Por Linaldo Guedes
O “maluco beleza” Raul Seixas não é apenas uma das maiores referências da música brasileira e o maior nome do rock nacional, tendo antecipado a fusão do rock´n´roll com os ritmos nordestinos dezenas de anos antes do surgimento do Movimento Mangue Beat.
Também é autor de hits clássicos, como “Ouro de tolo”, de parcerias memoráveis e polêmicas, como a com Paulo Coelho, e compositor de diversos sucessos que ainda hoje fazem a cabeça dos apaixonados pela música brega.
O livro “Raul Seixas: Não diga que a canção está perdida” (Todavia, 2019), de Jotabê Medeiros, narra toda essa trajetória do criador da “Sociedade Alternativa”. Em suas mais de 400 páginas, a obra mostra, também, as relações de Raul Seixas com jornalistas e artistas paraibanos.
Isso mesmo! O livro de Jotabê Medeiros mostra como Raul Seixas teve relações importantes em sua trajetória artística com nomes como Jackson do Pandeiro e Zé Ramalho, além de ter gravado Zé do Norte, citado Genival Lacerda em uma canção e travado uma polêmica com o jornalista José Nêumanne Pinto.
Com uma base filosófica muito forte, base essa que seria utilizada em suas letras visionárias e reflexivas, Raul Seixas, ao revelar suas influências, já começa citando um paraibano, o poeta Augusto dos Anjos: “Minha infância foi formada por, vamos dizer, um pessimismo incrível, de Augusto dos Anjos, de Kafka e Schopenhauer”, disse em entrevista ao Pasquim, reproduzida por Jotabê em sua obra,
Antes de se tornar o maior nome do rock nacional de todos os tempos, Raul Seixas trabalhou como produtor em algumas gravadoras e na época, mesmo tendo apostado em grandes nomes populares, como Diana, Odair José, Jerry Adriani e outros, não deixou de pensar no conceito que pretendia usar em sua música.
Neste “conceito”, um nome era fundamental para Raul: o do paraibano Jackson do Pandeiro, um de seus ídolos. Ao saber que Jackson do Pandeiro estava sem gravadora e dava “mole” nos estúdios do Rio, Raul foi até ele e o convidou, e ao seu conjunto Borborema para participar da gravação de “Let me sing, let me sing”, música defendida pelo cantor baiano no VII Festival Internacional da Canção, em 1972.
Segundo lembra Jotabê Medeiros, doze anos antes dessa gravação, Jackson do Pandeiro gravara a síntese daquela que parecia ser a ambição conceitual de Raul: “Chiclete com Banana” (Gordurinha e Almira Castilho). “Na canção, além do debate de assimilação cultural, já aparecem termos como ‘samba rock’ e ‘bebop no meu samba’, o tipo de hibidrismo que interessava a Raul”, explica, acrescentando um breve perfil do paraibano:
– Jackson do Pandeiro, um herói franzino, gaiato, de bigodinho de Adoniram, camarada que o povo às vezes chamava de Zé Jack, tocava habitualmente como instrumentista de estúdio para segurar a barra daqueles anos difíceis. (…) Ali nos estúdios, quem o conhecia sabia do privilégio que era ter Jackson do Pandeiro como ritmista numa gravação. Um dia quando o cantor Benito Di Paula chegou ao estúdio para gravar, deu de cara com Jackson, escalado para acompanhá-lo. Como não tinha conhecimento daquilo, ficou emocionado, trêmulo, não sabia o que fazer defronte ao ídolo, chegando às lágrimas ao abraçá-lo. Mas Raulzito sabia perfeitamente em frente de quem estava, o fabuloso compositor de 426 clássicos da música brasileira, o lendário Rei do Ritmo. Ele voltaria a convocar o paraibano para outras aventuras musicais, como na gravação de “O Homem”, do disco “Há 10 mil anos atrás” (Philips/Universal Music, 1976)
Em meados dos Anos 1970, Raul Seixas travou uma polêmica na imprensa com o jornalista paraibano José Nêumanne Pinto, natural de Uiraúna, mas radicado em São Paulo. Nêumanne era crítico de música da Folha de S. Paulo e fez um artigo cheio de críticas ao cantor baiano.
Disse o jornalista no artigo: “Afinal de contas, é preferível o Raulzito autor das baladas de Wanderley Cardoso, Jerry Adriani e Renato e seus Blue Caps ao Raul Seixas metido a filósofo encarapuçado de gênio, tendo como credenciais o orgulho da baianidade e da bagagem de uma pretensão inexplicável para um rapaz da sua idade e com seus curtos conhecimentos culturais”.
E acrescentou: “Você precisa ouvir umas verdades, Raulzito. Não pense que você é um gênio. No Brasil existem muitos bons compositores e letristas, mas certamente você não está entre eles só porque pertence a mesma gravadora deles. Eu sei que há mais gente culpada pelo que você passou a ser do dia para a noite, Raulzito. Existe toda uma mentalidade estratificada em busca de deuses frágeis como você”.
Jotabê Medeiros detalha que no dia seguinte à publicação do artigo, Raul resolveu responder. A carta-resposta seria publicada três dias depois, em 10 de junho de 1973, num texto ponderado.
Disse Raul: “Em momento algum eu neguei as músicas que fiz para Jerry Adriani e Renato. Pelo contrário, sem aquele tipo de vivência talvez não tivesse hoje a maleabilidade musical que me é tão necessária para falar com as mais variadas espécies de público. Bob Dylan é exatamente o que você diz, um grande sujeito. Deflagrou um estilo, assim como Edith Piaf, Nelson Gonçalves, Beatles, Jesus Cristo, Aristóteles. Mas as coisas se sucedem, e só porque a Lua cismou de passear pelo céu ninguém vai dizer: Olha, está imitando o Sol! E com menos brilho”.
Com Zé Ramalho, a relação de Raul Seixas foi longa e cheia de afetos. Na gravação da música “Eu sou eu, Nicuri é o diabo” os músicos eram arregimentados na hora, e o produtor do fonograma na gravadora pegou um jovem músico de 23 anos, paraibano de Brejo do Cruz, que tinha vindo participar de uma gravação, para tocar violão base acompanhando Raul. “Ninguém ainda conhecia o jovem como Zé Ramalho. Mas Raul foi com a cara dele. Elogiou todos os músicos que participaram da gravação, mas deteve-se um tempo mais conversando com Zé. Elogiou a base que fizera e lhe deu um exemplar da revista Billboard de presente”, observa Jotabê.
Tempos depois, em 1984, após uma briga feia com Kika Seixas, sua esposa na época, em que foi expulso de casa, Raul baixou no apartamento de Zé Ramalho, no Leblon, para pedir abrigo. Segundo Jotabê, Raul chegou na sexta-feira à noite com uma garrafa de champanhe e duas garotas de programa e ficou três noites, só saindo na segunda.
– Nesses dias, o que mais fizeram Raul e Zé foi tocar violão e cantar juntos. Raul chegara praticamente sem nada, sem bagagem. Numa das manhãs, o baiano vestiu uma das calças de Zé Ramalho e desceu do prédio para comprar medicamentos na Farmácia Piauí, que ficava em frente ao edifício onde Zé morava. O balconista da farmácia, vendo Raul Seixas entrar às sete horas da manhã com uma calça que parecia lona de circo armada (Zé Ramalho tem 1,83 metro e Raul tinha 1,70) e pedir um vidro de Reactivan, as sandálias saindo do pé (Zé calçava 41 e Raul 37) ficou entre divertido e estupefato. Começaram, Raul e Zé, a fazer planos de gravar um disco juntos nos próximos anos, coisa que nunca ocorreu – narrou Jotabê.
Esse disco em parceria de fato nunca veio, mas no futuro Zé viria a realizar o sonho de homenagear Raul Seixas. Em 2001, lançou “Zé Ramalho canta Raul Seixas” (Ariola), trabalho que lhe rendeu discos de ouro. “Posso afirmar que tive alguma influência de Raul Seixas em algumas das minhas músicas. Não especificamente em ‘Avohai’, nem em nenhuma música de meu primeiro disco, mas ele aparece em algumas canções dos álbuns dos anos 1990”, afirmou Zé.
Outro paraibano acaba integrando o repertório de Raul Seixas. Isso acontece com a música “Lua Bonita”, inserida no disco “A pedra do Gênesis”, composição do paraibano de Cajazeiras, Zé do Norte, em parceria com Zé Martins. A música foi gravada originalmente por Zé do Norte para a trilha sonora do filme “O Cangaceiro”, de Lima Barreto, premiado no Festival de Cannes nos anos 1950.
– Poucos contribuíram tão decisivamente para a difusão da cultura nordestina quanto este cantor, Zé do Norte, que nasceu em Cajazeiras, em 18 de dezembro de 1908 e, semianalfabeto, migrou para o Rio de Janeiro em 1926, ao completar dezoito anos. Também na trilha de “O Cangaceiro”, Zé do Norte lançou “Mulher Rendeira” para o mundo. “Lua Bonita” não foi a primeira canção de Zé do Norte gravada por Raul. Em 1992, quando saiu o álbum póstumo “O Baú do Raul” foi resgatada uma gravação de 1964, na qual Raul interpretava Mulher Rendeira em um pot-pourri acompanhado por The Panters – historia Jotabê.
Enfim, a presença de paraibanos na música de Raul Seixas é muito forte e justificada num trecho de “Rock´n´rooll”, música autobiográfica que está no disco “A panela do diabo”. Diz o trecho: “Há muito percebi que Genival Lacerda tem a ver com Elvis e com Jerry Lee”. Sim, e todos têm a ver com Raul Seixas. Ou Raul com todos eles.
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal), mestre em Ciências da Religião e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.