Por Thiago de Mello
C dos clubes da cidade.
Ao tempo pelo qual minha crônica passeia, Manaus tinha três categorias de clubes, que nitidamente se distinguiam, principalmente pelo nível social de seus associados e frequentadores. Os “clubes da nata”, como os sócios diziam de boca cheia; os clubes populares, que reuniam preferencialmente figuras do setor mais ou menos empobrecido das camadas médias, que por sinal era o grosso da população da época; e os clubes de subúrbios, abertos ao que hoje está se chamando de povão, mas que naquele tempo não ia além do diminutivo povinho: eram os freges.
A maioria deles teve origem na prática de esporte, formação de times de vôlei ou de futebol, que acabava por agregar os jogadores e suas famílias em sedes que logo desenvolviam outras atividades sociais. Como, no entanto, pretendo dar verbete próprio ao futebol, deixo aqui de lado as atividades esportivas dos clubes.
Os chamados “da nata”, quer dizer, frequentados apenas pelo que se considerava a alta sociedade local, eram o Ideal e o Rio Negro, principalmente o primeiro, fundado nos começos do século com sede num casarão da Dr. Moreira, transferida depois para o alugado sobrado da esquina da Eduardo Ribeiro com a Henrique Martins, até instalar-se na espaçosa sede própria que ocupa até hoje na Avenida com a Praça do Congresso.
Já me referi, com justiça, ao papel que desempenhou o Ideal na vida artística da cidade, com frequentes recitais de canto e de músicos vindos do sul, mas também promovendo os valores da terra, com noites de arte e reuniões literárias, já ao tempo do Augusto César Fernandes, com maior destaque, porém, durante a gestão de Donizetti Gondim.
Por outro lado, já se incorporaram à tradição da cidade os bailes de carnaval do clube, famosos pela exuberante decoração de seus salões, de gosto, a meu juízo, um tanto ou quanto duvidoso. Nunca manteve atividades esportivas, salvo se entre elas couber lugar para os jogos de azar, que ocupam espaço e volume de importância na vida do Ideal Clube, sobre cuja história meu amigo Genesino Braga escreveu um minucioso trabalho.
Já o Rio Negro, cujo nome completo é Atlético Rio Negro Clube, a denotar a sua vinculação inicial com o esporte, pode ter sido clube também da nata. Mas não tanto assim. À parte as suas atividades esportivas, o Rio Negro mais que tudo dava festas, grandes bailes carnavalescos, em cuja organização os seus diretores sociais eram peritos. A sede atual, antigamente restrita ao salão de bailes espelhados e a dois precários campos de basquete, vôlei e tênis, valoriza o trabalho dos seus dirigentes nos últimos trinta anos que, pelo pouco que me consta, de certo modo trataram de democratizar a frequência do clube.
Dos clubes populares, um era o preferido do povo, pela ostensiva preferência da cidade pelo seu time de futebol: o Nacional, cuja sede, pintada com as cores do clube, azul e branco, não se abria com tanta frequência para divertimentos de música e de dança. No carnaval, sim, os bailes do Nacional abafavam a banca.
Já o Clube do Luso e a União Esportiva tinham sua base social na colônia portuguesa, em cujos salões como no campo de esporte que o Luso mantinha lá para os lados do Bosque, realizavam-se grandes festivais de danças típicas de várias regiões portuguesas, com seus trajes e canções característicos.
Dos “freges”, conheci poucos e já dei notícia do 11 Brilhante, do qual os demais seriam como irmãos. Gostaria, entretanto, de fazer ligeira referência ao Serra-Osso, clube que tinha sede no São Raimundo e abrigava comerciários, operários e particularmente magarefes do Curro, daí o nome escolhido.
Não recordo se foi em 39 ou em 40 que surgiu o Olympico, derivado do antigo Albatroz, logo fazendo furor na cidade com o poderio do seu time de futebol, com o nível econômico e social de alguns sócios de sobrenome importante e até com um jeito novo e atraente – Seja forte sendo Olympico – de conquistar adeptos jovens, entre os quais logo começaram a se incluir algumas das moças mais bonitas da cidade, como as irmãs Assis Brasil, cujos nomes começavam com K.
Estou em dúvida se entraram todas, porque Klarisse, que conheceu e começou a namorar com o recém-chegado dr. José Franco de Sá (a quem carinhosamente chamo de tio Zé, só para marcar a lembrança da amizade tão bonita que uniu o meu pai ao seu, o antigo contador da Repartição de Águas, José Pinto Francisco de Sá) na Festa das Rosas, promovida pelo Rio Negro em 1939, casou-se com ele em 1941.
Mas a Kamélia era uma das finas flores do Olympico, e tão querida, que deram o nome dela à imensa boneca que desfilou no clube num daqueles carnavais. As vesperais dançantes do Olympico, ali numa esquina do começo da Epaminondas, tinham sabor de festa caseira, ao som de vitrolas que repetiam as canções preferidas da cidade.
C das catraias, tantas, pássaros bailando serenos nas pétalas da água. Atravessavam os igarapés da cidade, avançavam pelo Rio Negro, tripuladas por um só homem, o catraieiro, que remava em pé, o dorso arqueado sobre a dança das faias compridas. O toldo de lona muito branca brilhando como um cântico de luz. Catraias de São Raimundo. O porto das catraias dos Educandos.
Os operários da serraria chegavam de manhãzinha nas catraias que encostavam na beirada da Quintino Bocayuva, num tempo em que quase todos os catraieiros eram portugueses. Um deles o Joaquim Adão, de Vila Nova de Gaia, tinha um orgulho danado de sua catraia, sempre muito limpa, os bancos laterais de itauba lisinha, era gostoso passar a mão. Senhora dos Navegantes era o nome da catraia que fazia a última viagem noturna.
C de certas casas.
Eu ia escrever que frequentei, mas na verdade vivi, intensamente vivi e aprendi a vida com pessoas tão diferentes umas das outras, mas todas iguaizinhas no jeito simples e bom de fazer com que eu me sentisse uma pessoa querida da casa. A da família Normando, nossa vizinha na Silva Ramos. A do Machadinho, com sua mãe viúva, dona Isolina, ali na Vila Georgette, na Lauro Cavalcanti. A da família Carvalho Leal, de cujo filho Lealzinho, o Alex, eu era colega de turma do Ginásio. A do desembargador João Corrêa, pai do nosso colega Hipólito, sempre o primeiro da turma, desaparecido tão jovem. A de família Souza Lima, na esquina da Joaquim Nabuco do dr. Jacques, na sala da frente, ao lado o corredor que transformávamos em campo de futebol de botão. A casa dos Alencar, casa mágica, onde só florescia a bondade.
A da Maria Silva Pinto, irmã do Fernando, na esquina da Praça da Saudade, cuja mãe, dona Silvia, muito nos cultivou o gosto de conversar. A casa da família Cabral, com a paciência da dona Sabá e a alegria traquinas do meu amigo Orlando que um bonde matou. A do seu Rodrigues e dona Joana, pais da Doralice, João Batista e Edgar, com quem repartimos a moradia num tempo de aperturas e de inesquecíveis descobertas no meio da mataria que cobria, compacta, todo o imenso terreno atrás da casa no fim da Silva Ramos. E a casa dos Menezes, na Jonatas Pedrosa, 36 – só que esta tem verbete especial, enriquecido pela memória do menino que o Armando foi. Não preciso esclarecer que neste rol se incluem, sem necessidade de menção, todas as casas daquelas ruas que formaram o “espeço solidário” que trato de contar.
C da cerveja mais gostosa que Manaus já teve, a cerveja XPTO, famoso produto da Cervejaria Amazonense, cuja pedra fundamental se colocou em 1909, quando Angnello Bittencourt era o prefeito da cidade, e fundada em 1912 pelos irmãos Miranda Correa (Antonio Carlos, Altino Flavio, Deocleto Carivaldo e Luiz Maximino). Além da XPTO, a Cervejaria fabricava também uma cerveja preta e outra denominava Ouro Sobre Azul. Recordo o carnaval de 1937: um carro alegórico cheio de moças cantando ao redor de uma enorme garrafa da Ouro Sobre Azul. Dos quatro irmãos, Luiz Maximino foi quem mais esteve ligado à vida cultural e artística da cidade. De um neto dele, o poeta Anibal Beça, quero transcrever um primor de poema em louvor da cerveja que se acabou:
Despe-te e nada na cevada,
vê o trigo moendo na mó
a bebida decantada
dos louros cantões: XPTO.
Acre, servida gelada
cerveja que tira o pó
ou lava a alma da amada,
companheira do que está só.
Loura suada arredia
ao sol, gelando a goela:
mais novo, o chope desfia
essa dor de cotovelo,
ângulo reto na mesa;
paixão, amor, em degelo.
Este C é triste
porque é o de dona Cristina Pereira, prestigiosa e festejada figura da cidade, casada em segundas núpcias com Roberto Pereira, o fundador da Colônia Oliveira Machado, criador da maior serraria que já houve em Manaus. Enquanto foi vivo, o velho Roberto sempre fez o melhor que pôde para ajudar a vocação de ação-social da mulher.
Dona Cristina fundou dezenas de escolas, criou o movimento das Bandeirantes, retomou, com a organização dos Lobinhos, o trabalho interrompido com a morte do mestre José Chevalier, o pioneiro do escotismo no Amazonas. Pessoa lida e instruída, dotada de sensibilidade artística, distinguida pela amizade de figuras como Cecília Meireles, Paschoal Carlos Magno, Ana Amélio Carneiro de Mendonça – dona Cristina Pereira, casa e coração abertos aos artistas amazonense, sempre se distinguiu pela virtude da solidariedade. Ao meu retorno a Manaus, quero dar vida curta a este verbete, encontrei dona Cristina Pereira viúva e esquecida, na solidão hemiplégica de uma cadeira de rodas.
C do nosso querido professor Carlos Mesquita,
o inesquecível diretor do Ginásio Amazonense Pedro II, centro e razão de sua vida. Homem de formação inglesa e, contudo, profundamente amazônico. Dedicou sua vida à juventude, era com os jovens que ele gostava de conversar. Professor, diretor, jornalista, editor de revistas culturais – um dos fundadores do movimento glebarismo –, Carlos Mesquita morreu pobre. Só em conversa recente com meu amigo Samuel Benchimol é que fiquei inteirado de um crime irreparável cometido por todos nós contra a memória do nosso antigo mestre. Anos depois de sua morte, uma parenta, movida pelas duras contingências da vida, decidiu vender o seu túmulo no Cemitério São João Batista. Hoje Carlos Mesquita não tem nem sepultura, mancha de ingratidão na memória da cidade.
C de Carmem Doida.
Era uma mulher alta, magra, morena, olhos espremidos, dos quais saíam ou faíscas de ódio ou uma triste cinza orvalhada. Gostava de dançar na rua, sozinha, indefesa à curiosidade dos transeuntes! Tinha a boca ligeira. Carmem Doida!, sempre alguém gritava (quase sempre era voz de normalista). É a tua mãe, filha da putinha. De repente, a ofensa irada se abrandava no diminutivo. Respondia cortante, enfezada, quatro, cinco palavrões cabeludos – e continuava a dança.
Se a chamavam doida de novo, então ela saía correndo, atrás das normalistas fardadas pela 7 de Setembro. As estudantes entravam nas lojas, na Sapataria Arone, na Papelaria Velho Lino, buscando esconderijo com medo da Carmem desvairada. Sabiam que se a Carmem pegasse uma delas de jeito, não ia ser de brincadeira na hora da indignação, que por sorte passava logo. E recomeçava a dançar.
Suponho hoje, e comigo mais que supõe o Machadinho, que a implicância das normalistas com aquela ingênua figura de nossa Manaus, tinha a sua razão: é que ela não perdoava os casais atiçados em carinho de namoro. Isso mexia com a Carmem Doida, que os denunciava aos gritos (ou os incentivava bem defronte deles: “Tapa, tapa logo”, acompanhados do obsceno gesto da mão direita espalmada batendo com ritmo e vigor sobre a esquerda fechada. Acho que me equivoco: a Carmem podia ser doida, mas ingênua não era não. “Tapa, tapa logo”.
Gente de memória boa, como o Machadinho e Silva, ainda lembra uns estranhos versos que a Carmem Doida gostava de recitar, debruçada na sua janela da Praça 14:
“Um, dois, três
calça e paletó.
Tem não, tem não
pra morte
é morrer.”