Por Luiz Antonio Simas
Em 1923, Sinhô compôs o tango “A Cocaína”. Na dedicatória, escreveu na partitura: ao meu amigo Roberto Marinho. Na época a cocaína não era proibida e era vendida em farmácia de diversas formas: pastilha, xarope, vinho, etc.
Acreditava-se na eficácia da cocaína para combater os vícios em morfina e álcool, asma, problemas respiratórios e tristeza. Freud falou disso no texto “Sobre a Coca”, da década de 1880. Os horrores da cocaína começaram a ser descobertos depois.
Pedaço da letra de Sinhô: Só o vício me traz / Cabisbaixa me faz / Reduz-me a pequenina / Quando tem na mão / A forte cocaína / Quando junto de mim / Ingerida em porção /Sinto sã sensação /Alivia-me as dores / Deste meu coração/ Ai, és a gota ou gotavalina / Só tu é minha vida / Só tu, ó cocaína.
Descobertos os malefícios da cocaína, a canção de Sinhô caiu no limbo. A melodia é linda e sugere que no Brasil uma forte presença do tango na canção popular, no mesmo contexto em que o gênero explodiu na Argentina. Mas ninguém se aventurava a gravar a maldita música.
O aparecimento da maconha na canção popular é posterior. Noel, pioneiro, fala em “Quando o samba acabou” do malandro derrotado que “perdendo a doce amada, / foi fumar na encruzilhada / passando horas em meditação”. A canção é de 1935.
Marlene amava a música de Sinhô, mas teve medo, na ditadura militar, de colocar “A Cocaína” no repertório, na década de 70. Foi estimulado por Carlos Drummond de Andrade: “Diga para a Marlene cantar, que época todo mundo cheirava, para mim fez efeito de bicarbonato”.
Em 1986, Marlene participou do show “Praça Onze dos Bambas”, na sala Funarte, dirigido por Ricardo Cravo Albin, sobre a história da Praça Onze, e cantou o tango maldito de Sinhô.
Em 1987, fez no teatro Rival o show “Estrela da Vida”, onde também cantou a canção.
O interessante é que a letra de Sinhô fica entre a saudação à cocaína e, ao mesmo tempo, reconhece o perigo do “vício arrogante”. E Sinhô fala em “tomar cocaína”, o que suspeito se referir ao vinho da coca, bastante utilizado no período.
Aqui vai Marlene cantando “A Cocaína”. Reparem na plateia de fãs da época das cantoras do rádio e da eterna disputa com Emilinha Borba. São senhorinhas aplaudindo delirantemente a interpretação visceral de Marlene para o tango de Sinhô.
Marlene canta o tango “Cocaína”, de Sinhô, no Teatro Rival, RJ – YouTube
Um detalhe da interpretação de Marlene: ela aprofunda muito a pegada “tangueira” da música de Sinhô. O compositor, aliás, fazia de tudo: samba, maxixe, tanguinho, milonga, valsa… Sinhô era um craque.
Dito isso, preciso confessar: amo Marlene, mas sou Emilinha. Herança familiar. Minha família era Emilinha. Além disso, Emilinha era botafoguense e Marlene era vascaína. Segundo ela, “por causa do Ademir Queixada”.
Estrela da era do rádio no Brasil, Marlene fez sucesso junto a Emilinha Borba e outras vozes surgidas na década de 40. Seu nome de batismo era Victória Bonaiutti de Martino.
Marlene nasceu em 1922, no bairro da Bela Vista, em São Paulo, e era filha de imigrantes italianos. Em uma entrevista, Marlene revelou que o seu nome artístico não era uma homenagem à atriz alemã Marlene Dietrich.
“Não foi por causa da Marlene Dietrich, não. Podia ser qualquer outro nome: Anastácia, Maria do Anzóis”, brinca a cantora, ao lembrar que a mudança de nome foi para que seus pais, extremamente conservadores, não descobrissem que era cantora.
Por volta de 1940, Marlene já cantava na Rádio Tupi. Quando foi descoberta pela mãe, resolveu se mudar para o Rio de Janeiro, vencendo em 1949 o concurso Rainha do Rádio, promovido pela Rádio Nacional. O verso da música “Cantoras do Rádio”, imortalizada na voz de Carmem Miranda, é uma homenagem a Marlene e outras estrelas da época, como Emilinha Borba, Linda e Dircinha Batista.
Marlene teve seu primeiro álbum lançado em 1946. Era um compacto com as canções “Coitadinho do Papai” e “Um Ano Depois”. Sua produção foi ininterrupta até o ano de 1979, com “Rainhas do Rádio”. Depois, lançou mais quatro discos: “Há Sempre um Nome de Mulher” (1987); “Os Ídolos do Rádio” (1988); “Marlene, Meu Bem” (1996) e o último: “Estrela da Manhã” (1998).
Marlene morreu aos 91 anos, em 2014.