Por Marcos de Vasconcellos
Tempos JK. O empresário Hildegardo Noronha promovia empreendimentos turísticos em Portugal, onde morava com a esposa, Teresinha, numa bela mansão no Estoril e, por forças das circunstâncias, era muito ligado a outros empresários daquela e de outras áreas e acabou por adquirir-Ihes certos hábitos: a caça, por exemplo, atividade que jamais cogitou praticar antes.
Na Europa (continente ao qual Portugal, embora não pareça, pertence) é uso e costume a caça, seja a falconaria, a caça “a poil” (raposas, coelhos, lebres, etc) ou ‘”a plume” (perdizes, codornas, faisões, etc).
Ordenado pelo monge caçador pelos pares faltava a Hildegardo Noronha o traje, e ele o queria um traje de luces. Foi buscá-lo na Áustria. O boné – solidéu eucarístico – na Inglaterra, assim como a arma: uma solene, uma irrepreensível, uma competentíssima Holland & Holland de dois canos, destinada a liquidar as pretensões à vida de qualquer caça de pluma. Da França, uma Saint-Etienne, esta para abastecer as mesas fidalgas com Le Rabie de Lapereau avec sa Sauce Poivre Vert.
Dia de caça e dia do caçador. Fardado como um príncipe, Hildegardo preparou para ir às perdizes. Quando assomou à porta da casa para partir para a grande aventura, deparou-se com Otto Lara Resende, na época nosso Adido Cultural em Lisboa, que chegava para uma visitinha de surpresa.
Quando o famoso escritor mineiro viu Hildegardo com aquele boné inglês, reparou no casaco de verdes vários justapostos com a sabedoria de austríaco acostumado à camuflagem de partisan, no estojo da Holland a tiracolo, não resistiu e proclamou, entre entusiasmado e pasmo:
– Hildegardo! Se eu fosse perdiz, te vendo assim, eu me suicidaria alegremente!
Como é do conhecimento de qualquer pessoa do povão, na caça às perdizes os participantes delimitam áreas de ação, áreas de tiro próprias, com o nobre intuito de não se caçarem uns aos outros. A essas áreas chamam-se “portas”.
As instruções são bem claras: “Você, fulano, fica com esta porta: deste olmo aqui, àquele sobreiro acolá; você, princesa, do olmo à oliveira ali adiante”.
Cada qual com sua “porta” e com a severa instrução de nos limites de sua área não atirar com a arma voltada para ângulos muito abertos, para evitar abater um parceiro, o que poderia interromper o recreio e causar constrangimentos à família do alvo.
Transposta a sua “porta”, Hildegardo Noronha e seu cão iniciaram a fuzilaria. Horas depois, os cartuchos tinham sido explodidos em vão. Artilheiro de primeira viagem, o nosso patrício não tinha abatido sequer um pardal. Convenhamos: uma vergonha!
Num dado momento, atravessa-Ihe à frente uma suculenta perdiz. Hildegardo, ignorando os mandamentos da santa amada arte de matar avoantes, dispara sem pensar em ângulo constitucional nenhum.
Resultado: parte dos chumbos foi atingir o braço de um dos participantes do tiroteio, exatamente o presidente de Portugal, o Sr. Américo Tomaz.
Felizmente para uns, infelizmente para outros, o descuido causou apenas uns escalavrados sem importância, mas não escapou do comentário do Otto, a perdiz suicida descrita acima:
– Hildegardo, você quase muda a História contemporânea de Portugal!…