Por Ivan Lessa
Sempre chega o dia na vida de um homem em que ele tem que resolver se vai ou não comprar um sistema de som com compartimento para disco compacto reproduzido a laser, amplificador com cinco equalizadores gráficos, cassete duplo, sistema Dolby, toca-discos e dois alto-falantes two-way com 65 watts de potência, mais, é claro, o controle remoto que a tudo dirige sem se ter que sair da poltrona – tudo por mais ou menos uns 1.500 dólares em dez suavíssimas prestações sem juros.
Resolvi que sim, que chegara o momento, estava suficientemente maduro para finalmente minha casa participar daquilo que, segundo vejo nas publicações brasileiras, é chamado pitoresca e jovialmente de “tecnologia de ponta”, algo que eu sempre acreditei aplicar-se ao treinamento moderno e intensivo, talvez à base de anabolizantes, dos extremas-direitas e esquerdas dos clubes ricos e que em geral se chamam Paulinho.
A oferta chegou à minha casa via um dos insuportáveis folhetos de propaganda da American Express, que dedico sem pestanejar à lata do lixo. Fiz as contas, consultei a patroa – para ficar num termo idiomático grosseiro e paternalista e que aí vai em nome das saudades –, consultei minha filha e, diante da aprovação geral, liguei para a companhia, dei meu nome e número e aguardei, com o mesmo frio na boca do estômago que devem sentir os astronautas pouco antes de a contagem regressiva ter início.
Sexta-feira, dia 13 de janeiro – um mau presságio –, lá estava o vasto embrulho a me esperar no saguão de entrada da casa da vizinha. Mrs. Carey. Claro que não entregaram dentro dos horários por mim estipulados, ou melhor, rogados.
A duras penas, conforme dizem os flechados por índios, carreguei o bruto de 29 quilos, sem alças, dois lances de escada acima. Tomei água de flor de laranjeira, respirei fundo, armei-me de chaves de parafuso, paciência e coragem indômita e parti para o choque com o futuro.
Vou tentar resumir meu ingresso no clube nuclear, digo, agremiação compacta: às duas e meia, comecei a abrir caixas e folhetos de instrução; às sete horas, quando minha mulher chegou em casa, lá estava eu – suado, sujo, sem sorriso de vitória nos lábios, sem o ríctus da derrota no rosto, apenas a perplexidade do botocudo diante do Caramuru, digamos assim.
Oquei, vá lá que seja, exagero, estou entre amigos. Mas o negócio estava e não estava funcionando. A bandeja que recebe o CD se ensimesmara e não havia jeito de comparecer, a um toque mágico de meus dedos calejados. A fiação lembrava vagamente o pior espaguete à bolonhesa servido em Serra Pelada e minha vista não mais conseguia distinguir um equalizador gráfico do rifle telescópico que matou Kennedy.
Jantamos em silêncio. Sou muito temido quando fico quieto. Mais ou menos refeito, por volta das oito da noite voltei à labuta hercúlea, em seu aspecto físico, à disputa cerebral-enxadrista, em sua abordagem intelectual.
Fui dormir com o sistema funcionando em apenas 75 por cento de suas possibilidades. Às sete da manhã, o corpo doído, todos os sistemas diziam “vai”, para ficar num pecadilho de tradução incorreta, o que é muito comum. A “coisa” funcionava.
Saí, fui até uma loja a dois quarteirões de casa e comprei meu primeiro CD. “Bad”, do Michael Jackson. Porque estava em oferta especial. Porque minha filha curtiria. Porque eu conhecia, há uns bons 20 anos, o que o grande arranjador Quincy Jones sabe fazer com percussão e metais e, agora, sintetizadores.
Botei aos berros, a casa tremeu, deve ter perturbado a torre de controle de Heathrow, a vibração (lato sensu) foi geral!
Agora, lá está, à espera de meus discos de Orlando Silva, Billy Eckstine, Nat King Cole e cassetes com programas da Rádio Nacional. Como Carlitos, entrei para os tempos modernos. Como Carlitos, olho desconfiado para a bandeja do CD que se recusa a abrir.