Por Simão Pessoa
Escrita por Walther Negrão, a novela “O Primeiro Amor”, exibida às 19h pela Globo, em 1972, foi uma novela romântica e alegre que deixou saudades. Sua trilha sonora internacional virou item obrigatório nas “brincadeiras” no bairro da Cachoeirinha.
Walther Negrão conta que antes de começar a escrever a novela, reuniu-se com Homero Icaza Sanchez, então responsável pelo Departamento de Análise e Pesquisa da TV Globo. O objetivo era analisar, com base em uma pesquisa junto ao público, os elementos que haviam funcionado na novela anterior, “Minha Doce Namorada” (1971), um sucesso estrondoso escrito por Vicente Sesso. A partir das conclusões que resultaram dessa reunião, o autor criou personagens que pudessem gerar respostas equivalentes junto ao público telespectador.
Shazan e Xerife, uma dupla de “superanti-heróis”, como eram descritos nas chamadas da novela, davam o tom cômico e juvenil do parque de diversões de “O Primeiro Amor”. Já a gangue de motociclistas comandada por Rafa foi criada, ainda segundo Walther Negrão, para atrair o público masculino entre 15 e 25 anos, o qual Homero Icaza Sanchez apontava como uma parcela do público a ser conquistada.
De acordo com Walther Negrão, as ameaçadoras motocicletas que os rebeldes da gangue do Rafa pilotavam serviam como contraponto às bicicletas que apareciam na abertura da novela e na oficina de Shazan e Xerife. Estas representavam uma tentativa de conferir à trama um tom nostálgico e lúdico. As bicicletas voltaram a fazer sucesso e se tornaram mania entre o público, a ponto de uma fábrica lançar um modelo novo, que foi popularizado pela novela, dando início ao merchandising na teledramaturgia da TV Globo.
A primeira dupla escolhida por Walther Negrão para viver Shazan e Xerife havia sido Paulo José e Armando Bógus. O autor conta que mudou de idéia depois que o diretor Daniel Filho, supervisor de “O Primeiro Amor”, argumentou que os dois atores tinham características muito parecidas e sugeriu o nome de Flávio Migliaccio, com quem Paulo José já havia trabalhado no teatro e no cinema.
Além de excelente química diante das câmeras, Paulo José e Flávio Migliaccio reuniam outras qualidades que se complementavam e que ajudaram a definir o estilo de interpretação e a apresentação visual de Shazan e Xerife. Ambos exerciam outras atividades no teatro (Paulo dirigia e Flávio escrevia), o que facilitava o trabalho de direção. Eram também ótimos desenhistas (Flávio Migliaccio chegou a ser premiado como cartunista) e criaram seus próprios figurinos. O macacão tipo jardineira, usado por Shazan, tornou-se moda nas ruas.
O nome Shazan é uma referência ao Capitão Marvel, super-herói das histórias em quadrinhos. Capitão Marvel é o alter ego de Billy Batson, um jovem que trabalha como repórter de rádio e foi escolhido para ser um campeão da bondade pelo mago Shazam. Sempre que Billy fala o nome do mago, ele conjura um relâmpago mágico a fim de mudar de Billy Batson para Capitão Marvel e vice-versa.
Quando está na forma do herói ele fica adulto e com as habilidades de seis figuras legendárias, ganhando a sabedoria de Salomão, a força de Hércules, o vigor de Antharas, o poder de Zeus, a coragem de Aquiles e a velocidade de Mercúrio. Na novela, entretanto, a grafia do nome era diferente: “Shazan”. Já o nome “Xerife” foi tirado do apelido de infância de um primo de Walther Negrão.
O primeiro capítulo foi ao ar com muitas bicicletas e ruidosas motos circulando na pracinha principal da cidade fictícia de Nova Esperança, enquanto o professor Luciano (Sérgio Cardoso, morto em agosto e substituído por Leonardo Villar) chegava para morar na cidade e assumir a direção de um colégio.
Maria do Carmo (Tônia Carrero), sua ex-noiva, professora de inglês, tentava atrapalhar seus planos, pois queria ser a diretora. Luciano era o pai viúvo de quatro filhos – Júnior (Herivelto Martins Jr.), a rebelde Babi (Suzana Gonçalves), Zizi (Rosana Garcia) e Rui (Marco Nanini) – que precisava de uma governanta. Paula (Rosamaria Murtinho) ganhou o emprego e conquistou o coração do patrão e a torcida do público.
Quase no meio da novela chegou a psicóloga Giovana (Aracy Balabanian), que, de cabelos curtos e óculos redondos, ajudava o professor no trato com os alunos, principalmente com a turma do Rafa (Marcos Paulo Sesso). A novela estourou. Ao lado deles tinha a família do simpático casal “seu” Quinzinho (Sadi Cabral) e dona Júlia (Elza Gomes), pais de Hélio (Roberto Pirilo) e Shazan (Paulo José). Com eles morava Xerife (Flávio Migliaccio), que acabou formando dupla com Shazan e virando o seriado “Shazan, Xerife & Cia”.
Rapidamente, a roupa do Shazan (macacão de brim usado por agricultores norte-americanos, da marca Lee ou Levi’s) se transformou em sonho de consumo de quem podia importar as tralhas. Aqui na Zona Franca – como nos EUA! –, virou coisa de pobre.
Basta dizer que no dia de Natal de 1972, no cruzamento das ruas Borba e Parintins, na Cachoeirinha, se reuniram pelo menos uns 70 vagabundos ostentando os tais macacões, alguns ainda com as etiquetas de papelão nos bolsos traseiros. Todos haviam ganhado um macacão de presente do Papai Noel.
As minas mais avançadas meteram a tesoura nos panos e transformaram aquilo em “macaquinhos” curtíssimos, inventando o “short asa-delta”, que deixava a papada calipígia do lado de fora. Outras, mais inventivas, compraram meio metro de “jeans índigo blue” na loja Cearense e fizeram uma adaptação em que o macaquinho se transformava em saiote. Nem os gringos tinham tido tal ideia.
Na época estudante do Colégio Estadual, editor e ilustrador do jornalzinho A Patota (eu era o redator), Mário Adolfo logo percebeu o potencial da palhaçada:
– Isso aqui não é moda, porra, isso aqui é um bloco carnavalesco! – reagiu, irritado.
Sérgio Mubarac pegou a dica no ar:
– A TV Amazonas está promovendo um concurso de blocos carnavalescos para prestigiar a chegada do rei Momo no cais do Porto. Como nós já temos a fantasia, vamos participar do agito!
Dito e feito.
Em fevereiro de 1973, a moçada foi recepcionar a Kamélia e o rei Momo, que chegavam de barco e recebiam a chave da cidade do prefeito Frank Lima no cais do porto, com todo mundo trajando os macacões e montados em bicicletas próprias ou alugadas na Vila Mamão.
Mário Adolfo e Sidney Ribeiro (aka “Sidão”) haviam feito uma marchinha bem animada: “Lá vem, lá vem, lá vem, o Bloco do Macacão / Se não sair da frente você vai parar no chão / É macacão / É macaquinho / Se não sair da frente / Vai parar lá no cantinho / É macacão / É macaquinho / Se não sair da frente / Vai parar lá no cantinho / Você que está de fora vá buscar seu macacão / E sinta a alegria que vai no meu coração! / É macacão / É macaquinho / Se não sair da frente / Vai parar lá no cantinho / É macacão / É macaquinho / Se não sair da frente / Vai parar lá no cantinho”.
Como ia ser uma maratona puxada envolvendo sedentários “atletas de fim-de-semana” (da Cachoeirinha ao cais do porto deve dar uns cinco quilômetros), o Nilton Torres descolou uma picape para transportar as meninas. O resto da carniça foi na base do pedal.
Na ida para o cais do porto, pedalando os camelos, sofremos a primeira baixa: o comerciário Fernando Costa, o “Linguinha”, desabou no chão no cruzamento da Av. Tarumã com a Joaquim Nabuco. Ficou com a perna dura de cãibra e xingando barbaridade os autores daquela ideia de jerico.
A solução foi ele se transformar no “bendito fruto entre as mulheres” e seguir viagem na picape que levava as meninas.
A TV Amazonas, que cobria o evento pela primeira vez, nunca tinha visto aquilo: uns cem malucos montados em bikes, rodopiando no meio da Eduardo Ribeiro, trombando uns com os outros, ameaçando atropelar a plateia, e ajudando o carnaval de rua a pegar fogo.
O jornalista Philippe Daou ficou tão entusiasmado com a “asa-delta” das meninas que deu uma taça de 1º lugar para o Bloco do Macacão (desconfio que até então não havia concurso de blocos na época, só de escolas de samba, com o GRES Unidos da Selva ganhando todas) e mais uma merreca. Não pagava o aluguel dos “camelos”.
Na volta para o bairro, uma segunda baixa. O comerciário Fábio Costa, irmão do “Linguinha”, também sofreu uma cãibra da moléstia quando a turma passava em frente ao Bar do Armando, na Dez de Julho, desabou no meio da rua e foi um custo fazer o sujeito se levantar.
Ninguém havia se lembrado de levar benguê ou iodex para aliviar o esforço hercúleo dos músculos das pernas daqueles folgados “atletas de fim-de-semana”.
O cara urrando de dor, apertando a batata da perna e estrebuchando, e a turma ali parada, apenas olhando e esperando pela providência divina, sem mover uma palha.
Como o lema da turma era “um por todos, todos por um”, a gente só conseguiu chegar na Cachoeirinha por volta da meia-noite, depois que o Ricardão Pinheiro concordou em levar Fábio na garupa, e Sidão Ribeiro e Antídio Weil conseguiram entrar num acordo para rebocar a bicicleta entre os dois cada um segurando em um lado do guidão.
Nessa altura do campeonato, o sujeito da Vila Mamão que nos havia alugado as bicicletas já havia dado queixa na Polícia, suspeitando de um roubo desmoralizante, e os meganhas estavam caçando a moçada pelos quatro cantos da cidade.
Foi um novo pára pra acertar.
Em dezembro de 1975, o mesmo grupo de moças e rapazes da Cachoeirinha que havia criado o desencanado Bloco do Macacão voltou a se reunir no Top Bar, do “seo” Aristides, para colocar um novo bloco carnavalesco na rua, aproveitando que os desfiles passariam a ser oficiais, com premiação concedida pela prefeitura.
O primeiro nome pensado foi “Bloco dos Homens da Caverna”, sugestão de Sergio Mubarac e Mário Adolfo, inspirado nas aventuras dos Flintstones e do Brucutu.
Simone Pessoa lembrou que era preciso criar um bloco em que as alegorias fossem as mais coloridas possíveis e sugeriu o nome “Bloco dos Ciganos”, porque semana antes havia visto um acampamento de ciganos no cruzamento das ruas J. Carlos Antony e Maués. A sugestão foi aceita.
Na hora de inscrever o bloco oficialmente no desfile da TV Amazonas, Mário Adolfo acrescentou o “Andanças”, inspirado em uma música gravada pela Beth Carvalho.
Efetuada a inscrição oficial, Mário Adolfo tratou logo de escrever uma marcha-enredo, que foi aprovada por todos.
A letra era simples e pretensiosa, mas tinha uma melodia ganchuda, que grudava na memória feito chiclete:
“Vejam só que belo carnaval / Com baralho e bola de cristal / E não vai ser igual a qualquer ano / Pois este ano o carnaval é dos Ciganos / Vocês precisam saber / Como é que vive um cigano / Gostamos de astrologia / Mas nós somos amarrados na folia / Não queremos ler a sua mão / Nós só queremos alegrar seu coração / Já não existe romance astral / Nós só queremos amor no carnaval / Eu vejo um futuro tão banal / Quarta-feira acaba o carnaval / A nossa alegria é um engano / Não sou Mandrake, sou apenas um cigano”.
Participaram do primeiro desfile do novo bloco, entre outros, Simone, Silane e Simão Pessoa, Marília, Mary Jane e Mário Adolfo Aryce de Castro, Sôngila e Sidney Ribeiro, Edna e Ruizinho Assunção, Sara, Ruth, Sadok e Sici Pirangy, Arlindo, Sueli e Sérgio Mubarac, Kleber, Kepelé e Wilson Fernandes, Nilsinho e Mazinho Santos, Fábio, Fernando e Chico Costa, Roberto e Solange Amazonas, Antídio Weil, Epitacinho Almeida, Manuel Jorge, Carlos Barriga, Olíbio Trindade, Luiz Lobão, Cassianinho Anunciação, Ricardão Pinheiro, Carlito Bezerra, Ailton Santa Fé, Erivam Cabocão, Airton Caju, Ormando Barbosa, Jorginho Poeta, Gilmar Velhote, Paulo César Dó, Gilson Cabocão, Nilson Torres, Chico Porrada, Zeca Boy, Mestre Louro, Nazaré, Nize, Gracinha, Silvana, Hedy Lamar, Maria Mubarac, Rosa Almeida, Alcides Pajé, Luiz Luluca, Aloisio Didão, Zé Alfredo, Lucinha, Conceição Silva, Frank Cavalcante, Renato Doido, Nelito Bandeira, Nei Parada Dura, Helvécio, Lourival, Lúcio Preto, Petroba, Afonso Libório, Petrônio Aguiar, Wilson Jacinto, Petrônio Baixo, Giovani Bandeira, Cassiano Silva, Zé Leso, Tibica, Edmilson Ligeirinho, Wolney, Paulo Preto, Maria da Glória (aka “Gói”), Mocinha, Bia e Zenaide.
A maior dificuldade do bloco recém-criado foi conseguir uma bateria.
Diretor do colégio Ruy Araújo, o professor Djalma entrou em campo e conseguiu arregimentar os batuqueiros do bumbá Tira-Prosa, de Santa Luzia, comandados pelo famoso Mestre Zé, para participar do desfile.
O bloco desfilou pela primeira vez, no domingo gordo de 1976, com mais de 150 brincantes.
O carro abre-alas, que levava a rainha Silane Pessoa, era um jeep bugre, do Nilton Torres, imitando uma carroça sendo puxada por dois cavalos, com alegorias imitando cartas de baralho.
A “bateria cigana” era de uma pobreza franciscana: meia dúzia de surdos e dez ou doze tamborins, todos feitos de couro de gato.
A cada quinze minutos era necessário dar uma parada para afinar os instrumentos, esquentando o couro de gato em fogueiras de velhos jornais.
Naquela época, os blocos desfilavam dentro de um quadrilátero de corda semelhante ao utilizado ainda hoje no carnaval baiano, que era puxado pelos seguranças.
O cordão era necessário para evitar que o folião pipoca, aquele que pulava fora da frigideira, se misturasse com os brincantes do bloco.
Na hora do desfile, o bloco estava concentrado em frente do colégio Benjamin Constant, ensaiando pela enésima vez a marchinha composta por Mário Adolfo, Armandinho e Felisberto, quando Rui Anunciação, presidente do bloco, parou o ensaio para fazer suas recomendações finais:
– Olha, pessoal, o único bloco em que todos os brincantes estão fantasiados de acordo com o tema é o nosso. Isso quer dizer que os nossos seguranças vão ter um papel fundamental no desfile. Eles não podem deixar ninguém com outro tipo de fantasia invadir o cordão que separa os ciganos da plateia. Nós vamos arrebentar!
O ensaio recomeçou mais animado do que nunca e o bloco começou a se dirigir para a praça do Congresso, onde começava oficialmente o desfile.
De repente, um sujeito fantasiado de galinha pedrês invade o cordão e começa a correr por entre as alas, soprando freneticamente um apito.
Os seguranças (os irmãos Zezinho, Vico, Popó, Paulo César e Pepéu, todos halterofilistas) caíram em cima da desencanada “galinha” como se fossem jogadores de defesa de futebol americano encaixotando o quarterback adversário.
Depois de dez minutos de sufoco, a “galinha” conseguiu submergir daquele mar de corpos musculosos, já sem a máscara, com hematomas em um dos olhos, o supercílio partido e xingando todo mundo.
Era o Mestre Zé, comandante da batucada.
Puto da vida, ele não quis conversa:
– Vumbora embora, meu povo, que aqui só tem fio da égua. Não vamos mais tocar nessa fulerage nem com nojo…
Os ritmistas obedeceram.
Nova confusão, dessa vez de Ruizinho, Ceará, Antídio Weil, Sadok e outros diretores para convencer Mestre “Zé Galinha” de que tudo não passara de um lamentável equívoco.
Foi um sufoco, mas o mestre de bateria reconsiderou a decisão.
Naquele primeiro ano, o bloco Andanças de Ciganos desceu a Eduardo Ribeiro com uma “galinha” na frente da bateria, num prenúncio do que depois viraria marca registrada das escolas de samba do Rio de Janeiro.
No segundo desfile, na terça-feira gorda (havia tão poucas agremiações carnavalescas que os blocos desfilavam duas vezes), 200 ciganos incendiaram a Eduardo Ribeiro.
O bloco sagrou-se campeão, derrotando, entre outros, “Unidos da Comendador”, “Tufão na Folia”, “Os Cartolas do Negão”, “Unidos da Cophasa”, “Beduínos no Deserto”, “Diferentes na Folia”, “Kung Fu”, “Bombas do Brandão”, “Embalo’s”, “Os Corsários”, “Riquezas do Amazonas”, “Família Lisbonense”, “Bloco do Carequinha”, “Foliões da Alegria” e “Martins e seus Batutas”.
Mesmo com o surgimento de novos blocos de embalo – “Cassino Tex”, “Fantasma do Arco-Íris”, “Discolândia na Folia”, “Morro Falando Alto”, “Cabana do Preto Velho”, “Estrela da Compensa”, “Can-can do Beasa”, “Árabes a 40 Graus”, “Bloco dos Piratas”, “Cordão das Lavadeiras”, “Lira de Prata”, “Jovens Livres na Folia”, “Unidos da Raiz”, “Mocidade Dependente do Beco Ipixuna”, “Sem Compromisso” e “Balaku-Blaku”, entre outros –, o Andanças de Ciganos continuou sagrando-se campeão, ano após ano, até 1980.
Foi o único bloco de embalo, no carnaval amazonense, a conquistar cinco títulos consecutivos. Nessa altura do campeonato, ele já desfilava com quase 500 brincantes.
A história completa da saga dos ciganos está documentada no livro “Meu Bloco na Rua”, de Mário Adolfo, à venda nas boas livrarias do ramo. Corram atrás.
Lembrou minha traumática passagem pelo bloco do Maranhão