Por Renato Rovai e Felipe Mazzoni
Em meio a celebridades festejadas pela mídia como Salman Rushdie, Jô Soares e o “ideólogo” Arnaldo Jabor, ele brilhou sozinho. Sua palestra, que ele prefere chamar de aula, foi de longe a mais concorrida da 3ª Festa Literária Internacional de Paraty, realizada no mês passado.
Não apenas na sala do evento, mas do lado de fora e próximo ao telão que transmitia sua fala, Ariano Suassuna, aos 78 anos, completados no último dia 3 de agosto, hipnotizava as pessoas que se aglomeravam para ouvi-lo.
Entre estas pessoas estava João Filho, baiano de Bom Jesus da Lapa. O jovem de 30 anos também chamou a atenção do público presente em Paraty e começa a se firmar como uma das promessas da literatura brasileira.
Com seu livro Encarniçado, lançado no ano passado, João apresenta ao público um novo e original estilo de narrativa, oralizado, lembrando um pouco a cultura popular do Nordeste. Fórum convidou os dois escritores para estabelecer um diálogo entre duas gerações de artistas com estilos distintos, mas origens semelhantes. Acompanhe abaixo trechos da instigante conversa entre Ariano Suassuna e João Filho.
Como o senhor, eu também sou entusiasta do Dom Quixote. (Ariano Suassuna tinha tratado de Dom Quixote em boa parte da palestra — que ele prefere chamar de aula — que ministrara na Flip um pouco antes da entrevista).
Que maravilha!
Seu Ariano, em muitos textos seus e também no Auto da Compadecida, muitos trechos que o senhor utiliza são de cantorias e de literatura de cordel. Fale um pouco dessa sua profunda relação com a cultura popular da sua região.
Assisti ao primeiro cantador quando ainda era menino lá na minha terra, em Taperoá, sertão da Paraíba. E naquele dia participava um grande cantador, chamado Antonio Marinho, que, além dos improvisos, cantou um folheto, escrito por ele, que me causou grande impressão. Depois, me lembro de um dia na biblioteca de meu pai. Ele era um grande leitor, sabia versos de cor e era amigo de um escritor cearense chamado Leonardo Motta, que foi um dos pioneiros da documentação sobre os poetas populares. E lembro que estava olhando a biblioteca de casa e vi que ele tinha dedicado um dos seus livros ao meu pai. Dedicou a seis pessoas, entre as quais o meu pai, que é citado como uma das fontes que comunicaram versos a ele. Então, você imagine o orgulho que eu tinha. Eu na biblioteca, pego aquele livro e meu pai está lá como personagem. Foi aí que comecei a ver que aqueles cantadores, que eu tinha ouvido com tanta alegria, eram assunto de livros, que o que eles faziam eram coisas importantes. Ficou sacralizado pra mim o cantador. Não é por acaso, talvez, que quando fui escrever O Auto da Compadecida me baseei em três folhetos. Estão todos os três citados no livro de Leonardo Motta. Foi O Enterro do Cachorro, de Leão de Gomes de Barros, O Cavalo que Defecava Dinheiro, que também acho que é dele, e o Castigo da Soberba, que é dado como de autoria de dois autores folclóricos, Anselmo Vieira de Souza e Silvinho de Pirauá. Eu me baseei nesses três folhetos para fazer o Auto da Compadecida.
O que o senhor acha que poderia ser feito para que a cultura brasileira fosse melhor trabalhada nas salas de aula, na educação formal?
Olhe, não sou muito bom nisso, não. Esse é mais um assunto de educador e de sociólogo, sou um escritor. Por acaso me interesso por esse tipo de coisa, mas não sei exatamente o que se pode fazer. Mas uma coisa eu sei, se os meios de comunicação de massa dessem um pouco mais de audição para a nossa cultura isso ajudaria muito.
Eu sou de Bom Jesus da Lapa (interior da Bahia) e também venho dessa tradição. O cordel também está muito vivo em mim, quando começaram a ler meu texto me falaram que ele tinha uma ligação muito forte com rap e eu disse que não. Com o rap não, tem com o repente…
Achei muito bom você falar nisso, porque outro dia assisti colocarem para uma disputa um rapista com um repentista. Mas esse rapista levou uma pisa, uma surra tão grande, que fiquei com pena dele. Vou dizer uma coisa: os repentistas têm uma presença de espírito tão grande, uma riqueza dentro deles tão grande, que faz a diferença. Já o rap não é uma coisa brasileira, é americana, uma coisa de importação, uma deformação. Eu estou habituado a ver o improvisador, mas sempre me surpreendo.
Mesmo que você já tenha ouvido uma glosa (*1), por centenas de vezes ela parece sempre nova.
É que ainda tem o improviso. Uma vez dei um mote a um cantador, “a vida venceu a morte”. Olhe, que não é fácil, né? E foi glosado no momento, porque quem deu o mote fui eu. Veja o que ele me faz:
Na vida material, cumpri o sagrado destino,
O filho de Deus divino, nos deu glória espiritual,
Deu o bem tirou o mal, livrando-nos da má sorte,
Pai de seu suplicio forte, como o maior dos heróis,
Morreu para dar vida a nós, a vida venceu a morte.
É uma décima, né?
É uma décima , exatamente. É uma beleza. Outra vez estava apresentando cantadores. Era a primeira vez que eu apresentava cantadores, no Recife, no Teatro Santa Isabel. Tinha 19 anos e por acaso estavam uns estudantes que começaram a ficar meio enciumados. Eram de fora e eles por ciúme resolveram participar. E fizeram o que hoje se chama de happening, uma performance. Um deles ficou com as mãos nos bolsos e o outro ficou por trás. O de cá discursava e o de lá fazia gestos; quando ele terminou o público aplaudiu educadamente. Mas aí quando os cantadores retomaram, eles estavam cantando um estilo de sextilha (*2) que se chama gemedeira, porque diz “ai, ai, meu Deus” antes da última estrofe. Aí, Lourival Batista, que era um desses cantadores, disse:
Ele é um gigante…
Pois é, ele disse, deixe me ver se eu me lembro da estrofe:
O de trás dava banana,
O da frente discursava,
Quanto mais um se “inxiria”,
Mas o outro se encostava.
Atrás ainda tinha um jeito,
Ai, ai, meu Deus,
Na frente é que eu não ficava.
(risos).
Tem uma diferença do rap com o repente, que é a riqueza da forma do repente. Não é fácil usar sextilha. A décima é ainda mais complicado…
O pessoal que não conhece a poética não sabe, mas a décima é uma estrofe com dez versos de sete sílabas. O primeiro verso tem de rimar com o quarto e o quinto, o segundo tem de rimar com o terceiro, o sexto e o sétimo têm de rimar com o décimo e o oitavo, com o nono, quer dizer, você tem de improvisar e fazer essas rimas tudo ali, na hora.
É algo que parece impossível, né?
Uma vez estava assistindo a uma cantoria num lugar chamado Santa Luzia de Sabuji e na frente da cantoria estava um camarada, um tal de seu Joventino, com um 38, um revólver desse tamanho aqui, e um cantador quando dá um mote que ele não glosa ele se considera desmoralizado. Então estava um cantador chamado Heleno Belo, estava lá glosando os motes, aí um camarada, um inimigo da humanidade, um camarada que estava lá atrás, abaixou e gritou: seu Joventino é ladrão. Que era pra ele glosar.
Isso é a morte…
É a morte, rapaz. Aí ele com uma baita presença de espírito, disse:
Só deixando de glosar,
embora seja um defeito,
quem glosa fica sujeito,
a ferir ou melindrar,
agora eu vou me arriscar,
ofendendo ao cidadão,
que com calma e educação,
podia ser meu amigo,
você diz, mas eu não digo,
seu joventino é ladrão.
(risos)
A cultura popular, e o repente mais especificamente, tem perdido espaço no Nordeste?
Eu já vi muita gente ir lá para o Nordeste profetizar o fim do repente. E já vi muitos dos que profetizaram irem embora para o outro lado e o repente continuar lá. Agora, evidentemente, com a falta de atenção que se tem aqui no Brasil, é difícil. Mas hoje mesmo existem grandes cantadores por lá, grandes improvisadores, grandes repentistas.
Tem um poeta de São Paulo, o Glauco Mattoso, que pegou a forma do repente e está fazendo repente de muita qualidade, só que urbano. Mas não perdeu a forma.
Não tem problema de ser urbano, é a mesma coisa.
Antes da entrevista estávamos conversando um pouco a respeito da aula do senhor e ela é a demonstração de que não é um anseio da população abrir mão de sua tradição, de sua cultura. A prova de que não é, é que a aula do senhor foi a mais concorrida, a mais aplaudida e a que teve a maior fila para autografar um livro nesta Flip.
Olha, meu amigo Capiba, que era um grande compositor, uma figura extraordinária, ficava indignado quando diziam que cachorro gosta de osso. Ele dizia, só dão osso ao cachorro, depois dizem que ele só gosta de osso. Ele adora comida como todo mundo. Ele dizia, bote um osso e bote um filé para ver qual é que ele escolhe. Agora não estão deixando a juventude brasileira entrar em contato com o filé. Só estão lhes dando osso.
E o senhor atribui isso principalmente aos meios de comunicação?
Às vezes as pessoas pensam que sou contra a televisão. Digo, não, sou contra é o modo como a estão fazendo. A televisão é uma coisa maravilhosa, mas o que tem de arte ali é muito pouco. Tem noticiário, entretenimento, negócio e só de repente aparece uma obra de arte. Em geral, eles só mostram o que não presta e depois fazem uma enquete e perguntam: o que o senhor acha dos programas? E as pessoas dizem que gostam do que não presta. Claro, eles só vêem o que não presta.
Da adaptação do Auto da Compadecida o senhor gostou bastante.
Gostei muito, tenho muita sorte. Antes do Auto da Compadecida, eu tive duas peças encenadas na televisão, por Luis Fernando Carvalho, que é um diretor que admiro muito. Ele adaptou duas peças minhas, A Fada da Boa Preguiça e uma Mulher Vestida de Sol. Dois espetáculos belíssimos. E gostei muito da adaptação do Guel (Arraes) também, do Auto da Compadecida.
Voltando ao começo, quero lhe agradecer uma coisa, de o senhor falar tanto a respeito do Dom Quixote e da leitura clássica. Sabe, eu lá longe, em Bom Jesus da Lapa, às vezes fico me sentindo muito só, me achando meio arcaico. Fico lá lendo Quixote e clássicos e escrevendo minhas coisas e me sinto longe. Mas com essa sua aula de hoje e agora vendo essa entrevista, lavei a alma…
Fico muito contente, até porque Cervantes não é arcaico nem nunca será. Aquele ali é contemporâneo, eterno e será sempre para todas as gerações. E o Quixote ainda hoje é romance de vanguarda. E vai ser até o fim dos tempos. E esses que querem olhar pra ele por cima do ombro, não vão longe. Nunca vão chegar lá.
Dom Quixote tem um peso mais próximo da Ilíada, de Homero. É algo mais clássico. Dá para dizer que é mais algo de um pensador do que um romance de fato.
Eu concordo.
E o senhor sempre defende que é necessário sonhar, como o Dom Quixote, né?
Eu acho, claro. O sonho é que leva a gente pra frente. Se a gente for seguir a razão, fica aquietado, acomodado.
Um dos seus grandes sonhos era que a esquerda chegasse ao poder no Brasil, não é verdade? Como o senhor está avaliando o governo Lula?
A esquerda não chegou ao poder, a esquerda chegou ao governo, que é outra coisa muito diferente. Isso ainda vai demorar muito, se é que vem. É outra coisa. Vocês se lembram daquilo que eu disse hoje a respeito de meu pai. Meu pai viveu um drama, né? Porque ele tinha essa vocação política, que graças a Deus não tenho. E imagino as decepções e o sofrimento que ele passou. E estou vendo Lula na mesma situação. Quando falei de meu pai na aula de hoje, estava fazendo uma referência a Lula. (Na palestra que realizou antes da entrevista, Ariano contou que seu pai era político e idealista, mas sofreu muito no poder por ter de lidar com aqueles que usam o poder público para interesses particulares.) Você imagine que desgosto Lula não está, porque ele é um homem honrado.
Mas o senhor considera que é possível um partido de esquerda chegar ao poder e não ao governo, como o senhor disse, disputando dentro da lógica capitalista?
Vocês têm razão, acho que não. A tendência é esse povo acabar sempre sendo vitorioso, porque eles é que valem e correspondem às coisas mais baixas, ao interesse, ao egoísmo, coisas desse tipo. E nós, nós pensamos em uma idéia de justiça, coisa assim. É difícil, é difícil.
O senhor considera o Lula uma figura quixotesca?
Veja que engraçado, uma vez eu estive num ato público de apoio a Lula e um amigo, de quem gosto muito, ao ver meu retrato com Lula, disse que era Dom Quixote e Sancho. Eu seria Dom Quixote e Lula seria Sancho, porque o Lula é baixinho e gordinho (risos)… Bom, aí eu disse, pode até ser, porque quando chegou a hora de dar o governo da ilha, Dom Quixote deu a responsabilidade a Sancho, que fez um bom governo. O político era Sancho. Mas, mesmo assim, depois de um desgosto muito grande, ele terminou saindo, quando descobriu o que tinha ao redor. Ele saiu e foi chorar com o jumento. Eu acho que Lula está mais ou menos nessa situação. Acho que ele já está chorando com o jumento.
Nesse caso, quem seria o jumento?
Olha, não sei. O jumento é uma figura fraterna junto de Sancho… Existe um padre, uma pessoa muito boa do Recife, padre Daniel Lima, e ele uma vez fez uma conferência, e disse que Dom Quixote representava o sol, a generosidade e a justiça. E que Sancho era a burguesia. Eu disse não, não é. Sancho é o povo, o povo espanhol. O que representa alguma coisa que se pode dizer burguesia são aqueles proprietários espancadores, aqueles que ficam zombando de Dom Quixote e de Sancho, fingindo. Até fingem que dão a ilha a eles, o que não é verdade. E os dois acreditam. Esses é que são a burguesia. Pois bem, pronto, essas figuras que ficam cercando o Lula, representam esse povo, os espancadores. Infelizmente é isso. Agora, imagino o desgosto e a surpresa de Lula ao descobrir isso. Eu que estou aqui mais longe, estou com vergonha. Você, imagine ele. É a primeira vez que um filho pobre do Brasil real chega ao governo e passa um desgosto desses.
Acho bonito que suas idéias, sua defesa cultural esteja influenciando gente mais nova lá de Pernambuco. O Antônio Nóbrega é um deles, não é verdade?
Nóbrega foi meu companheiro desde o Quinteto Armorial (*3). Quer dizer, desde que eu era diretor do departamento de extensão cultural da universidade. Foi aí que ele começou. Ele e o Antonio Madureira, que era o coordenador do quinteto, um senhor músico.
E com o movimento Mangue Beat, o senhor teve alguma relação?
Tive, mas olhe bem, eu inclusive….
Esse beat no nome complica, né? (risos)
Pois é, o líder deles, eu gostava muito, o Chico. Ele chegou junto de mim dizendo, mestre, ele me chamava de mestre, e me disse que era um armorial. E respondi, então por que você se chama Chico Science? Eu dizia a ele: gosto muito da sua parte Chico, mas com a sua parte Science eu não quero negócio não (risos.) Mude o nome para Chico Ciência que eu subo com você no palco.
E o Cordel do Fogo Encantado?
Outro dia o líder do Cordel disse que eles começaram a se reunir depois que eu fui fazer o armorial lá na terra deles, em Arco Verde. Eles pegaram o touro na unha e resolveram fazer também. Agora, eu sinto falta de um movimento mais amplo. Dou muita importância ao movimento modernista porque ele deu o romance de Mário de Andrade, a poesia do Drummond, a escultura de Brecheret e Bruno Giorgi, a música de Villa Lobos. Aí eu vejo o movimento mangue, cadê a escultura de lá? Cadê o romance? É uma coisa que só pega um setor da música, acho pouco. Não tem uma amplitude, não tem um embasamento de pensamento.
(*1) De acordo com o dicionário Houaiss, “décima (vrs) única, na qual se inclui o mote de um ou de dois versos”
(*2) Estrofe que segue o esquema de rima abcbdb
(*3): “A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos ‘folhetos’ do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus ‘cantares’, e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados”. Essa é a definição a respeito do movimento dada pelo próprio Ariano Suassuna, no Jornal da Semana, Recife, 20 maio 1975.
Quanto ao Quinteto Armorial, trata-se de um grupo formado em Recife, em 1970. Foi o mais importante grupo a criar uma música de câmara erudita brasileira de raízes populares. Ligado ao Movimento Armorial, de Ariano Suassuna, o grupo era composto tanto por rabeca, pífano, viola caipira, violão e zabumba quanto por violino, viola e flauta transversal. Seus integrantes eram Antônio José Madureira, Egildo Vieira do Nascimento, Antonio Nóbrega, Fernando Torres Barbosa e Edison Eulálio Cabral. Gravaram quatro LPs até o fim do grupo, em 1980. Antônio Nóbrega seguiu carreira solo e seu trabalho mantém profundas relações com o armorial.
(link original: http://www.revistaforum.com.br/2014/07/26/so_nos_dao_o_osso_-_entrevista_com_ariano_suassuna/)