Em meados da década de 60, o governo revolucionário resolveu atender aos interesses das empreiteiras e da necessidade de ligar Roraima por via terrestre ao restante do país, e iniciou a construção da BR-174 (Manaus-Boa Vista), em mais um dos faraônicos projetos de integração nacional que incluíam a BR 230 (Transamazônica, ligando Cabedelo, na Paraíba, a Lábrea, no Amazonas), a BR-319 (Manaus-Porto Velho) e a BR-163 (Santarém-Cuiabá).
Em 1968, apareceu o primeiro grande obstáculo: a estrada teria de cruzar a região do alto rio Urubu, a cerca de 200 quilômetros da linha do Equador, área de caça dos índios waimiri-atroari, temidos pelas notícias de sua ferocidade e de sua posição contrária à presença de estranhos em seus domínios territoriais.
O padre João Calleri, missionário da Congregação Consolata, foi escolhido para chefiar uma missão de paz junto aos índios, que até então poucos contatos tinham com a sociedade envolvente. O sacerdote italiano de 34 anos se tornara conhecido por pacificar os índios ianomâmi, na região do Catrimani, na fronteira do Brasil com a Venezuela.
Ele aceitou a nova missão porque queria preparar o povo waimiri-atroari para o impacto com a “civilização”. Sonhou, na missão, criar anticorpos contra as forças destruidoras. No final de outubro, ele e sua equipe (sete homens e duas mulheres) estavam mortos, massacrados por índios supostamente comandados pelo lendário chefe Maroaga. O único sobrevivente era um mateiro chamado Álvaro Paulo.
A partir daí, o DNER transferiu a responsabilidade para o 6.º Batalhão de Engenharia e Construção (6.º BEC) do Exército Brasileiro, que promoveu uma faxina étnica ao longo da faixa territorial por onde passou a estrada. Os 3.500 índios da tribo foram dizimados nos anos seguintes. Um ex-funcionário da Funai contou que eles apareciam nos acampamentos e eram recebidos com rajadas de metralhadoras. Os militares matavam e, com auxílio de retroescavadeiras, jogavam terra por cima dos corpos, para esconder as provas do genocídio.
Na época, o padre Silvano Sabatini era presidente da Comissão Pró-Índio da Prelazia de Roraima. Ele foi um dos poucos que não acreditaram na versão oficial divulgada pelas autoridades brasileiras de que a missão fracassara pela suposta incompetência do chefe da expedição, padre João Calleri, e jurou descobrir a verdade.
Em 1987, quase 20 anos depois, resolveu enfrentar o desafio, indo garimpar a história do outro lado, o lado dos “vencidos”. Com a ajuda dos jornalistas Antônio Carlos Fon e Denise Fon, o padre Sabatini pôs num livro tudo que conseguiu apurar.
Lançado no final de 98, “Massacre”, das Edições Loyola, traz relatos chocantes. Para ler o livro no formato digital, clique aqui.

Texto do jornalista Elio Gaspari sobre o livro
Para explicar o massacre do padre Calleri, Sabatini nos remete aos anos 50, década em que a Missão Evangélica da Amazônia (Meva), vinculada à extrema-direita cristã dos EUA, se instalou na região. O sul da Guiana e do Suriname, onde estavam localizadas as duas missões, era uma área de interesse estratégico.
O padre Dante Possami, brasileiro e missionário em Roraima nos anos 1956-1962, afirma, em depoimento transcrito no livro, que assistia, indignado, os voos em grande altitude de um avião, conhecido em Boa Vista como “avião dos protestantes”, sempre o mesmo, vindo da Guiana para o interior do Brasil, sem o controle dos órgãos brasileiros competentes. Na década de 80, o noroeste do Estado do Pará, o nordeste do Estado do Amazonas e o sudeste do Estado de Roraima receberiam o nome de “Província Mineral do Mapuera”.
No Brasil, os responsáveis pela política indigenista acusavam os pastores norte-americanos da Meva de entrarem ilegalmente no país, usarem a catequese como disfarce para prospecção mineral, manterem milícias armadas, impedirem a entrada até de funcionários do governo em suas missões, aliciarem índios para trabalho escravo em minas na Guiana e outras irregularidades. A divisão aérea da Meva, a “Asas do Socorro”, com sede em Boa Vista, era acusada de contrabando de minérios, metais e pedras preciosas.
Se for verdade todas as acusações gravíssimas de homicídios, latrocínios, corrupção e genocídio que teriam sido praticados pela Meva desde a sua fundação nos anos 40, estamos diante de uma organização verdadeiramente criminosa. Segundo o livro Seja Feita a Vossa Vontade, com mais de mil páginas, resultante de 18 anos de investigações dos jornalistas Gerard Colby e Charlotte Dennett, a Meva seria produto de um plano da família Rockfeller para controlar as riquezas da Amazônia, convertendo ou exterminando os índios que viviam nas áreas ricas em minérios.
Comandada pelo pastor Robert Hawkins, a Meva havia pacificado os índios wai-wai, uma espécie de primos afastados dos waimiri-atroari, e estava bastante interessada em “pacificar” esse outro povo. Os norte-americanos já sabiam da existência de uma gigantesca jazida de cassiterita no território indígena, conhecida hoje como mina do Pitinga e explorada há 43 anos pela Paranapanema. A produção anual de concentrado de cassiterita de Pitinga representa cerca de 5% da produção mundial, sendo a mina uma das mais importantes do mundo para aproveitamento de cassiterita.
Cumprindo ordens do pastor Hawkins, um grupo de índios wai-wai, que estava “visitando” a aldeia waimiri-atroari naquele fatídico outubro, realizou o massacre do padre Calleri para que a culpa recaísse sobre seus primos – dando início a uma “guerra justa” promovida pelos militares. Os wai-wai foram obrigados pelo referido pastor a guardar segredo. Depois de 30 anos, alguns anciãos wai-wai e waimiri-atroari resolveram romper o silêncio imposto por décadas, desafiando ameaças de toda ordem, para restabelecer a verdade dura e dolorosa dos vencidos.
O livro do padre Sabatini é mais um capítulo violento da história não contada que se confronta com a história oficial de uma América Ameríndia, que não foi descoberta, mas invadida. E deveria ser leitura obrigatória de todos aqueles que se interessam pelo destino das populações indígenas da Amazônia.