Por Simão Pessoa
Março de 1971. Fundado no bairro do Aleixo, o famoso Vila Rica era formado majoritariamente por jogadores do bairro de São Francisco, apesar de contar com alguns craques do próprio Aleixo, entre os quais o zagueiro Dalbert Alencar, irmão do Aldenir Alencar (aka “Pixeba”), meu parceiro de classe na ETFA e na Utam, e o ponta-direita Zezé, um dos filhos do seu Maurício, dono e técnico do clube.
Anos mais tarde, Dalbert jogaria profissionalmente pelo Nacional e Zezé jogaria comigo na seleção da Sharp do Brasil e no invocado Setembro Negro.
Naquele mês, durante um jogo entre Vila Rica e Ferroviário, uma substituição malfeita no intervalo do jogo colocou os atletas de São Francisco em pé de guerra contra os atletas do Aleixo e deu-se o inevitável: a galera de São Francisco abandonou o clube, falando cobras e lagartos dos ex-companheiros.
Capitaneados por Giovane “Gigio” Bandeira, Carlinhos, Aluísio, Chico, Gilberto e Getúlio, eles decidiram criar um novo time no bairro.
O primeiro problema a ser resolvido era encontrar um campo de treinamento já que todos os campos existentes em São Francisco pertenciam a clubes tradicionais (Rio Branco, São Francisco, Torino, etc.), cujos dirigentes não viam com bons olhos o surgimento de um novo time na área.
Os dissidentes do Vila Rica escolheram um terreno baldio na região do Cafundó, nome do principal fundo de vale do bairro e caracterizado pela quantidade inenarrável de olhos d’água e cacimbas existentes no local.
O terreno baldio, na verdade, era uma parte da floresta virgem ainda existente nos fundos do terreno pertencente ao escritório distrital da Empresa de Correios e Telégrafos (ECT), em cuja parte frontal ficava o campo do Vila Rica, margeando a Estrada do Aleixo.
Os dissidentes levaram quase dois meses para capinar o terreno com terçado, enxada e ancinho, período em que tiveram de dar cabo de mais de 20 cobras de todos os tipos que habitavam a antiga vegetação.
O campo ficou conhecido pejorativamente como “cobral”, que depois virou o nome do próprio time.
![](https://simaopessoa.com.br/wp-content/uploads/2019/04/3-Giovani-3.jpg)
Giovane Gigio no antigo campo do Rio Branco
Em agosto de 1972, dezoito meses depois da rebelião já citada, o Cobral enviou um ofício ao seu Maurício convidando o Vila Rica para o jogo de estreia do novo time.
Pelo que escreveram no ofício, o Vila Rica seria uma espécie de padrinho do Cobral, já que a maior parte dos jogadores havia vestido a camisa do Vila Rica nos bons tempos.
O jogo foi marcado para o campo do Nacional, na Rua São Luiz, com todas as despesas (aluguel de campo e pagamento de juiz, bandeirinhas e mesários) correndo por conta do Cobral.
Na partida preliminar, o juvenil do Cobral derrotou o do Vila Rica por 6 a 2.
Na partida principal, os abusados jogadores do Cobral não respeitaram a condição de “padrinho” do Vila Rica e aplicaram uma sonora goleada de 10 a 1.
Foi a gota d’água.
Irritado com o vexame, seu Maurício amontoou no chão todos os calções, meiões e camisas do time, jogou gasolina em cima, tocou fogo e acabou com o Vila Rica na mesma hora.
Em compensação, o Cobral se transformou no grande bicho-papão do bairro, transformando todos os outros times do lugar (Rio Branco, São Francisco, Torino, Ferroviário, São Francisco Ocidental, etc.) em sacos de pancada.
Apesar de jogar de meia-armador, meu primo Giovane “Gigio” Bandeira acabou se transformando no grande artilheiro do time.
Ele tinha uma grande explosão, chutava bem, driblava com elegância (o que lhe valeu o apelido de “Falcão de São Francisco”), possuía grande impulsão e era um habilidoso cabeceador.
Além de tudo, o sacana era um exímio cobrador de faltas, tanto batendo de curva para apenas tirar da barreira e colocar no ninho da coruja, como batendo de peito de pé, com violência, sem sequer dar tempo de o goleiro se mexer para ir na bola.
Era difícil a partida em que ele não fazia, no mínimo, dois gols.
O centroavante do time, o fantástico Gilberto, também era extremamente habilidoso, corria feito um velocista jamaicano com o fôlego de um fundista queniano e tinha faro para fazer gol.
Ele se entendia às mil maravilhas com o Gigio.
Em algumas partidas, chegou a marcar mais de cinco gols, tal a disposição que tinha em campo para enfrentar zagueiros violentos e desmoralizar goleiros metidos a endiabrados.
Alguns anos depois, Gilberto virou jogador profissional, tendo atuado como titular do Rio Negro durante várias temporadas.
![](https://simaopessoa.com.br/wp-content/uploads/2019/04/3-gigio-2.jpg)
Simão Pessoa e Giovane Gigio
Em 1976, durante uma partida pelo Peladão, o Murrinhas do Egito enfrentou o temido Cobral no campo do Holanda, ali na Morada do Sol.
Antes de a partida começar, Luiz Lobão reuniu a nossa zaga e deu um toque:
– O melhor jogador deles é aquele cara de cabelo encaracolado com a camisa dez, o Giovane, que é primo do Simão!
– Meu primo, um caralho! – reagi. – Aquilo lá é alemão. Se vir fazer graça aqui, vai levar porrada!
Dito e feito.
Eu e Petrônio Aguiar demos tantas patadas, cotoveladas e voadoras criminosas no Giovane, que ele ficou com medo de ser morto dentro das quatro linhas, aí se conformou e foi jogar na linha intermediária do próprio campo do Cobral, para armar os contra-ataques do time.
Único boi-de-piranha a se aventurar na nossa área e totalmente indefeso diante de nossas patadas, cotoveladas e voadoras sanguinárias, o centroavante Gilberto foi à loucura:
– Porra, Giovane, deixa de ser covarde! Vem enfrentar teu primo! Eu estou aqui sozinho, levando porrada desses dois carniceiros! Vem me ajudar, caralho!
Gigio se fingia de morto.
O jogo terminou zero a zero.
Foi a única vez em que enfrentei o “Falcão de São Francisco” em uma partida de futebol.
No frigir dos ovos, eu e Petrônio Aguiar reduzimos o falcão peregrino a galinho garnizé.
Não foi pouca porcaria.