Caxuxa Blues

O sufoco da dançarina de Cancan

João Orelhinha e Hilário Prado, na Banda da Caxuxa
Postado por Simão Pessoa

Por Simão Pessoa

Fevereiro de 1986. O bloco de sujos “Aluga-se Moças” havia acabado de desfilar na Avenida Djalma Batista e está retornando pra Cachoeirinha através da Rua Pará, no Vieiralves. São quase 22h da noite do domingo gordo de carnaval. Cerca de dois mil foliões fantasiados de mulheres participaram da odisseia. O mais animado de todos é o estudante Hilário Prado, 20 anos, boa pinta, físico de marombeiro e espada matador registrado em cartório, que, como o resto da gangue, também está morto de bêbado.

Foi o primeiro desfile de Hilário e ele se fantasiou de uma sensual dançarina de Cancan: peruca vermelha estilo Channel, vestido de cetim roxo com franjas de renda negra, cintas-ligas no modelo meias de arrastão, mitenes (luvas negras que cobrem o braço até um pouco acima do cotovelo), penacho e gargantilha. Como toque final, uma calcinha com bumbum falso, que continha um enchimento de espuma de nylon. A maquiagem à base de blush, rímel, cílios postiços e batom roxo ajudou a transformar Hilário em uma tremenda gata de classe mundial.

Nas proximidades da Praça Chile, em frente ao cemitério São João Batista, Hilário começa a diminuir o ritmo da caminhada e vai ficando cada vez mais distante do grosso do bloco, que segue em frente na mesma pisada.

Uns dez minutos depois, Hilário está caminhando praticamente sozinho no início da Rua Belém enquanto o trio elétrico do bloco “Aluga-se Moças”, com seus milhares de foliões, já está entrando na Avenida Castelo Branco.

Em frente ao Posto Saci, quase na entrada do Beco Celestino, um Opala quatro portas para ao lado do folião bêbado e solitário.

De repente, um braço de crioulo com a grossura do pescoço do Mike Tyson sai da janela do banco do carona, dá um tapão no bumbum da dançarina de Cancan e uma voz cavernosa quebra o silêncio da noite:

– Te prepara pra ser currada, vagabunda! Nós vamos arrombar esse teu cuzão!

Ouvindo aquilo, Hilário ficou bom do porre na mesma hora.

As portas do Opala já estavam sendo abertas para seus dez ocupantes descerem, quando ele meteu o pé na carreira. Saiu azulado em direção à Avenida Castelo Branco.

O Opala seguiu atrás, com os dez crioulões cada vez mais excitados. Aparentemente, eles estavam drogados e completamente alucinados para colocar as mãos (e outras coisas) na dançarina de bumbum empinadinho, após uma caçada infrutífera pelos bairros da cidade.

No cruzamento da Rua Belém com a Avenida Castelo Branco o sinal do semáforo estava fechado e o Opala ficou detido providencialmente atrás de um ônibus de linha.

Sem parar de correr, Hilário aproveitou a oportunidade para atravessar a Rua Belém em direção ao Colégio Estadual Márcio Nery, desceu por um beco paralelo ao muro do colégio e de lá seguiu em direção à Feira de São Francisco, margeando o igarapé da Cachoeirinha. Seu coração estava para sair pela boca.

Nesse meio tempo, Hilário foi realizando um verdadeiro strip-tease: jogou fora a peruca, o vestido de cetim, as cintas-ligas, a calcinha, as luvas, o penacho e a gargantilha. Quando chegou à Feira de São Francisco estava só de cueca de copinho e tênis All Star Converse de cano alto.

Subiu a Rua General Carneiro no maior pique, pegou a Rua Carvalho Leal à esquerda e só parou de correr quando entrou em sua casa. Estava para colocar os bofes pra fora, mas felizmente havia preservado todas as pregas.

Hilário nunca mais quis se fantasiar de travesti e andar sozinho pelas ruas desertas da Cachoeirinha durante uma noite de carnaval.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

Leave a Comment