Por Edson Aran
Além de fazer o melhor humor do mundo (talvez do Brasil), o REPÚBLICA DOS BANANAS também entrou numas de discutir o humor nesses tempos de cólera.
A ideia é elaborar uma série de entrevistas com gente que faz, pensa e discute o humor no país, que depois vão ser reunidas num livro chamado, veja só, “O HUMOR NOS TEMPOS DA CÓLERA”.
E para abrir os trabalhos só tem um nome: o Cláudio Manoel.
A razão é simples: não existe no Brasil pós-ditadura grupo mais influente e importante que o “Casseta e Planeta”. Ponto.
Você pode ter o desejo de questioná-los, superá-los ou até de desafiá-los, mas ignorá-los é impossível.
Nem antes e nem depois deles alguém fez um humor tão abusado e tão ideologicamente descompromissado, sem amarras de qualquer tipo. Muito do humor que se faz hoje em dia trafega pelo caminho aberto pelos caras. Poucos se atreveram a forjar novas veredas no peito como os “cassetas” fizeram faz mais de 20 anos. E continuam fazendo, né?
“Procurando Casseta e Planeta”, do Multishow, é a primeira série de mockumentary do Brasil e o livro “Brasil do Casseta” é o melhor lançamento em humor de 2018 (pelo menos até agora).
Cláudio Manoel é tipo o band leader da turma. Portanto, sem mais firulas, solta o som, DJ.
Vamos começar pelo fim? Por quê o “Casseta e Planeta” acabou? A audiência estava baixa ou foi outra coisa?
Bom… vamos lá. Primeiro: nada acontece por causa de um único fator, tudo contribui um pouco, mas só depois você tem distância e capacidade de análise para arriscar uns chutes e umas teses. O principal fator foi o tempo, que é o senhor de tudo. Ficamos 20 anos no ar, boa parte desse tempo com um programa semanal. Acho que a pergunta mais complexa seria “Por que durou tanto?”
Tá bom então. Por que durou tanto?
Então… durante a maior parte do tempo, o “Casseta e Planeta Urgente!” não só liderou como foi o programa de maior audiência da casa. Nos últimos tempos, os números não eram os mesmos. Mas nenhum número era mais o mesmo e nem voltará a ser. Só que nunca perdemos a liderança. Em suma, não saímos do ar por conta de uma crise do produto, nem por conta do cansaço do público, saímos pela necessidade natural de “tudo tem que ter um fim”. E também pela busca de espaço dos que ansiavam pelo nosso lugar.
O programa tinha uma “quentura” que é um troço meio raro no entretenimento televisivo. A notícia era zoada quase que instantaneamente…
Era uma vantagem competitiva, muita gravação externa, muita “urgência”… um programa totalmente fora da “linha de montagem” que às vezes era feito de véspera. Mas isso também gerava preocupações adicionais quanto ao conteúdo. No começo a gente era o produto diferenciado, a “vanguarda da indústria”, depois viramos a areia na engrenagem…
Vamos falar da areia então. Você já comentou que a pressão política em cima do programa era muito grande. Essa pressão era interna ou externa?
Nosso objetivo era ser o mais engraçado e quente possível, mas não só na política. Nosso carro-chefe sempre foram as paródias de novela, os comentários sobre o que estava rolando. É claro que nesse contexto, a sátira política sempre deu pano pra manga. Tivemos que negociar pautas inúmeras vezes. Lembro que na época do impeachment do Collor, por exemplo, quando as denúncias ainda estavam no início, tivemos umas piadas cortadas. Quando fui negociar com o Mário Lúcio Vaz, que era o poderoso chefão do conteúdo, recebi o seguinte conselho: “Vocês podem ir atrás de qualquer fato… só não podem ir na frente”. Quer dizer, podíamos repercutir, não podíamos ser os primeiros a tocar no assunto. Isso funcionou bem até um momento qualquer “pós-mensalão” quando a Globo começou a ser chamada de “golpista” e resolveu se resguardar, proteger o jornalismo e ser mais rigorosa com o entretenimento. Foi quando começamos ouvir “Isso aqui é concessão federal… vamos maneirar… olha a Venezuela, olha a Argentina..”
Pressão mesmo então…
Pra sermos precisos, o humor político foi a última coisa a causar incômodo. Primeiro foram as marcas de produtos que não podiam ser satirizadas. Foi por isso que investimos nas Organizações Tabajara. Depois veio a proibição de usar qualquer personagem ou assunto de outro canal. E, por fim, vieram os “problemas com Brasília”.
Como se dava isso? O pessoal metia a mão em esquete? Ou era na base do “focus group”?
Telefonemas pra mim. Eu sempre fui o redator final e, no último ano (2012, já no “Casseta & Planeta vai fundo“) era o diretor geral, portanto era a interface com a empresa.
Tem algum esquete em especial que você teve que tirar por conta da pressão de Brasília? Algum que você se lembre?
Vamos tentar explicar isso melhor: nunca recebemos “pressão de Brasília” diretamente, esse argumento nos era apresentado indiretamente pela direção da emissora. O “apelo ao bom senso” que nos faziam é que era feito em nome desse suposto aperto. Não lembro, exatamente, de um esquete porque as piadas inspiradas na política eram muito factuais. Mas me recordo do caso do nosso programa de reestreia, o “Casseta & Planeta Vai Fundo”, em 2012, que era gravado quase inteiro em Brasília e tinha como tema “Corrupção”. Às vésperas da exibição fui chamado para receber o aviso de que aquele não podia ser o primeiro episódio da temporada porque soaria como provocação e que “as pressões estavam insuportáveis”. O programa foi adiado. Mas foi exibido depois.
Eu tenho uma grande preocupação com esses grupos de pressão que se organizam via Internet. Quando um grupo tem força suficiente para censurar uma piada, ele ainda assim é oprimido ou já virou opressor? O que você acha?
É uma discussão dos nossos tempos. Tem uma parte disso que é que um avanço interessante “pracarai” da democracia. O feedback era algo demorado, elitista, improvável. Hoje é imediato, massivo, robótico, opressor. As mesmas ferramentas, a mesma conjuntura que gera uma “hiper-democracia” é a maior ameaça já surgida à liberdade de expressão fora dos mecanismos de estado. A censura não precisa mais de um órgão regulatório… Ela vem de um algoritmo. Isso é preocupante demais.
Porque, falando nisso, se a gente pensar bem, grandes obras da humanidade em algum momento foram consideradas pornográficas ou impróprias. Tipo Shakespeare. Ou James Joyce. Se tudo é definido por algoritmo, você pode impedir a criação de avançar, não?
Mas isso é inevitável e irreversível desde que entramos na “cultura de massas. O feedback imediato – incluindo aí pré-julgamentos e linchamentos – foi potencializado pelo surgimento das redes. Elas transformam a gritaria em hábito, o mimimi em atitude, empareda a ousadia, favorece o surgimento de nichos e trincheiras e estimula os aduladores do “gosto médio”. Mas é isso aí, bicho. Nada vai “voltar pra caixa”, é com esse mundo que temos que lidar. Tem que seguir em frente, perseverar, driblar, até onde o cansaço e os tiroteios cotidianos deixarem.
O Millôr foi demitido da Cruzeiro nos anos 60 por conta de “A Verdadeira História do Paraíso”, que é até meio ingênua. Hoje ninguém seria demitido por isso. Mas se alguém fizesse “A Verdadeira História do Feminismo”, por exemplo, seria demitido antes mesmo da publicação. Nós mudamos de religião?
Há muito tempo. As religiões laicas, com todos os “ismos”, cultos e seitas, já estão aí desde o século passado. A diferença é que as versões fundamentalistas dessas manifestações encontraram agora um ambiente mais favorável para proliferarem e imporem suas pautas. Existe uma imensa zona cinza que embaralha a justa reivindicação por respeito com o mimimi extremado, um mundo onde tudo dói, onde todos são coitados que exigem privilégios e vinganças…
O patrulhamento ideológico não é uma coisa nova. Tanto que o termo foi criado pelo Cacá Diegues em 1978. O que mudou no patrulhamento? Foi só a Internet?
As mudanças foram inúmeras, gigantescas, mas só ampliaram o que já existia no ser humano. Sempre fomos fofoqueiros, mesquinhos, hipócritas, só que agora somos todos mídia. O que me parece mais característico dos dias de hoje é a ideia do “Eu” ser o mais importante de tudo. O que “me incomoda”, o que “eu não aceito”, o que “me tira do meu aconchego” é algo que não só devo repudiar, mas que devo proclamar como nocivo à humanidade. Me parece que a demanda é de um mundo sem ofensas, sem arestas, onde todas as diferenças coexistam, com exceção daquelas que “eu” não admito…
Humorista aqui no Brasil sempre foi meio patrulheiro também, né? O Henfil, por exemplo, era um cara genial, mas patrulhava forte todo mundo que não concordava com ele. O lance com a Elis Regina está até na cinebiografia dela. Tem diferença entre a patrulha feita pelo humor e patrulha feita pelos grupos de pressão? Ou é tudo a mesma coisa?
Patrulha é patrulha. O que tem que ser combatido e sem refresco é o pequeno tirano adormecido dentro de cada um de nós. Rir da piada do cabra que você não gosta é que é o verdadeiro exercício da democracia.
Tem muita gente hoje em dia que diz que “humor tem que ter lado”. Humor tem que ter lado?
Aí é questão de gosto. Ou de ideologia. Ou de prioridade. Pra mim, para o meu paladar, o que mais me apetece é a metralhadora giratória. O objetivo é a piada, o alvo é qualquer um que mereça. Se tiver que escolher entre perder o amigo ou perder a piada, eu perco o amigo. Essa coisa de “não podemos fortalecer o inimigo” é bobagem. O amigo do humor é a gargalhada, o inimigo é a tristeza. Só existem esses dois lados.
Você curte esses novos programas de humor da Globo, tipo “Zorra” e “Tá no ar”?
Não vejo TV aberta há tanto tempo que não tenho a menor condição de opinar.
Tá, não acredito, por isso vou insistir: o “Tá no ar” não é meio “TV Pirata”?
Acho que ele é meio “Casseta & Planeta“. Nós é que éramos meio “TV Pirata“. Mas, a nosso favor, também éramos autores do programa que sucedemos. O maior tesão ainda é ser NOVO e não fazer DE NOVO.
E o “Porta dos Fundos”? Vê ainda? Continua curtindo?
É um divisor de águas e está no “Hall of Fame” junto com a gente, o “Pasquim”, o “Asdrúbal”. Ainda são, disparados, a grande realização brazuca nas novas mídias, são “case”… e conquistaram isso usando o melhor da popularização da tecnologia, transmissão, novas formas de produção, novo modelo de negócio. Tiro meu chapéu e acho o grupo foda. Um grupo de humor tem que suceder e ultrapassar os que o precederam. O “Porta” fez isso em relação a nós, não os programas de televisão, que oscilam entre ser o “novo Sai de Baixo”, ou o “novo TV Pirata”. Novo ainda é o “Porta”, mas a galera do “Choque de Cultura” tá chegando perto.
O “Porta” não foi meio prejudicado por um excessivo posicionamento político-partidário? É o mesmo lance do Danilo Gentili, só que no campo oposto.
Não sei se o “Porta” é a contraposição ao Gentili. Talvez o Gregório Duvivier faça mais esse papel. O excesso de posicionamento político-partidário pode atrapalhar a graça, a leveza, a imparcialidade, a anarquia do humor, mas não tem nada de condenável e nem de ilegítimo nisso. São escolhas, estilos, vontades.
E sobre o humor que rola hoje no mundo? Tem algum programa ou série de humor que você curta? Qual?
Adorei “American Vandal“, curto muito o “Choque de Cultura“, o Daniel Furlan, a Tatá eu acho foda. O Fabio Rabin… mas tudo é muito nicho, muito pulverizado… mas é isso aí, quer moleza? Senta no pudim.
Vamos voltar pro histórico. Vocês tiraram aquele ano sabático no final de 2010 e daí voltaram em 2012 com um programa reformulado. Mas o que se diz é que o programa era diferente… mas não completamente diferente. O que houve?
A gente teve que se encaixar no modelo de produção de temporadas. Em vez de calçar o programa no factual fomos para os temas: corrupção, amor, sexo, violência etc. Perdemos em temperatura e ganhamos em capricho. Até hoje penso que boa parte dos nossos melhores textos estão nessa temporada, mas era um horário difícil, uma tremenda caveira de burro, depois do Globo Repórter, que é um dos programas mais chatos da televisão mundial. Só comatosos sobreviveriam a isso.
Na época, o Marcelo Madureira me falou que queria fazer um programa mais jornalístico, com reportagens e tal. Mas você estava meio na ‘vibe’ do “Pânico”, certo? Houve uma discordância na equipe?
Discordâncias, no plural, sempre existiram. Mas não era essa a nossa questão com o “Pânico”. As discussões internas foram mais em relação ao “CQC”. Madureira defendia um retorno ao jornalismo e a emissora, por questões “projaqueanas”, forçava para que investíssemos mais em personagens. A maioria do grupo apostou no sucesso dos “tipos”. Hoje isso pode ser questionável, mas na época a escolha era de uma obviedade acachapante.
Por falar em jornalismo, o “Dóris para Maiores”, que ninguém mais lembra, só eu, não era exatamente o “Casseta e Planeta”, né? Ele tinha mais reportagens. A fórmula era um pouco diferente, não era?
Quando acabou o “TV Pirata” todos foram instados a apresentar novos projetos. Isso em 1990. Nós apresentamos um piloto que já chamava “Casseta & Planeta Urgente“. A direção da casa gostou, mas não queria bancar um programa de um grupo desconhecido no horário nobre. A gente era só autor na época, né? A Dóris Giesse era uma contratada famosa e sem programa, nós tínhamos um programa, mas não éramos famosos. A ideia foi fazer um produto com ela de âncora, nós no “jornalismo mentira” e o Geneton Moraes Neto e o Jorge Furtado, arregimentados pelo Guel Arraes, com uma mistura de “jornalismo alternativo” (Geneton) com ficções que fingiam ser realidade (Jorge Furtado). Durou só um ano, 1991, mas era um programa inteligente pra caralho. No bom e no mau sentido.
Os filmes do “Casseta” nunca fizeram sucesso no cinema. Por que você acha que isso aconteceu?
Fizeram sucesso mediano. Decepcionaram na época, mas hoje seriam blockbusters. “A taça do mundo é nossa” teve 800 mil pagantes… Eu adoro esse roteiro, mas tem um pecado básico: é muito babaca pra quem é cabeça e muito cabeça pra quem é babaca. Já o segundo, “Seus problemas acabaram”, confesso que nunca assisti. Bussunda morreu antes de ser lançado, o clima já nas filmagens não era muito bom, acho que o roteiro tem algumas boas piadas, mas não se sustenta, igual ao longa do “Porta”. Não renego, mas não admiro.
O “mockumentary” do Casseta no Multishow vai falar de outros temas além da “vida” dos Cassetas?
O “Procurando Casseta & Planeta”, que agora apresenta a segunda temporada foi uma deliciosa experiência criativa de brincar com “falsas vidas reais”. A brincadeira de “interpretarmos” a nós mesmos, a autozoação, passear por temas como ostracismo, envelhecimento, busca do sucesso e fama perdida foi terapêutico e nos rejuvenesceu. A gente gosta de brincar com aquilo que ninguém ainda brincou.
Na noite de lançamento do livro “Brasil do Casseta” em São Paulo, o Madureira falou numa volta do grupo na Internet. Como vai ser isso?
O grupo não existe mais. Existem as pessoas, os momentos e as oportunidades. A web é uma mídia óbvia, potente, dominante. Mas também tem essa coisa de “jogar a garrafa no oceano”… alguns de nós estão motivados para essa aventura, outros, nos quais me incluo, são mais motivados pelas ideias do que pelo meio. Não sou contra, nem a favor. Entro quando achar que posso ser relevante em vez de aparecer só pra cumprir tabela.
Eu nunca vi a “Casseta” (uia) no formato jornal, porque era uma coisa muito carioca. Mas quando eu vi o primeiro “O Planeta Diário”, percebi imediatamente que o cartum do “homem-de-cartola-montado-no-operário” estava morto. Eu estava errado, claro. Esse tipo de cartum panfletário ressurgiu com força dos últimos anos. Por quê isso aconteceu?
A ideologia é o catecismo dos laicos. Somando a isso, temos necessidades cada vez mais prementes e exacerbadas da valorização do eu, das identidades, gêneros, tribos. Os assuntos e as pessoas tendem a ser menos universais e mais umbilicais. A circunferência não é mais a do planeta e sim a da barriga. Tergiversei, mas vamos ser cada vez mais “nicho”, cada vez mais fragmentados, cada mais iletrados e ideologizados. É uma péssima mistura. Por isso é natural que as coisas voltem ou se recusem a avançar.
Mas então a gente está destinado a sempre andar em círculos no humor? Tipo assim: os “Simpsons” foram radicais um dia, hoje são totalmente aceitos, enquanto a porra-louquice está com o “Family Guy”. Por que não há uma evolução na ousadia do humor brasileiro?
Complicada essa singularização. O que é o “humor brasileiro”? Onde ele se unifica? Qual o bloco que ele forma? A gente está prestando atenção ao humor ou aos veículos onde sempre se esperou que viesse o humor? A TV aberta perdeu relevância – não comercial, nem de capilaridade – mas de valor cultural. Ninguém espera que de lá venha algo, então porque a cobrança de “novidades”, ainda persiste? Quem nos “substituiu” não foi o “Tá no Ar” e nem o “Zorra“, foi a web. Nossa meta era fazer a piada na véspera. E só nos fazíamos. Hoje ela é feita segundos depois do fato e, no geral, anonimamente. É o paraíso da anarquia. Qual humorista pode reclamar disso?