Por Cristiane Nascimento
Quem precisa de Weber, se tem o tambor de mina do Maranhão? Na verdade, precisamos dele sim, por que não? E de Descartes e de Monarco, de Jesus Cristo e de Exu. Os saberes dos livros não excluem os saberes da oralidade, da música, da dança, do corpo, nem são excluídos por estes. Encruzilhada, para Luiz Antônio Simas, é encontro e não confronto.
Nesta entrevista, o professor, escritor, historiador e babalaô afetivamente nos convida a desfazer conceitos e preconceitos, jogando leve e solto em seu território de infância, desconhecido para muitos, e, no entanto, inescapável para quem finge de fato entender o que há de único nisto que chamou de cultura brasileira.
Não que temer o encanto, e sim o desencanto em que nos encontramos. Simas é desses raros pensadores contemporâneos que estão mapeando as brasilidades em sua potência, sem o peso dos traumas passados nem a angústia do que ainda passa — com frescor, gosto e festa. E assim, nenhum gesto “simples” de ultrapassar o ordinário, nos lembramos que somos capazes do extraordinário.
Em seus reflexos, você pensa o Brasil não apenas como laboratório de experiências, mas como espaço de elaborações teóricas. Como concilia esses universos?
Costumo definir como um pensador macumbeiro. Eu digo isso porque cresci dentro de um terreiro, então como coisas que eu penso e falo partem desse princípio. Como dizia Ortega y Gasset: “Eu sou eu e a minha circunstância”. Minha circunstância é o terreiro, sou neto de um yalorixá, de uma sacerdotisa de Alagoas, criada e iniciada em Pernambuco, que veio para o Rio de Janeiro e teve um terreiro, que continua funcionando sem ela, porque ela faleceu. Durante muito tempo, foi um terreiro famoso em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, no Rio. Eu cresci ali, uma família muito vinculada a isso, ao candomblé, à encantaria, à umbanda. Muito vinculado ao samba, por conta do irmão da minha mãe, que foi presidente de bloco carnavalesco. Em 2009, começou a escrever os textos para o livro que se chama Pedrinhas miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros. Esse livro foi publicado em 2012, daqui a pouco fazendo 10 anos, mas os textos são de 2009. Ali, eu parti de uma constatação muito simples: essas culturas de terreiro são capazes de produzir conceitos muito poderosos. Quando falo de culturas de terreiro, não me refiro apenas à questão da religiosidade. Comecei a trabalhar muito com samba: escrevi um livro sobre a Portela; com Alberto Mussa, escrevi um livro sobre samba-enredo; com Nei Lopes, o Dicionário da história social do samba. E me incomodava que a era do samba sempre encarado como um laboratório de experiências que precisaria de um laboratório conceitual para ser estudado. Era aquela coisa: estudar a roda de samba do Cacique de Ramos, ou uma escola de samba, ou a feijoada das escolas de samba, dentro de princípios teóricos ligados ao Bakhtin ou ao Gramsci. Concordo que o Gramsci e o Bakhtin oferecem um cara interessante para pensar o samba, mas a minha perspectiva sempre foi outra. Eu entendo como essas culturas são sofisticadas ao ponto de oferecerem a possibilidade de elaboração de conceitos para que a gente possa analisá-las. Foi assim que começou a tentar entender essas culturas a partir de suas próprias entranhas. No caso do samba, a partir da ideia de síncope, do papel do surdo de terceira, do terreiro como conceito. Gosto de pensar essas coisas a partir do que elas mesmas me sugerem. quem escreve sobre o que não viveu, sobre o que não experimentou. Eu gosto de escrever sobre as coisas que eu marcaram, que me formaram. Não tem mistério nenhum: eu sou um sujeito que escreve, e a história que eu faço é a minha infância, não tem muita coisa além disso.
Ah tem sim, tem bastante coisa! [risos]
Cacaso, o poeta, tinha um verso que eu acho lindo: ele dizia que vivia exilado na infância. De certa maneira, eu vivo assim, exilado na minha infância.
Dois conceitos que você utiliza para observar esse universo, e a realidade brasileira também, são o de terreirização e o de encruzilhada. Como eles se manifestam?
Quando eu falo de terreiro, não me refiro apenas ao espaço do ambiente religioso. O terreiro, como eu defino, é um espaço praticado na dimensão do encantamento do mundo, não tem fixidez local. É aquilo que se configura como terreiro a partir de como você pratica o espaço, pratica o corpo, pratica o território. Um exemplo que costumo dar: o viaduto de Madureira, aqui no Rio de Janeiro, é criado dentro de uma lógica da funcionalidade urbana, para ligar, de carro, um lado ao outro do bairro de Madureira. Mas, quando começa um baile charme do viaduto, ou quando a Companhia de Aruanda faz uma roda de jongo ali, ou quando tem uma roda de samba, você praticou aquele território na dimensão do encantamento do mundo, você terreirizou essa experiência. A Marquês de Sapucaí é um território funcional – terrível, diga-se de passagem, porque é uma avenida inóspita – mas, quando chega o Carnaval e uma escola de samba que dobra pista, o cavaco dá um acorde, o repique chama a bateria, o desfile começa e a baiana gira, espaço é na dimensão do encantamento. É terreirizado. Gosto de tentar entender a cidade, particularmente o Rio de Janeiro, a partir dessa perspectiva da criação incessante de terreiros. Eu moro na frente de uma praça na Zona Norte, e ela é terreirizada quando as crianças pulam amarelinha, quando os velhos jogam, sueca quando, na sexta-feira à noite, a garotada faz uma roda de rap aqui. A maneira como você pratica o território é que fundamentalmente o terreiriza. E o terreiro não é só espaço físico, pode ser a roupa que você usa. O primeiro terreiro é o próprio corpo. Quando você vê uma baiana de escola de samba, o terreiro é o chão que ela pisa quando gira, é o corpo dela no momento em que gira, é a roupa que ela veste. O terreiro de uma bate-bola é a roupa. Quando você veste aquela roupa, aquela máscara, você entra na experiência do encantamento do mundo. Um rigor, você terreirizou-se. Eu tento pensar isso a partir dos bacongos. Para os bacongos, da cultura Congo-Angola, o terreiro não tem uma correção, é um espaço que vai ser praticado. Pode ser a casa onde baixa uma preta velha que é uma antepassada, pode ser a praia em que se evoca uma espiritualidade qualquer. Os bacongos tem muito disso. Eu penso o mercadão de Madureira como um terreiro, a Feira de São Cristóvão como um terreiro, assim como o estádio de futebol onde está acontecendo um jogo sem qualquer relevância.
E a encruzilhada?
O senso comum vê a encruzilhada como um lugar de dúvida, de indefinição. Eu não a vejo como labirinto, porque tento entender a encruzilhada como um lugar de encontro e de exercício de alteridade. A encruzilhada para mim é o destino, a gente tem que chegar na encruzilhada. Em certa ocasião, eu li um texto dizendo que o Brasil estava numa encruzilhada, e respondi dizendo que infelizmente não estava. O Brasil precisa tentar chegar a uma encruzilhada. A encruzilhada te apresenta caminhos, te coloca diante da necessidade de rasurar-se, porque não há pureza, não há essência na encruzilhada. O próprio corpo encruzilhado é aquele que se permite a afetações, que se dispõe ao transe, não o transe no sentido religioso, mas no sentido de transitar, ir para outra dimensão. A encruzilhada como uma dimensão de encantamento da vida é muito forte em várias culturas. No Antigo Testamento, Ezequiel diz que viu o rei da Babilônia consultar a sorte numa encruzilhada. O Gil Vicente, no Auto das Fadas, bota a feiticeira Genebra Pereira fazendo oferendas à lua numa encruzilhada. Os gregos faziam oferendas à deusa Hécate numa encruzilhada. O padre José de Anchieta ficou impressionadíssimo porque os tupis depositavam alimentos nas encruzilhadas para os guardiões da floresta. Para os bacongos, Aluvaiá vive numa encruzilhada, que é o Nkisi do movimento. Para os iorubás, Exu vive numa encruzilhada. Para os Jeje Mahi, Legbá, a divindade da movimentação, da disponibilidade para o extraordinário da vida, vive numa encruzilhada. Em todas as culturas, a pessoa que se encruzilha é aquela que se dispõe ao extraordinário. Extraordinário mesmo: escapar do ordinário. Eu chego numa encruzilhada e não sei o que vou encontrar ali, mas tenho que estar disposto a compreender que, na encruzilhada, o meu próprio ser passa a se definir a partir do contato que tenho com o outro. Na encruzilhada você nunca está sozinho, isso é uma impossibilidade. Eu me afeto por você, você se afeta por mim, nós estamos em constante fluxo. Ali o extraordinário acontece e, mais do que isso, ali nós vivemos uma experiência educativa. Porque a educação, para mim, é essa disponibilidade para reconhecer o outro, para escutar o outro, para se alterar pelo outro e alterá-lo. As pessoas confundem escolaridade com educação. São coisas diferentes. Educação está acontecendo no botequim aqui embaixo. A encruzilhada é fundamental, inclusive, para a gente pensar cultura. Não consigo conceber cultura que não seja, de certa maneira, resultado desses fluxos, dessas alteridades todas. O território da cultura é a encruzilhada.
Dentro dessa categoria analítica, você consegue juntar Gramsci, Bakhtin, Benjamin, orixás, preto velho, caboclo…
Eu sou um escritor e um pesquisador autônomo, ou seja: trabalho escrevendo, não sou ligado a nenhuma instituição. Talvez por causa disso eu tenha uma certa cara de pau de propor conceitos. O combate ao colonialismo não pressupõe que você vá aniquilá-lo, o que seria uma tarefa impossível. Você vai é chamar o colonialismo para o jogo, você vai jogar. Eu não quero, por exemplo, anular o Descartes coisa nenhuma, até porque o acho muito interessante. Eu quero botar o Descartes na gira, o que, de certa maneira, é encantá-lo, trazê-lo para a dimensão do encanto. Não acredito em saberes e pensamentos que se anulam ou que trabalham na perspectiva da aniquilação do outro. A encruzilhada é onde o Descartes encontra Mestre Pastinha, Johann Sebastian Bach encontra Pixinguinha, Descartes encontra Zé Limeira, o poeta do absurdo.
Essa dimensão do encantamento pode ser entendida como uma contraposição ao “desencantamento do mundo”, identificado por Weber?
Pode até haver diálogo com Weber, porque eu dialogo com todo mundo, mas não parto dele: a minha perspectiva de encantamento é a do tambor de mina do Maranhão. O encantado do tambor de mina, diante da morte, encanta-se em algum elemento que não é mais ele mesmo. É, por exemplo, um caboclo que se encantou numa folha; uma princesa, Mariana, que se encantou numa arara na praia do Lençol; Toia Jarina, que se encantou numa flor de laranjeira; o caboclo Japetequara, que se encantou nas barras do rio Arari. O encantado, para o tambor de mina, é o ser disponível para se alterar. Dou um exemplo: minha mãe, minha mãe mesmo, carnal, durante a vida toda trabalhou com o caboclo Japetequara, essa entidade importantíssima da encantaria. O que é o caboclo Japetequara? É ele mesmo, mas caboclo Japetequara é também a água do rio Arari, onde ele se encantou, e, ao mesmo tempo, ele é o corpo da minha mãe, onde ele passeia e se aconchega para dançar. O encantado é o ser que se dispõe a fugir da ilusão da fixidez. Ele pode ser a flor, a água, o corpo que dança. O desencanto do mundo é produzido, sobretudo, pela aniquilação da multiplicidade do ser, que é normatizado e domesticado dentro de ilusões de fixidez. É o corpo domesticado dentro da lógica do trabalho, da lógica produtiva. O primeiro ataque que o projeto colonial faz é ao corpo, domesticado dentro do discurso do pecado, o corpo feminino domesticado dentro da lógica da reprodução, o corpo masculino domesticado dentro da lógica da virilidade. O encantamento é a experiência de você se colocar disponível para outros sentidos da vida. É isso o que o tambor de mina diz. Eu me disponho a ser eu mesmo, mas me disponho a ser a árvore, a ser a folha, a ser areia, a ser a barra do Arari. E, ao me dispor a ser isso tudo, eu driblo a morte. Porque a morte, para o tambor de mina, para a encantaria, não é um fenômeno físico, não é fisiológico – parei de respirar, morri – não! A morte está ligada à aniquilação, está ligada à perda da capacidade de se colocar à disposição para a vida. Eu posso estar vivo, você pode estar viva, podemos continuar vivos, comendo, bebendo, trabalhando, mas estando mortos. Ao mesmo, tempo, a gente pode morrer e, exatamente por isso, estar vivo – que é o mistério do caboclo. Então, se o Descartes diz “Penso, logo existo” e isso está correto, também podemos falar outras coisas, como bater o tambor e existir, dançar e existir. Eventualmente você morre, logo, existe. A cabocla Mariana da Turquia diz: “Eu me recuso a ser só isso”. Ela é encantada numa arara de bela plumagem, nas águas da praia do Lençol. Japetequara é o caboclo e, ao mesmo tempo, ele se coloca em disponibilidade para ser a água do rio Arari e para ser a flor de um tronco de sucupira. Quando a sucupira floresce, Japetequara está na terra. Ao se colocar em disponibilidade, ele não morre mais, vive na dimensão do encanto. Tem um ponto bonito:
[cantando]Ê a a Japetequara é o índio velho brasileiro
Desceu na cuma pra saudar nosso terreiro
Por aqui passou caboclo, caboclo do Canindé
E a sua candeia de fé
Aiaê aiaê caboclo velho
Da Barra do Arari
Lagoa grande secou
Todos morreram, eu não morri
Inda flora sucupira, inda flora guerreiro
Inda flora sucupira, é o caboclo velho flecheiro
Aiaê aiaê caboclo velho
É isso, ele é o caboclo, é a barra do rio Arari e é a sucupira.
Qual é o papel da musicalidade para as religiosidades de origem africana?
É mais do que religiosidade, eu gosto de falar em sabenças encantadas. Fundamentalmente, você não reza em silêncio, nunca. Quem é de candomblé sabe. A dimensão da musicalidade está presente no cotidiano, o tempo todo, você não concebe a vida sem música, é através da música que você trabalha, que você ama, que você lamenta a morte, celebra um nascimento e, mais do que isso, na concepção africana, na concepção dos terreiros, a música não é feita para que você escute apenas, a rigor ela é feita para você se conectar com a sua corporeidade, com seu corpo. É uma música que chama o seu corpo para que ele se integre ao tambor e, nesse amálgama, tambor e corpo se transformam numa coisa só. Um conceito fundamental dessas práticas religiosas é a ideia do axé, como os iorubás chamam, ou aquilo que os bantus chamariam de moyoo. É basicamente a ideia de que a vitalidade tem que ser constantemente animada. Não se tem axé e pronto: o axé precisa ser alimentado, você precisa se alimentar de vida o tempo inteiro. O axé pode estar na sua fala, na comida que você come, na música que você escuta, no corpo que dança, no tambor que toca. Do ponto de vista espiritual, todas as religiosidades afro-brasileiras trabalham com a perspectiva de que nós temos um mundo visível e um mundo invisível. Temos um mundo sensível, este que a gente observa, mas também temos aquilo que nos cerca e que não enxergamos, a dimensão da espiritualidade. Nas culturas de candomblé, seriam Orum, o invisível, e Aiê, a materialidade do visível. Sendo que o tempo inteiro Orum e Aiê entram em conexão. Através de algumas estratégias, nós aqui do Aiê evocamos o Orum, para que as espiritualidades do Orum nos fortaleçam, e um dos elementos mais importantes para efetuar essa ligação é a música. A música tem essa dimensão espiritual de te colocar em conexão com aquilo que não se vê, a canção evoca a espiritualidade. Vou te dar um exemplo: “Kò sí ewé, kò sí òrìsà”, “Sem folha, não há orixá”, você não faz nada nas religiosidades afro-brasileiras sem a folha. Através da folha, ewé, é que você estabelece terapêuticas encantadas de cura, de vitalidade, a maceração das folhas é fundamental. Tem um mito que diz que Olodumare, o deus maior, deu a Ossain, um orixá, o poder de conhecer as folhas e de saber que elas curam. Ossain botou todas as folhas numa cabaça e pendurou no galho de uma árvore. Os outros orixás ficaram muito curiosos para saber o que tinha na cabaça de Ossain, e Iansã, que é a orixá que comanda os ventos, instigada por Xangô, manda uma ventania furiosa para a árvore e a cabaça com as folhas cai no chão, racha, e as folhas se espalham. Cada orixá, então, pega uma folha. Oxalá pegou o odundum (saião), Ogum pegou a folha do peregun, Oxum pegou a folha do girassol, cada orixá foi pegando a sua folha. E começaram a zombar, dizendo que não precisavam mais de Ossain, porque já estavam com as folhas. Ossain se vira e diz: “E como é que essas folhas vão acordar para que elas curem?”. Porque o que encanta a folha é o canto, aquilo que a gente chama de korin ewé, cantar a folha. O peregun não é nada, aqui embaixo, na minha rua, está cheio de peregun, em português é o pau-d’água. Mas eu posso acordar o peregun, e o que acorda o peregun é o canto, é a música, disse Ossain. Então eu canto para o peregun:
O combate ao colonialismo não pressupõe que você vá aniquilá-lo. Você vai é chamar o colonialismo para o jogo. Eu quero botar o Descartes na gira.
[cantando]
Peregun alá xó titun
Peregun ala ó méré
Peregun…
Acordei o Peregum. Aí, eu pego uma folha qualquer, teté, que é uma folha pequenininha, que aparentemente não faz nada. Mas, se você vira e canta
[cantando]Tètè ko ma tè o – Tètè
Ta ni xo ni le
Acordei teté. Se eu pego Odundun:
[cantando]Òdúndún Bàbá t’èrò re.
Òdúndún Bàbá t’èro lé
Encantei Odundun para que ele possa me curar. O que encanta a folha é a sonoridade. É um exemplo de como a música tem a dimensão espiritual de integrar o mundo e promover a conexão entre o Aiê em que estamos e o Orum em que essas espiritualidades todas vivem.
Você fala muito sobre a importância de sabermos ler diferentes gramáticas. Como isso se manifesta, na prática?
Também é uma coisa que vem da minha infância. Eu venho de uma família que não tem apreço pelo livro. Digo isso sem nenhum tipo de alegria, é triste. É um caso clássico: eu sou o primeiro sujeito da minha família a entrar numa universidade. Minha família não incutiu em suas crianças o hábito da leitura, eu cresci em uma casa sem livros. Meu contato com o livro, que eu passei a amar desesperadamente, foi tardio. Mas não significa uma infância sem contato com histórias. Me contavam histórias o tempo inteiro. E, como nasci em uma casa de terreiro, o tambor me contou histórias o tempo todo. Cresci sendo alfabetizado no tambor. Por exemplo: para o orixá chamado Oxóssi, o tambor toca um toque chamado agueré, que basicamente evoca a história de uma caçada na floresta. Para Xangô, você toca uma alujá, que evoca a dimensão do fogo. Para Iansã, toca o ilu, que é a história de uma grandessíssima tempestade, com um vento furioso que vai varrendo tudo. Para Oxalá, você toca o ibin, que é o caracol levando a sua casa nas costas. Tem vários outros exemplos. Eu aprendi essa pluralidade no meu tempo de terreiro. Se um sujeito toca o tambor perto de mim, eu te digo qual é a história que ele está contando. Ser alfabetizado no tambor é uma maneira de contar história, de elaborar discurso. A nossa história, sobretudo a cultura popular, tem essas gramáticas múltiplas que precisam ser compreendidas. Uma bateria de escola de samba como a da Mocidade Independente de Padre Miguel ou a da Portela, elas têm como base do toque de caixa o agueré de Oxóssi. A bateria da Mangueira lembra os toques de caixa das folias de reis, uma tradição muito forte no morro da Mangueira. Ao mesmo tempo, ela tem uma batida que lembra o quebra pratos, que é um toque de Iansã. Teve um desfile do Império da Tijuca que eu assisti ao lado de Alberto Mussa, éramos jurados do Estandarte de Ouro, e o enredo era Olubajé, o banquete do rei, uma grande festa que você faz para Omolu. O samba tinha um trecho muito bonito, que dizia assim:
[cantando]Eu quero ver omolu dançar
No opanijé com o seu xaxará
Tem pipoca no alguidar, mandigueiro
Sinfonia imperial chegou no terreiro
Atôtô baluaiê, meu pai vem nos valer
O banquete para o rei vamos te oferecer
Espelho de gente guerreira
Que dá o suor na labuta, e faz Olubajé
No Império da Tijuca
Na hora em que cantavam isso, a bateria tocava o Opanijé, que é o toque de Omolu. Eu disse a Mussa: “Beto, eles bateram o Opanijé”. E ele, que conhece, disse: “É isso mesmo”. Toda vez que vinha esse trecho, eles batiam o Opanijé e você via que alguns corpos que desfilavam dançavam o Opanijé, que é uma dança em que Omolu está se aproximando da comida. Aquilo é um fenômeno, do ponto de vista da gramática, múltiplo. Porque não é só o samba que está sendo cantando, é o tambor que está sendo tocado, é o corpo que está dançando. Se você vai a um terreiro de candomblé e olha uma Iansã dançando, você vê que com a dança ela controla os ventos para guiar os espíritos mortos até o Orum, porque Iansã é condutora dos eguns. Isso não se manifesta na palavra, mas na maneira como ela dança. Tem um momento em que você percebe que se trata de uma evocação profundíssima, porque o grande bailado dos mortos começou. Se você não tem conhecimento disso, vai achar bonito e tudo, mas não vai ter a dimensão profunda. Nós precisamos entender a corporeidade, precisamos entender aquilo que o tambor diz para conhecer essas manifestações da cultura popular brasileira, religiosas ou não — estou falando dos reinados, dos reisados, dos maracatus, das congadas; estou falando das escolas de samba, dos terreiros de Jeje, de Angola… Não adianta, isso não vem com a gramática normativa, aquela que nos é ensinada na escola. A palavra, o livro, a verbalização… você vai perder uma dimensão profundíssima. Você pode ver uma escola de samba cantando sobre o Duque de Caxias e o tambor dela pode estar batendo para Oxóssi. Será que o cara que bate o tambor sabe que está batendo para Oxóssi? Isso não tem a menor importância. O fundamental é que Oxóssi saiba. Se Oxóssi souber, está bom.
Como se combina a necessidade de transmissão desses saberes com a dimensão do segredo, do mistério?
Essa é uma questão crucial: que sejam passados para que não morram. Quer conhecer a cultura brasileira? Tem que conhecer o Congo de Ouro, o Cabula, Opanijé, elementos que estão na formação da nossa cultura. São culturas da oralidade, que talvez não tenham chegado ao livro porque não precisaram dele. É necessário que a gente tenha livros, o livro é fundamental, mas também precisamos entender que todo tambor é uma biblioteca. O livro é típico das culturas do esquecimento e aqui estamos falando das culturas de lembrança, em que se contam histórias o tempo todo. São saberes até certo ponto acessíveis, mas chega certo momento em que você só se aprofunda se passar pelos ritos da iniciação. A questão iniciática é muito poderosa, mas existe uma dimensão que não pressupõe iniciação e que também é poderosa para você começar a travar contato com essas culturas. Nos candomblés, existe a dimensão do abiã, que é a pessoa que frequenta o terreiro, que vivencia a experiência, toma banho com aquelas cantigas, e pode fazer a iniciação ou não. Você pode vir a se iniciar e conhecer o segredo mais profundo, mas essas religiosidades estão no nosso cotidiano, difundidas na música que a gente escuta, na comida que a gente come. Acarajé, vatapá, caruru, canjica branca, são comidas de terreiro, que chegaram nas nossas mesas e a gente come normalmente. Até porque são práticas religiosas que não pressupõem a dicotomia entre o sagrado e o profano. Você sacraliza o profano e profana o sagrado o tempo todo. Essa separação, muito presente no cristianismo, não faz sentido. Então você escuta uma música como Anunciação, do Alceu Valença,
[cantando] Na bruma leve das paixões que vêm de dentro…Isso é o Ijexá, o toque sagrado de Oxum e de Logun Edé. Mas ele está na base da formação da nossa música. O toque sagrado do Ijexá profanou-se para chegar aos nossos ouvidos mais corriqueiros e cotidianos. A partir de todas essas aproximações, que são culturas acessíveis a qualquer pessoa, você pode resolver fazer uma iniciação para mergulhar no segredo. E acessar o segredo demanda autorização oracular, porque são práticas religiosas fundamentadas no oráculo. Você não faz iniciação no seu orixá porque você quer, mas porque ele quis. Se você se dispõe ao mergulho no segredo, tudo bem, vai raspar o fundo do tacho, mas não existe dicotomia entre sagrado e profano, entre o visível e o invisível. Somos domesticados a pensar dicotomicamente, mas não é isso: é encruzilhada! O segredo e aquilo que é corriqueiro moram na encruzilhada. É o corriqueiro que te leva ao segredo. Essa é a questão fundamental: o segredo é filho da experiência corriqueira.
Já na nota introdutória do seu livro com Luiz Rufino, Fogo no mato, vocês propõem uma definição de macumba. Por que decidiram fazer isso?
Isso entrou depois que o livro estava pronto, foi uma definição que eu escrevi para a revista Serrote, do Instituto Moreira Salles, num texto chamado “M de Macumba”. Depois que Fogo no mato estava pronto, a gente imaginou que podia ser interessante usar, porque a macumba passou por um processo vigoroso de desqualificação, inclusive semântica. Começou-se a atribuir à macumba primitivismo de baixos feitiços, ou então você encontrava macumba como oposição ao espiritualismo, ou como “magia negra”. Enquanto isso, existiria uma “magia branca”, uma “umbanda branca”. Foi uma desqualificação impactante. Tinha gente que dizia: “Não me chame de macumbeiro, porque macumba não tem nada a ver com religião, no fim das contas macumba é um instrumento que as pessoas tocam”, etc. Eu comecei a fazer um mergulho na arqueologia da expressão macumba, muito sugestionado pelo meu parceiro querido e mestre mais velho, Nei Lopes, profundo conhecedor das línguas bantus. No kikongo, cumba é aquele venerável mais velho que tem o poder da palavra, que seduz, que enfeitiça. E, no próprio kikongo, “ma” é um prefixo do plural – formando o sentido de um grande encontro dos mais velhos, que são os poetas do feitiço, que vem no som, na palavra. A expressão macumba evoca, portanto, essa capacidade de encantar o mundo através da fala, do canto, do corpo. No livro, quisemos dizer que o sentido que damos à macumba é esse. Fazemos um mergulho mesmo no idioma para mostrar que macumba é essa grande reunião dos encantadores do mundo pelo som, pela música. Por isso, em relação à expressão macumba, eu prefiro a palavra reencantar do que ressignificar. E agora eu vou ter o meu momento de orgulho: de certa maneira, se eu tive algum papel importante ao longo desses anos todos de trabalho, foi o de recolocar na roda a expressão macumba. Hoje bastante gente se diz macumbeira, mas quando eu comecei, lá em 2006, 2007, tomei muita porrada de gente que desqualificava totalmente. Hoje é até cult [risos].
Pode-se dizer que é a construção de uma nova memória?
Sim. É entrar num embate sobre essa questão e reivindicar a ideia do que é macumba. Se você vai a uma roda de samba dos velhos sambistas que versam no partido alto, ali estão os cumbas que têm o poder da palavra. Macumba: a união dos cumbas.
No mundo atual, sem esperanças ou utopias, como podemos fazer desses espaços populares espaços de resistência?
Não sei. Vou te confessar que não sou fã da palavra “resistência”, não gosto dessa ideia. Resistir é de antemão admitir que você é pautado pelo outro. Lá vem o outro com uma porrada de pautas dele e você fica ali, resistindo. Claro que existem resistências fundamentais, mas eu acho que essas culturas estão um passo além da resistência, porque elas não simplesmente resistem, elas inventam alternativas de mundo. Gosto de trabalhar com a ideia das “culturas de fresta” exatamente por causa disso. Você imagina que o Brasil oficial é um projeto de muro, de desencanto, de concreto, de dureza, mas esse muro tem rachaduras onde você vai praticando a vida, não só como resistência, mas também como invenção constante de mundo. O samba não é só uma cultura de resistência: o samba inventou coisas e chegou onde aqueles que o combatem não vão chegar, porque não entendem do que se trata. Isso é reconstruir sentido de mundo e eu acho isso muito poderoso. Agora, como é que se reconstrói? Eu não sou bom com essas fórmulas, mas sou adepto do amiudamento, inclusive nas minhas obras. Acredito que é no cotidiano que essas coisas se estabelecem. Nunca me senti atraído pelos grandes movimentos, pela dimensão espetacular da vida, embora eu ache importante. O que me espanta é como a vida é incessantemente reconstruída na miudeza do cotidiano. Mesmo quando a gente não percebe. Nós, e eu me incluo nisso, somos viciados nos grandes processos históricos e às vezes esquecemos daquela lição do ponto de caboclo: “uma é maior, outra é menor, a miudinha é que me alumeia”. Eu não sou um sujeito pessimista, otimista também não sou, até porque sou botafoguense, mas não sou pessimista, porque a vida está acontecendo! Tem uma frase do Guimarães Rosa, no Grande Sertão, quando Riobaldo está vivendo aquela paixão por Diadorim, mas tem Otacília, que é aquele amor calmo e tal. E o Riobaldo fala que o amor é assim, é o rato que sai dum buraquinho e é um ratazão, é um tigre leão. No momento em que vira um tigre leão, não tem como colocar de volta no buraco. E eu acho que hoje, nós, no Brasil, estamos vivendo uma reação extremada do que há de mais fascista, conservador, retrógrado e reacionário, exatamente porque o rato saiu do buraquinho. E o rato que saiu do buraquinho é o Brasil representado pela diversidade sexual, representado pelas mulheres, pelos negros e negras, pelas populações originárias. Esse Brasil saiu do buraquinho mesmo. Ao mesmo tempo em que o Brasil oficial é um desencanto, essas brasilidades nunca estiveram tão fortes. E é por isso que o Brasil oficial está apavorado. Esse projeto que está aí nesse governo, esse projeto de morte, é de quem está apavorado. Eles morrem de medo do Brasil das sonoridades dos terreiros, da diversidade sexual, do Brasil que questiona o padrão branco hétero-patriarcal normativo que marcou a nossa história. E eu acho que é no cotidiano que essas práticas vão sendo empreendidas. A vida é uma rinha, o samba do Império Serrano fala isso: a vida é uma rinha, faz parte, é o jogo.