentou na minha mesa e prometeu uma nota de conto se eu resolvesse a situação antes das sete da noite. Eu vinha driblando ele mais que o Valido na ponta do Flamengo desde segunda. Eram três da tarde. Hora de bater ponto no quartel-general, o Nice, saber das coisas.
Pedi duas horas e peguei o 6, Lapa-Praça Mauá, saltando na Mem de Sá, uma antes de Visconde de Maranguape. Andei até a Riachuelo, conferi a barra-limpa com o porteiro do dia, o Conceição, subi até o 301, Dona Olga. Estava sem freguês no momento, me ofereceu cerveja, pra variar não se preocupou em fechar o peignoir. “Diz”, disse. “Seis bujão de coca, três ampola de Demerol.” “Tô há duas semanas com o revólver que você pediu. Vai levar ou não?” “Quanto cê faz tudo?” “Dois contos batidos.” “Um e quinhentos, eu me mando agora.” Pediu pra ver antes. Botei as três notas em cima da mesa. “Você não abre nunca as janelas? Isso faz mal.” “Eu não quero caso com vizinho. Espera aí.” Expus o cheio- de-varizes. Ela deixou a caixa de sabonete na mesa. Sentou. A rádio sintonizada em “Vozes de Nápoles”. Mancha quatrocentão na calça. “Seca logo.” “Um beijo, criatura.” “Aparece, galã.” “Boazuda!” “Bonitão!”
Peguei o Varela no Nice. Estava com O texto. Conferi tirando duas frases referentes à caridade da sra. Roosevelt e botei o jamegão liberando o programa para radiodifusão em todo o território nacional. Oficial, tudo conforme o figurino. Um garoto magro que prometia ser o novo Orlando Silva perguntou pelo teste. O Varela me deu setecentos mil-réis em notas de cem. Fui de táxi até a câmara de comércio Teuto-Brasileira, na Alfândega, 48, direto para a sala do Alemão.
Em que bolso estava a porra do esquema com a partida dos navios do Lloyd? Quinhentão, a família agradece penhorada. Táxi esperando. Duzentos réis por minuto de espera. Três mil réis a partida. Marcava seis e oitocentos. Taca pra Praça Mauá. O doutor é da rádio? Sou compositor. Manda. Ouvi 36 compassos sobre as agruras de um sertanejo até desembocar no Tourist. Cadê o Gordo? Barcelona me dá um conhaque. Viu o. . . ? Foi até a Gamboa. Dia de leilão. Tá vindo. Papel. Tens do branco a doce alvura, que é um hino de ternura, o nosso anseio de paz. Encaixar a Via-Láctea e a kermesse. Até sexta, prontinho, pra pegar o Almanaque do Tico-Tico.
Ei Gordo! Deu Avestruz. Problema. Os homens. Situação braba. Dois contos. Mas tudo do melhor. Deixa ver. Eu já tinha separado no táxi. Se mandou lá pra dentro, pro “escritório”, com três bujão e três ampola. Fiquei com três bujão para uma eventualidade. O Gordo voltou a formosura desta vida. Dois contos. Gordo, eu vou andando. O que você acha disso para o Carnaval? Já estava no brilho.
Pescador hei de fisgar
Um peixão para brincar…
Ôôo. E não-sei-o-quê e coisa e tal. A caixa de fósforo uma bosta em sua mãozona escrota. A gente vê. Eu tenho compromisso, uma deusa de cassino. Urca? Atlântico. Urca eu conheço todas. Com que letra começa o nome dela? Gordo, eu vou me indo.
Peguei a Visconde de Inhaúma, edifício do Tesouro Nacional. Seis e pouco o Caldas rente como pão quente. O berro é seu. Quanto? Dois contos e quinhentos. Me pegou desprevenido. Vamos sentar e discutir a situação. Na Rosário, Brasil-Portugal, jantamos lautamente. Conversando a gente se entende.
Ainda passamos pelo Bar da Brahma pra ver se o crioulo de uma orelha só, a outra uma couve-flor preta estriada de cor-de-rosa, estava ou não na jogada. O goleiro reserva do time de aspirantes do Botafogo ficou de dar a ele o recado: estaríamos no Wonder Bar, ao lado do Copacabana Palace, até pelo menos onze da noite. Pegamos o 53 em frente ao Palace Hotel, saltamos na Siqueira Campos, caminhamos o resto.
Conversamos sobre como as pessoas veem seus sonhos ruírem. Como tudo na vida é ilusão. Até que um Ford preto parou em frente e Gilda e Helena saltaram acenando para nós.