No Natal de 2001, recebi um “pacote” dos Correios, enviado pelo meu ilustre amigo e senador Áureo Mello, que faleceu em Brasília no dia 15 de janeiro de 2015.
O pacote continha parte das obras completas do poeta, jornalista, advogado, caricaturista, artista plástico e escritor, incluindo os clássicos “Presença do estudante Inhuc Cambaxirra”, “Inspiração”, “O muito bom sozinho” e “Como se eu fosse um cantador”, além de coletâneas sobre sua atuação parlamentar em Brasília.
Áureo aproveitou a oportunidade para me dar um “puxão de orelha” por meio de um bilhete irônico, que passo a transcrever literalmente:
“Meu caro Simoun Piçou-a: Brincadeira, Simão Pessoa, és o mais bem-humorado dos nossos escritores, por isso tomo a liberdade de avacalhar-te o nome. Lembrar-te-ás, porém, do prefácio que escrevi de um livro teu, maravilhoso, em que te nomeava o sucessor de Bacellar, o maior gênio poético do nosso Amazonas. O meu conceito a teu respeito não mudou, principalmente depois de urinar nas calças de tanto rir com as histórias que contas num teu livro sobre folclore amazonense, que apenas agora me chega às mãos, depois de há muito publicado. Tua coragem camicase de citar nominalmente as tuas ‘vítimas’ deveria ser aproveitada pelo Bin Laden, que ousou beliscar na própria toca o leão americano.
Foste não verdadeiro no item 10 a respeito deste teu conterrâneo, pois nunca distribuí tucumãs e congêneres em gabinetes de senadores, e de todos eles a caricatura que já fiz foi a do Afonso Arinos, que ficou quase tão perfeita quanto a que faço do nosso inesquecível Kaudera. O diploma de lesinho de galeria que me outorgastes também não vale, não acontecia, e quanto ao ter sido um senador ‘boca de siri’ ao substituir o amigo Fábio durante sete anos e sete meses, é desmentido pelos discursos taquigrafados que te envio.
Defendi e defendo o Collor porque o que fizeram ao nosso presidente foi uma ‘armação’ dos produtores nacionais de cimento caro, da Auto-latrina, da turma da informática, do monopólio pela Abril das ‘páginas amarelas’ e a mágoa do ‘tio Roberto’ porque o Collor ajudou na ‘linha vermelha’ do ‘tio Leonel’ e um grande segredo entre os dois, envolvendo negação a pedido/imposição.
Estarei viajando hoje a Belém e, apenas para teu governo, espero que me faças justiça depois de ler estes alguns pronunciamentos, todos de improviso, muitos testemunhados pelo bom Amazonino, que uma vez me carregou nos braços por causa de um deles. Hoje, às 24 horas, estarei viajando a Belém, e, de lá, provavelmente irei rever Manaus e você, de quem continuo amigo ‘ex-corde’. Áureo Mello, poeta e ex-senador. Brasília, 17 de dezembro de 2001”.
Bom, tenho de dar a mão à palmatória. Li os três volumosos exemplares contendo discursos, emendas, apartes e pareceres do senador Áureo Mello e confesso que fiquei entusiasmado com sua defesa apaixonada da população amazônica. É uma pena que ele não tenha dado ao seu portentoso trabalho a publicidade merecida.
Nenhuma das minhas fontes usuais (quase 200 vagabundos) sabia da existência desse material – e olha que esses meus adoráveis vagabundos são quase todos jornalistas, cientistas políticos, professores, ex-parlamentares, intelectuais, líderes sindicais e ativistas das mais estranhas ideologias já formuladas pelo ser humano.
O fato de nós – eu e minhas fontes – não termos tido acesso a esse material em tempo hábil só mostra quanto os nossos parlamentares ainda precisam melhorar em termos de comunicação com o eleitorado.
De qualquer forma, em nenhum momento me referi ao afável senador como “lesinho de galeria”. Tendo entronizado ele na galeria de meus grandes ídolos, dificilmente lhe desrespeitaria maldosamente.
Se a crônica deu essa impressão, juro que não foi essa minha intenção.
O causo que conto a seguir está devidamente registrado nos anais (que palavra!) do Senado.
Junho de 1988. Senador-constituinte, eleito suplente de Fábio Lucena, Áureo Mello ocupa a tribuna do Congresso Nacional, durante o horário do Pequeno Expediente, para defender o casamento das eleições municipais com as eleições presidenciais.
O mandato dos vereadores eleitos em 82 já havia sido prorrogado por dois anos, para não coincidir com a eleição dos deputados estaduais constituintes em 86.
Agora, o senador amazonense queria prorrogar o mandato dos vereadores por mais um ano para coincidir com a eleição presidencial de 1989.
Ou seja, os vereadores que haviam sido eleitos para um mandato de quatro anos acabariam tendo sete.
No Pequeno Expediente, cada parlamentar inscrito tem dez minutos para vender seu peixe e dizer a que veio.
Áureo estava discursando na maior empolgação, quando o presidente da Constituinte, deputado federal Ulysses Guimarães, que abominava aquela ideia de “eleição casada”, avisou ao senador que seu tempo havia esgotado.
O senador ficou mordido:
– Senhor presidente, peço a V. Exª que desconte os tempos de interrupção havidos em meu discurso. Do contrário, não poderei ser ouvido.
Um alarido de feira livre tomou conta do plenário. Tentando se fazer ouvir acima do alarido, Áureo foi em frente.
– Ainda quero lembrar, principalmente a essas vozes verdadeiramente maviosas que estou ouvindo do lado da direita, ainda quero lembrar…
– Peço a atenção da Casa e do nobre orador, porque terminou o seu tempo! – rugiu Ulysses Guimarães.
– (…) que nós mesmos, que os senhores votaram, se não me engano, o artigo 34, que determina que as Assembleias Legislativas é que irão regulamentar e escolher os prefeitos municipais. Esta escolha terá de ser feita na Constituição Estadual – continuou Áureo, não dando a mínima para o deputado paulista.
– O tempo de V. Exª está esgotado! – rugiu, novamente, Ulysses Guimarães, batendo a sineta em cima da mesa.
– V. Exª é muito rigoroso comigo! – explodiu Áureo Mello, visivelmente constrangido com a nova interrupção. – Tenho notado que V. Exª mutila o meu tempo… V. Exª me permita concluir os meus considerandos?… Eu já sei que a minha emenda será provavelmente derrubada nesta Casa, mas quero dizer a V. Exª que pretendo aduzir os meus argumentos e que esses gritos correspondem à interrupção de meu discurso…
– Absolutamente, não estou perseguindo V. Exª! – rugiu ainda mais alto Ulysses Guimarães, visivelmente aborrecido. – O que eu não posso permitir é que, além de querer prorrogar o tempo do mandato dos vereadores, V. Exª ainda queira prorrogar também o seu tempo na tribuna…
As risadas dos parlamentares no plenário abafaram o final do discurso do insistente tribuno.
A emenda dele, claro, foi fulminada pelo Centrão.