Causos Políticos

As articulações secretas de Ézio Ferreira

EX-DEPUTADO FEDERAL EZIO FERREIRA.
Postado por Simão Pessoa

No dia 1º de fevereiro de 1987, sob a presidência do deputado Ulysses Guimarães, o Congresso começa a elaborar a nova Constituição brasileira.

Marinheiro de primeira viagem, o deputado Ézio Ferreira (PFL) ainda estava de bobeira em Brasília, quando, numa sexta-feira, foi convidado pelo deputado Bernardo Cabral (PMDB) para participar de uma festa na casa do presidente da Caixa Econômica, Marcos Freire.

Durante a tertúlia, Ézio foi apresentado a um advogado inteligente e espirituoso, conhecedor tanto dos meandros jurídicos como de uísque 21 anos, charutos cubanos e caviar do mar Negro.

A cultura enciclopédica do advogado e sua ironia cortante impressionaram vivamente o deputado amazonense, tanto que ele não resistiu ao convite proposto pelo sujeito de ambos encararem o circuito boêmio da cidade na noite seguinte.

No sábado, às sete da noite, o advogado apanhou Ézio Ferreira em casa, mas, antes de partirem para a gandaia propriamente dita, ele explicou que havia ocorrido uma pequena mudança de itinerário:

– Primeiro eu vou te apresentar pro José, um grande amigo meu. Depois a gente vai no Piantella, passa no Beirute e termina no Square, que se transformou em “point” das menininhas carentes de colo paterno…

O deputado quase caiu pra trás quando, depois de rodarem alguns minutos, percebeu o carro do advogado entrando numa alameda e estacionando diante do Palácio da Alvorada.

O “José” era simplesmente o presidente José Sarney e o sujeito, que se chamava Saulo Ramos, exerceu os cargos de consultor-geral da República e ministro da Justiça no governo do bardo maranhense.

Os três tornaram-se “amigos de infância”. Ézio passou a ser o “olheiro” de Saulo Ramos e de José Sarney no Congresso Nacional.

Como tinha a maioria no Congresso, o PMDB teria o direito de escolher o relator da Constituinte. Três nomes já estavam disputando o cargo: o senador Fernando Henrique Cardoso e os deputados federais Pimenta da Veiga e Bernardo Cabral.

Em 1983, sem nunca ter desempenhado nenhuma função política ou administrativa relevante, FHC herdou uma cadeira no Senado Federal como suplente de Franco Montoro, que fora eleito governador de São Paulo. No estelionato eleitoral de 1986, quando o Plano Cruzado foi usado como moeda política, Fernando Henrique acabou se reelegendo.

Ézio se encarregou de dar a “ficha” dos três postulantes para Saulo:

– O FHC é um sociólogo que se diz de esquerda, mas não passa de um acadêmico meio esnobe. O Pimenta da Veiga é populista e demagogo. O Bernardo Cabral, além de ser meu amigo pessoal, é um jurisconsulto respeitado e fez um trabalho brilhante na direção nacional da OAB.

A pedido de Ézio, Saulo e José Sarney resolveram apoiar Bernardo.

No primeiro escrutínio, FHC e Bernardo tiveram o mesmo número de votos e Pimenta da Veiga ficou em terceiro. No segundo escrutínio, Sarney, Saulo e Ézio “convenceram” os eleitores de Pimenta da Veiga a votarem em Bernardo. O deputado amazonense foi eleito.

O senador Fábio Lucena queria ser sub-relator da Constituinte, mas foi vetado por Bernardo. Como dois bicudos não se beijam, farinha pouca, meu pirão primeiro. Fábio foi encaixado na Comissão de Sistematização, mas sem nenhum cargo relevante.

Parlamentarista de carteirinha (na época! na época!), Fernando Henrique andava meio cabreiro pelo fato de o sistema de governo ser inalterável, já que se inclui entre as cláusulas pétreas da Constituição – aquelas que não podem ser alteradas por nenhuma espécie de reforma constitucional.

O senador contestava a legitimidade da cláusula pétrea, dizendo-a em desarmonia com o Estado democrático representativo, pois nada poderia constituir obstáculo à vontade do Congresso Nacional, que representa a vontade da população. Como sociólogo, ele era um verdadeiro sofista!

De acordo com nossa cláusula pétrea, não pode ser alterado o seguinte: a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes, os direitos e garantias individuais. Só isso. Basta uma leitura rápida do parágrafo 4.º do artigo 60 da Constituição Cidadã.

Aliás, em todas as Constituições brasileiras, nas cláusulas pétreas, a partir de 1891, estava a República. (A Constituinte de 1988 deu um jeitinho de furtá-la de lá, para incluir, no plebiscito de 1993, o regime de governo, isto é, república ou monarquia, graças à simpatia e habilidade do deputado monarquista Cunha Bueno, que levou na conversa Fernando Henrique, Mário Covas, Ulysses Guimarães e outros caipiras notáveis.)

Saulo Ramos estava no Palácio do Planalto quando Fernando Henrique e Bernardo Cabral foram comunicar a Sarney a escolha, pela Comissão de Sistematização, do parlamentarismo de imediato e a possibilidade de se consultar o povo para uma eventual volta à monarquia.

Quando recebeu aquela notícia, o presidente reagiu e, contrariando sua natureza sempre tranquila, ameaçou intervir politicamente nos trabalhos da Constituinte, que entendia soberanos, não, porém, para cometer loucuras como implantar o parlamentarismo em plena vigência de seu mandato presidencialista e, sobretudo, para trazer de volta a monarquia.

A discussão foi longa sobre os poderes limitados de uma Constituinte derivada de emenda constitucional, sem competência, portanto, para retirar a República da proteção da cláusula pétrea e, muito menos, adotar o parlamentarismo, contra a vontade do povo manifestada em plebiscito anterior.

Fernando Henrique, a certa altura, se desculpou e admitiu não entender porra nenhuma de Direito Constitucional. Como seu parceiro, naquela reunião, entendia menos do que ele, Sarney levantou-se, deu por encerrada a comunicação e apenas agradeceu a cópia do anteprojeto, aquele que começava dizendo que homem e mulher eram iguais em tudo, menos na gestação, na gravidez e no aleitamento…

Quando Saulo Ramos começou a ler o anteprojeto, quase teve um infarto. O deputado Ézio Ferreira foi chamado às pressas ao seu gabinete:

– Porra, Ézio aquele pústula do teu conterrâneo está querendo dar um golpe de Estado. Essa porra aqui é uma cópia descarada da Constituição italiana e se for aprovada desse jeito vai nos levar ao parlamentarismo! Isso não passa de um “golpe branco”! – exasperou-se ele. – O projeto é tão ruim que não se salvam nem os aspectos bons. Não sei quem foi o energúmeno que escreveu esse capítulo sobre direitos trabalhistas, mas seguramente trata-se de alguém de rudimentar alfabetização e de notável desaglutinação mental. O texto constitucional engessa tanto o empregador que ele vai enxergar cada vez mais vantagens em contratar à margem da lei, na informalidade. E isso vai terminar de quebrar a Previdência! Assim não dá, deputado, assim não dá!…

Ézio foi então encarregado de montar uma tropa de choque na Assembleia Constituinte para realizar a “operação abafa” e derrubar, no voto, os artigos considerados mais polêmicos ou nefastos para o país.

Nascia o Centro Parlamentar, ou “Centrão”, que não tinha uma diretriz ideológica específica, mas cujos expoentes (Francisco Dornelles, Delfim Netto, Benito Gama e Roberto Campos) eram identificados com a “direita” brasileira.

Em junho de 1987, durante uma reunião informal na casa de Ézio Ferreira, movida a uísque, charutos e caviar, o senador Fábio Lucena começou a discutir violentamente com o deputado Bernardo Cabral sobre alguns artigos da nova Carta Magna.

Ainda ressentido pelo papel menor que lhe coubera na Constituinte, o senador começou a apontar as falhas jurídicas existentes nos artigos – incluindo redações de “pé-quebrado” que primavam pelo óbvio ululante –, calçando seus argumentos em citações de Vicente Ráo e Pontes de Miranda.

Cada vez mais puto, Bernardo rebatia as críticas com ironia, considerando a argumentação do senador um acinte ao seu (dele) trabalho de relator. Em dado momento, Bernardo tentou encerrar o assunto, sem esconder um certo desprezo pelas observações do colega:

– Olha, Fábio, eu sou professor de Direito Constitucional…

Fábio, que já estava pra lá de Marrakesh, devolveu de “bico”:

– Porra, Bernardo, se você for professor de Direito Constitucional, eu sou um cientista da Nasa…

Dito isso, o senador se despediu de Ézio Ferreira e foi embora, falando cobras e lagartos do relator, da Assembleia Constituinte, do PMDB e do futuro do país.

Uma semana depois, no dia 14, durante uma crise de depressão, Fábio meteu uma bala na cabeça e atravessou o Rubicão, onde, conforme Albert Camus, não se chegava para pescar. Vá ser radical assim lá no Valhalla!

No seu lugar, assumiu o poeta e ex-deputado federal Áureo Mello, que, em agosto, apresentou uma proposição – acatada pela Comissão de Sistematização – para que o sistema parlamentarista só fosse adotado a partir de 1990, baixando a fervura no Palácio do Planalto.

Mais tarde, o “Centrão” – com a manobra do plebiscito de 1993, onde o povo decidiu manter o presidencialismo – jogou a adoção do parlamentarismo para as calendas gregas.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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