Por Simão Pessoa
Considerado a joia da coroa em sua época, o Cine Ypiranga, na Cachoeirinha, era o maior e o mais bonito cinema de Manaus. Basta dizer que nas partes do fundo ficava a residência do empresário Adriano Bernardino, um rotundo filho de portugueses que havia erigido seu império cinematográfico trabalhando de sol a sol feito um burro de carga.
Sempre bem-humorado, de voz pausada e elegante, Adriano Bernardino supervisionava pessoalmente as exibições nas sessões de matinê, aos domingos, no Cine Ypiranga, e gostava de explicar didaticamente para a molecada o enredo dos filmes em cartaz.
O empresário costumava ficar sentado em um dos três gigantescos sofás de couro existentes no salão de entrada do cinema, onde ficavam as bomboniéres e os cartazes dos próximos filmes a serem exibidos no cinema.
Na parte externa do cinema ficavam as quatro bilheterias (do lado esquerdo), uma lanchonete (do lado direito) e as duas portas de saída, uma de cada lado.
Um imenso painel retratando o “Grito do Ipiranga”, de Pedro Américo, separava o salão de entrada do salão de exibição. Dois balcões de madeira envernizada, um de cada lado, delimitavam o início das fileiras de cadeiras.
O gigantesco salão era dividido por um grande corredor, que começava entre os balcões de madeira e terminava no palco. Do lado esquerdo do palco, ficavam os sanitários masculinos. Do lado direito, os femininos.
Havia dois outros corredores nas laterais, que davam diretamente nos sanitários. Dois imensos corredores horizontais cortavam o corredor principal, formando seis conjuntos de cadeiras.
Cada conjunto possuía 20 filas de cadeiras de madeira, marca Cimo, de assento dobrável, sendo que cada fila dispunha de 20 cadeiras. No total, 1.200 lugares. Uma festa!
A gente sabia que a sessão iria começar quando os funcionários do cinema começavam a fechar apressadamente as três gigantescas portas laterais existentes em cada lado do salão.
As luzes internas se apagavam. As laterais do palco eram iluminadas por uma profusão de cores em ordem sequencial (vermelho, roxo, amarelo, azul, verde, laranja, etc), enquanto as cortinas se abriam lentamente.
Os gritos e assovios da molecada eram ensurdecedores. A mesma zoeira acontecia quando a fita quebrava e era necessário fazer a substituição dos rolos. Nesse caso, as luzes internas eram acesas para coibir a esculhambação generalizada.
Sim, porque dessa vez os gritos e assovios eram acompanhados de batidas frenéticas do assento das cadeiras nos encostos, o que deixava Adriano Bernardino e os “lanterninhas” à beira de um ataque de nervos.
De vez em quando, um moleque mais abusado flagrado durante a prática delituosa era expulso do recinto.
Nos cinemas do centro, rolava a chamada sessão contínua, com exibições do mesmo filme a partir do meio-dia e intervalo de duas horas entre o início de cada sessão. Nos cinemas dos bairros, a história era outra.
Havia a sessão matinal, das 9h ao meio-dia, com dois filmes em cartaz. Por causa do horário, o ingresso sofria uma redução de 50%. Havia a sessão matinê, das 13h às 15h45, também com dois filmes em cartaz, a sessão vespertina, das 16h às 18h, com um filme em cartaz, e a sessão noturna, das 20h às 23h, com dois filmes em cartaz.
Ou seja, um fanático pela sétima arte poderia assistir até seis filmes diferentes em um único dia (o filme da sessão vespertina, em geral, era um dos dois que seria exibido na sessão noturna).
Os seriados eram uma atração das sessões domingueiras, e seu público era infanto-juvenil em idade física ou mental. Compunham-se de doze ou quinze episódios de cerca de dezoito minutos (dois rolos) cada, exibidos semanalmente nas matinês como complemento a um filme do mesmo estúdio, quase sempre um faroeste de sessenta ou setenta minutos estrelado por um cowboy – alguém assim como Roy Rogers, Allan “Rocky” Lane ou Durango Kid.
O total perfazia a hora e meia de uma sessão normal. A meia hora restante para a sessão seguinte era o que levava para se recolher os papéis de bala, restos de pirulitos, chicletes no fundo do assento e outras nojeiras deixadas pelos garotos.
Depois de uma boa briga ou de um tiroteio em que as balas miavam, cada episódio do seriado terminava com o herói ou heroína pendurado no precipício (daí o nome pelo qual os seriados eram conhecidos em inglês: cliffhangers), amarrado dentro de um paiol que explodia ou desacordado num carro que voava pela ribanceira. A ação se interrompia e um aviso dizia: “Voltem na próxima semana para ver a continuação deste episódio!”.
Na dita volta, repetia-se o trecho decisivo do episódio anterior, com a diferença de que, dessa vez, via-se o herói desamarrando as cordas ou acordando a tempo de fugir do paiol ou de saltar do carro antes que ele se esbodegasse.
Tudo muito previsível até para os infantes daquele tempo, mas também muito bem-feito tecnicamente – o que pode ser constatado hoje em DVD por qualquer sobrevivente daquelas jornadas que tenha se tornado um cinéfilo respeitável.
Não sei porque cargas d’água, mas no período em que frequentei o cinema semanalmente, de 1964 a 1972, a maioria dos filmes exibidos era italiano ou hispânico. Filmes românticos: “Dio Come ti Amo”, “A Noiva”, “Amor à Italiana”, “Cuando Calienta el Sol” e “A Bela da Tarde”. Filmes de ação: “Hércules contra os Mongóis”, “Maciste e a Rainha de Sabbá”, “Rômulo e Remo” (com Steve Reeves e Gordon Scott”), “Ursus na Terra do Fogo”, “As façanhas de Hércules”, “Maciste nas minas do Rei Salomão” e “Hércules, Sansão, Maciste e Ursus”. Filmes de cowboys: “Era uma vez no Oeste”, “Django” (com Franco Nero), “Ringo não perdoa… mata” (com Giuliano Gemma), “Por um punhado de dólares”, “Três homens em conflito”, “Por uns dólares a mais”, “O bom, o mau e o feio”, “Django atira primeiro” e “Viva Django”. Filmes de humor: “Rita no Oeste” (com Rita Pavone e Terence Hill), “Chamam-me Trinity”, “Trinity ainda é meu nome” e “Dá-lhe duro Trinity” (os três últimos com Terence Hill e Bud Spencer).
Nos dias de sábado, ocorria um vesperal no estilo show de calouros, batizado de “Confusão na Taba”, que acontecia no palco do cinema. Comandado pelos radialistas Geraldo Viana e Nicolau Libório, havia apresentações de bandas tocando ao vivo (Os Aristocratas, 5ª Dimensão, Good Boys, 4ª Projeção, etc), concurso de dublagem (Bridora, irmã do Wilson Fernandes, Careca e Ratinho eram imbatíveis), shows de ilusionismo, concurso de piadas, etc. Uma espécie de Programa Silvio Santos de baixo orçamento, mas cheio de surpresas.
De repente, Geraldo Viana interrompia a apresentação e avisava:
– Existe uma nota de mil cruzeiros colada embaixo de um assento. Verifique se não é no seu…
Era hilário ver aqueles 1.200 moleques virando para cima os assentos das cadeiras na procura desesperada pela bendita cédula.
Para meninos e meninas com os hormônios à flor da pele, as sessões de matinê eram uma espécie de oásis salvador para a famigerada prática do “acocho”.
No figurino de impávidos bucaneiros, nós, os moleques, em grupos de três a cinco, ficávamos circulando pelos corredores antes de a sessão começar, com o olhar 43 vasculhando as fêmeas do salão, todas sentadinhas bem-comportadas em seus lugares.
Com um gesto quase imperceptível, que podia ir de uma simples piscadela a uma levada do indicador à boca e depois em direção à fêmea, solicitávamos a aquiescência da donzela para sentar ao seu lado.
Quando as luzes se apagavam, os piratas iniciavam a abordagem. O normal era rolar beijos de língua e discretas pegadinhas nos seios, mas havia as mais liberais (poucas, evidentemente!) que consentiam em serem apalpadas por baixo das saias. Uma loucura!
Depois da matinê, nos reuníamos em bloco na frente do cinema para trocar gibis. Não havia nenhum interesse pecuniário nas trocas. Era comum você trocar um gibi novinho em folha por um outro já bem detonado, apenas porque você ainda não havia lido o mesmo.
Claro que os almanaques valiam no mínimo dois gibis e que ninguém era maluco de trocar um Pato Donald por um Tarzan. Os gibis trocados tinham que ser da mesma categoria, mas não necessariamente do mesmo gênero.
Você podia trocar um Kit Carson por um Fantasma ou um Buck Jones por um Águia Negra, mas não podia querer trocar um Sobrinhos do Capitão por um Mandrake, que isso era considerada ofensa pessoal. Sobrinhos do Capitão só podiam ser trocados por Brucutu, Recruta Zero, Pimentinha e outros gibis infantis.
Quando explodiu a febre dos monóculos, uma espécie de microluneta em formato de chaveiro, o lixão do Cine Ypiranga se transformou em uma mina de ouro.
Considerado pela molecada da época uma das maiores invenções da humanidade depois do refresco em pó e do suporte atlético, o monóculo possuía uma das extremidades quadradas, que funcionava como uma tela de cinema.
Nessa extremidade era colocado o negativo de um filme e ele, quando observado pela outra extremidade do objeto, que era arredondada e possuía uma lente de aumento especial, ganhava a luminosidade e as cores de um cartão postal. O monóculo era uma espécie de sala de cinema em miniatura.
Sabedores de que, volta e meia, os operadores da sala de projeção cortavam pedaços de filmes e jogavam fora, brigadas de moleques se revezavam diariamente garimpando as caixas de lixo do Cine Ypiranga, contribuindo enormemente para aumentar a sujeira das ruas no entorno do cinema.
Em pouco tempo, uma próspera atividade de escambo estava em marcha. “Troco King Kong pelo Ringo!”, gritava um. “Troco Maciste e Ursus pelo Sansão”, berrava outro. “Troco James Bond por Mabuse”, disparava um terceiro.
Quando, em vez dos mocinhos tradicionais, começaram a surgir nas mãos dos moleques diversos fotogramas das verdadeiras divas de cinema, a coisa pegou fogo.
Aliás, foi por meio dos inofensivos monóculos que nós fomos precocemente apresentados aos decotes de Gina Lolobrigida, Ava Gardner, Marilyn Monroe, Rita Hayworth e Brigite Bardot, privilégio então reservado apenas aos maiores de 14 anos.
Para entrar nas sessões proibidas para menores de 14 anos valia tudo, principalmente falsificar a idade na caderneta escolar, apagando a data original com borracha azul e reescrevendo a nova data com caneta Bic escrita grossa.
Dependendo da qualidade da falsificação – as muito grosseiras, por exemplo, eram passíveis de fuzilamento em praça pública! –, você poderia ter problemas tanto na própria escola quanto com os despóticos e arrogantes vigilantes do Juizado de Menores, que tinha um prazer quase sádico em barrar adolescentes nas sessões noturnas.
O campo de prova dos falsificadores estava nas sessões das 16h, os famosos vesperais, que eram, digamos assim, para um público um pouco mais adulto que a molecada das matinês.
Normalmente era a sessão preferencial dos jovens casais com mais de 16 anos. A quantidade de mulheres desacompanhadas era reduzida drasticamente.
Mas ainda assim a gente resolvia se aventurar nessa mata fechada, principalmente quando eram exibidos filmes da Gigliola Cinquetti, um poderoso atrativo de garotas desinibidas em busca de algum príncipe encantado disponível.
Lembro que em um desses vesperais, Cassianinho Anunciação apostou comigo e Sidão Ribeiro que iria bater o recorde de “mergulho em piscina seca”, uma das brincadeiras mais cafajestes da época.
O famigerado “mergulho em piscina seca” exigia uma coragem quase suicida, já que consistia em dar um beijo de língua de mais de dois minutos em uma namoradinha ocasional escolhida aleatoriamente por um amigo do “mergulhador”.
Em média, as meninas consistiam em ter suas línguas chupadas por parceiros desconhecidos por, no máximo, um minuto. Mais do que isso, só se o sujeito já fosse namorado oficial.
Escolhemos uma garota de cabelos cor de fogo, que estava sentada sozinha e detonando um mentex atrás do outro. Podia ser um indicativo de que ela tinha mau hálito, o que tornaria a prova mais interessante.
Boa pinta e bom de papo, Cassianinho nem se avexou. Antes mesmo de as luzes se apagarem, ele já estava conversando animadamente com a menina.
Eu e Sidão nos sentamos exatamente atrás do casal, para evitar qualquer tipo de marmelada durante a prova.
Era comum, por exemplo, o sujeito sentado ao lado direito da menina abraçá-la por trás do pescoço e aí, no escurinho do cinema, inclinar a cabeça em sua direção, ficar cochichando abobrinhas no ouvido esquerdo da vagabunda e depois jurar que estava dando um beijo de língua.
Os primeiros dez minutos do filme (salvo engano, “O Professor Aloprado”, de Jerry Lewis) transcorreram na maior calmaria.
De repente, Cassianinho, que já havia colocado o braço direito sobre os ombros da vítima, deu um toque discreto no encosto da cadeira da menina. Era o sinal de que a tentativa de quebra do recorde iria começar.
Sidão consultou o relógio de pulso e deu dois toques discretos no encosto da cadeira do Cassianinho, autorizando o início da prova.
Ele imobilizou a cabeça da garota com uma espécie de gravata e caiu de boca. Eu me aproximei do casal para conferir se estava rolando mesmo um beijo de língua. Estava.
Cassianinho só desgrudou da menina depois de transcorridos exatos 3 minutos e 26 segundos. Estava estabelecido um novo recorde da prova.
Ele ainda tentaria melhorar o recorde mais cinco vezes, sem sucesso, porque na passagem dos 3 minutos a garota de cabelos cor de fogo arregalava os olhos como se estivesse se afogando e o beijo era prudentemente interrompido.
Depois da façanha, Cassianinho ficou conhecido na nossa turma como “mergulhão, primeiro e único”, título conferido a ele pelo próprio Sidão e jamais contestado pelos outros moleques.
Bons tempos, zifio, bons tempos!