Por Ivan Lessa
Hoje, depois do almoço, eu participei de um programa de rádio, sobre livros, lá para uma estação de São Paulo. Programa, aliás, com nome de samba-canção na voz, de preferência, do Lúcio Alves: “Certas Palavras”.
Eles queriam saber de mim o seguinte: o que é que eu ando lendo aqui em Londres, quais são as novidades nas livrarias, o que é que eu recomendo.
Como de hábito, entrei em solilóquio incontível, como sói acontecer com os melancólicos príncipes dinamarqueses. Acho que essa é a única maneira que eu tenho de pensar: falando em voz alta. Certas pessoas escrevem para saber o que acham. Eu falo. E é uma parada para me conter. Consequentemente, sou aquilo que o vulgo chama de falastrão palpiteiro. Não discordo. Não sou ordeiro, não acredito na ordem, desconfio de tudo que cheire a progresso, essas bandeiras todas.
Que eu me lembre – e todo cara que fala pelos cotovelos se esquece do que andou dizendo que eu me lembre, de repente vi-me envolvido numa verdade da qual só me dei conta ao articulá-la: eu não tenho a menor confiança em livro. Livro não me inspira o menor respeito.
É que livro nós, os brasileiros, levamos muito a sério, talvez por existirem com tanta escassez de qualidade. Principalmente em se tratando de ficção nativa. O resto? O resto a gente vai e traduz, ora.
Eu leio simultaneamente uns três livros. Quase sempre ficção americana, algo em português, quase sempre Machado (não temos muito mais que o Bruxo do Cosme Velho), e uma enxurrada de publicação especializada sobre livro, sobre autores. Quer dizer: eu leio muito mais sobre livro do que livro em si. E o livro passa então a funcionar como objeto perfeito, encerrado em mistério, decifrado, analisado e esmiuçado por especialista regiamente pago para a resenha, a crítica e o ensaio.
Depois sou o protótipo do rato de livraria. Sou capaz de ficar meia hora folheando as novidades da semana. Leio o parágrafo inicial, dou uma folheada, cato uma frase aqui e outra ali, pego o jeitão do bruto, confiro orelha e contracapa. E eis o livro fechado e encerrado e agora é esperar a resenha para ver se o perito concorda comigo que o romance está morto e nada mais tem a dizer.
No que se passa automaticamente à não-ficção. Às biografias, autobiografias, análises literárias, memórias, volumes de cartas. Debaixo disso tudo, cada vez mais enterrado, o livro, o romance, seja Proust, Joyce ou Umberto Eco.
Além do mais, o clima na Inglaterra não conduz à ficção experimental ou de vanguarda, que, num mundo ideal, seria a que mais me interessaria. Mais me interessaria porque nunca descobri nada de muito importante num livro. Descobri muito mais sentado no banco da praça discutindo com a namorada do que em A montanha mágica do Thomas Mann. Senti muito mais aquela manhã de sol em Copacabana do que o suicídio de Ana Karenina de Tolstoi. Um amigo me deixou muito mais perplexo no bar do que o Leopold Bloom tomando um porre com o Stephen Dedalus do James Joyce.
O que todos os romances me deram foi, muito raramente, uma vaga lembrança do que foi o banco da praça, a cara da namorada, o jeitão do amigo, aquela manhã de sol. Mas o que eu senti, ah, isso ninguém nem nada chegou perto. Eu, como você e você e você, estava, estou, estamos vivos. Um romance é a coisa mais morta do mundo. E não adianta dar o golpe da releitura. Ele continua lá, paradão. Cada vez dando menos. Então vai e se aplica o golpe do bisturi: dissecá-lo para entender. E aí se perde o banco da praça, a manhã de sol etc. etc. etc.
Estou sendo claro? Claro que não. Fui falar de livro. Livro nunca é claro. Faz um escuro danado, o tal do livro.