Por Mário Adolfo
Ainda nos anos 70, no auge da ditadura militar, a oposição desencadeou de maneira vigorosa a luta pela anistia ampla, geral e irrestrita. Foi criado o Movimento Feminino pela Anistia, por iniciativa de Teresinha Zerbini, que colocou a questão como necessidade imperiosa para recuperar a democracia e o Estado de Direito.
No Brasil de 1977, quem era homem de bem vestia a camisa, participava de passeatas e atos públicos para fazer pressão pelo movimento da Anistia. Mas só servia se fosse ampla, geral e irrestrita.
– Os grupos e instituições devem se unir para defender a anistia. Não se pode falar em direitos humanos sem antes garantir a anistia. A perseguição e a prisão de advogados, de presos políticos no Brasil como um atentado contra a independência e integridade do sistema jurídico mundial – explicava Arthur, ele mesmo vítima do regime tirano.
Com tanta pressão, os movimentos pela anistia começaram a crescer. Em pouco tempo não era mais movimento, e sim Comitês Brasileiros pela Anistia – os CBAs –, que passaram a ser instalados em vários estados e até mesmo fora do país. O regime dava sinais de cansaço na segunda metade da década de 70. Às mortes do jornalista Vladimir Herzog (1975) e do metalúrgico Manuel Fiel Filho (1976), seguiram-se as medidas que o general Ernesto Geisel definia como de abertura lenta, gradual e segura.
No final da década, a música que mais se ouvia nos rádios, bares e movimentos populares, principalmente no meio estudantil, era O bêbado e a equilibrista, entoada pela voz maviosa de Elis Regina, que colocou alma na gravação da música de João Bosco e Aldir Blanc. A letra virou hino da anistia, onde choravam “Marias e Clarices no solo do Brasil” e, entre outras coisas, nos induzia a sonhar com a volta do “irmão do Henfil”, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que estava exilado há mais de dez anos e virou personagem e bandeira de luta do mano cartunista.
Quando uma bandeira cai nas mãos do povo, não há força que consiga conter. Nem a opressão. Com tanta pressão, o general João Baptista Figueiredo não tinha mais nada a fazer a não ser promulgar a Lei de Anistia, o que foi feito no dia 28 de agosto de 1979.
Da janela de seu apartamento da avenida Sete de Setembro, o senador Arthur Virgílio via, aos poucos, o povo, através de movimentos populares e da imprensa, ir resgatando cada pedaço de Brasil perdido na longa noite de escuridão em que o país mergulhou em 1964.
Nas conversas que mantinha conosco, o senador apontava o contrassenso da Lei de Anistia, que perdoava os torturados ao mesmo tempo em que anistiava os torturadores. Quer dizer, o perdão era para os que haviam sido punidos por crimes políticos, e se estendia aos representantes do Estado que haviam cometido qualquer espécie de violência política. Mesmo assim, Arthur considerava que a Lei da Anistia foi um marco para o processo de redemocratização do país, que se completaria institucionalmente dez anos depois, em 1989, com a primeira eleição direta para presidente da República.
No longo período em que se manteve recluso em seu apartamento, de onde saía vez por outra para caminhar pela avenida Eduardo Ribeiro, comprar os jornais, rever amigos e alguns parentes que ainda moravam em Manaus, Arthur viu a História passar quadro a quadro, escrita ora por heróis que resistiram – e por sua coragem sucumbiram – à opressão; ora por medíocres que se fizeram donos do poder pela força.
Nesse período, o senador viu e viveu, através da vida parlamentar do filho Arthur Neto, o movimento das Diretas Já, que resultou no fim do regime militar (1964-1985) e na eleição indireta de Tancredo Neves, o primeiro civil a ser indicado chefe de Estado em 21 anos. Viu também a promulgação da Constituição, em outubro de 1988.
Amigo pessoal de Arthur Virgílio Filho, com quem conviveu e presenciou sua coragem na resistência à ditadura, Tancredo Neves já havia manifestado o desejo de resgatar o ex-senador assim que chegasse à Presidência da República. Naquele ano de 1984, o futuro presidente do Brasil esteve por duas vezes em Manaus. A primeira na caravana das Diretas Já, em fevereiro, e a segunda, em outubro, quando já era o candidato ao Colégio Eleitoral pela Aliança Democrática, nascida de um acordo entre PMDB-Frente Liberal, que tinha José Sarney como vice.
O movimento Diretas Já nasceu em 1983, quando membros da oposição na Câmara dos Deputados lançaram o movimento para eleger pelo voto direto o sucessor do presidente João Batista Figueiredo. O movimento evoluiu para um projeto de lei elaborado pelo deputado Dante de Oliveira (PMDB-MT), a chamada emenda Dante de Oliveira. O movimento cresceu sob a batuta do senador Teotônio Vilela, o menestrel de Alagoas, que logo é seguido por Ulysses Guimarães. Os dois eram apoiados pela esquerda do PMDB.
O movimento foi deflagrado dia 15 de junho de 1983, em Goiânia, reunindo pouco mais de 5 mil pessoas no centro da cidade. Em 1984, os comícios pelas Diretas espocam em todo o Brasil, assustando o governo militar. Reúnem 50 mil pessoas em Curitiba, 400 mil em São Paulo. No Rio, um comício sem Brizola (que defendia um mandato-tampão para a sucessão de Figueiredo) atrai 200 mil pessoas. Mas logo depois, na Candelária, reuniria um milhão de pessoas. Mas a explosão maior seria no comício de Anhangabaú, São Paulo, quando 1,5 milhão de pessoas entoava em coro pelas Diretas.
Nesse movimento, o deputado amazonense Arthur Virgílio Neto revelou-se um dos maiores articuladores na guerra para aprovar a Emenda Dante de Oliveira, no Congresso. Acompanhou a caravana por todo o Brasil, organizou comitês que distribuíam gravatas amarelas (a cor oficial das Diretas, que chegou a ser estampada em tarjas, na capa do jornal Folha de S.Paulo) e lançou o “Livro da Cidadania”, que colheu assinaturas de apoio à emenda. Contemplando, mesmo que de longe, o filho no calor da luta, o velho Arthur estava feliz.
No entanto, apesar de unir o país num só grito, as Diretas seriam derrotadas em 25 de abril de 1984, no Congresso. A solução viria pela via indireta, no Colégio Eleitoral, uma via que Tancredo nunca havia descartado com seu tom conciliador. “A ilegitimidade do Colégio precisa ser eliminada ou reduzida”, dizia. Aos poucos, o nome de Tancredo foi tomando corpo para ser o comandante que reconduziria o Brasil redemocratização. Para isso foi decisivo o movimento dos dez governadores liderados por Franco Montoro, que apontaram o perfil de Tancredo como o ideal para a sucessão.
Nas duas vezes em que esteve em Manaus – a segunda já como candidato da Aliança Democrática –, Tancredo conversou com Arthur Virgílio Filho, quando manifestou sua disposição pela conciliação. Bombardeado pelas pressões e preocupado em acalmar o regime militar, que já estava em franca derrocada, o velho político mineiro chegou a condenar o revanchismo e exaltar “um suposto espírito democrático das Forças Armadas”.
Embora aceitasse a ideia do Colégio Eleitoral depois que a Emenda Dante de Oliveira foi derrotada, Arthur Virgílio não via esse tom democrático dos militares e nem tampouco considerava “revanchismo” trazer vivas as feridas que a ditadura militar lhe deixou na alma. Mas entendia que, para emergir na democracia em sua plenitude, o país mais uma vez necessitaria ir ao Colégio Eleitoral, para eleger um presidente civil que garantisse o Estado de Direito e nunca mais fosse obrigado a se valer desse recurso para eleger um presidente.
“Por ser um conciliador, Tancredo Neves é o nome indicado para conduzir esse processo, ser eleito presidente, mesmo através de um colégio espúrio, e convocar uma Assembleia Nacional Constituinte”, avaliava Arthur Virgílio Filho ao saber do acordo PMDB-Frente Liberal, que lançou a dobradinha Tancredo-Sarney, enquanto os generais Geisel e Figueiredo chegavam a propor Olavo Setúbal para presidente. Mas a Frente Liberal sustenta Sarney de vice e a debandada começa, enfraquecendo ainda mais o poder.
Enquanto a Aliança Democrática vai às ruas, reunindo em Goiânia uma multidão ainda maior que o comício pelas Diretas, a resistência do regime militar para não perder o poder vai ficando cada dia mais enfraquecida. Uma das primeiras dissidentes a abandonar o barco foi a senadora amazonense Eunice Michilles (PDS), que chegou a ser indicada como candidata a vice-presidente do superministro Mário Andreazza, o candidato preferido do presidente João Figueiredo, mas que seria derrotado por Paulo Maluf na convenção do PDS. Eunice representava uma grande baixa. Suplente do senador João Bosco (PDS-AM), que morreria no início de seu mandato, ela foi a primeira mulher a chegar ao Senado, tornando-se líder das mulheres malufistas. Charmosa, ela estava na crista da mídia quando surgiu como pretendente a vice-presidente.
Derrotando Paulo Maluf no Colégio Eleitoral, no dia 15 de janeiro de 85, Tancredo Neves não chegaria a assumir o poder. Morreria no dia 21 de abril de 1985, depois de 38 dias de agonia, que teve início com sua internação no Hospital de Base, às vésperas de tomar posse. Por força do destino, o presidente do país seria o senador José Sarney, um político ligado aos militares, presidente do PDS, o partido do governo e que se transformaria em um dissidente da noite para o dia depois que o candidato do governo à sucessão, Paulo Maluf, confirmou o deputado Flávio Marcílio (PDS-CE) para ser seu vice.
No dia 16 de maio de 1985, depois de participar de exaustivas negociações e resistir a pressões de todos os lados, o presidente José Sarney assinou as nomeações dos cargos de segundo escalão do Ministério da Previdência Social, todos indicados pelo PMDB. O médico Esio Cordeiro, especialista em medicina social, foi nomeado para a presidência do Inamps. O ex-senador pelo Amazonas Arthur Virgílio Filho foi confirmado na presidência do INPS. O ex-deputado pelo Espírito Santo Nelson Aguiar, para a Funabem. No mesmo dia os jornais publicavam que a presidência da LBA continuaria vaga, porque dona Risoleta Neves recusara o cargo.
O ministro Waldir Pires, da Previdência Social, marcou a posse do senador Arthur Virgílio para a semana seguinte, anunciando que até o final do mês estariam nomeados os cargos de segundo escalão do seu ministério, cujas escolhas, segundo ele informou, seriam uma composição entre ele, o presidente dos institutos e as forças políticas. Competência administrativa e probidade são dois pré-requisitos fundamentais que o ministro assinalou não abriria mão nesses casos:
– Se ficar comprovado o contrário, não hesitarei em substituir quem quer que seja! – advertiu.
Em Manaus, no dia 18 de maio de 1985, o ex-senador Arthur Virgílio Filho, já com data marcada para assumir o cargo, disse durante entrevista concedida em seu apartamento, no edifício Mônaco, que o Sistema Nacional da Previdência e Assistência Social (Sinpas) deveria ter uma função social marcante no complexo da atuação administrativa do governo. “Mas, lamentavelmente, ao longo dos anos as distorções que alcançaram de forma dura o órgão, se não anularam a sua atuação, pelo menos diminuíram em muito o que o sistema poderia realizar, sobretudo em benefício das classes mais carentes da população brasileira”, afirmou.
O futuro presidente do INPS garantiu que, assumindo o Ministério da Previdência Social, o ministro Waldir Pires encontrou forte desafio, mas, mesmo assim, as medidas por ele adotadas “já começam a dar resultados positivos inclusive sendo anunciadas em entrevistas concedidas recentemente à televisão brasileira”.
Durante a entrevista, Arthur Virgílio Filho alertou que esses resultados se identificavam na queda quase vertical das fraudes que corroíam a estrutura financeira dos órgãos do Sinpas.
Sobre a discutida situação dos aposentados, o novo presidente do INPS disse que sempre entendeu que duas providências seriam fundamentais para a projeção sociopolítica e econômica de um país:
– A primeira é a assistência à infância, que representa o futuro do país, e a segunda é a assistência à velhice, para a tranquilidade social, pois nós nascemos, crescemos e, se não morrermos, envelhecemos. É justo que o homem ou a mulher, depois de duros anos de trabalho em proveito do país e do seu crescimento, encontre, nos dias que estão acabando em sua vida, do ócio a verdadeira dignidade.
Arthur Virgílio pegou o INPS afundando num mar de denúncias de fraudes, corrupção e desmandos. Em suas primeiras declarações sobre o desafio que estava recebendo, deixou claro que “todo homem público responsável deve repelir tiradas demagógicas”:
– Previdência Social cumpre primeiro erradicar o déficit que sufoca, que diminui a sua possibilidade de ação benéfica, no que tolhe as suas condições de promover assistência mais ampla. Por isso, a presidência do INPS apenas apela para o crédito de confiança dentro de uma fiscalização rigorosa de sua atuação.
De saída, o novo presidente do INPS advertiu que possuía dados, no caso específico do Amazonas, que denunciavam graves distorções na concessão de benefícios rurais. Mas afirmou que para consegui-los “usara de mão de ferro”, dentro do lema preconizado pelo saudoso Tancredo Neves de que “a corrupção é um problema de Código Penal”. Colocado o Sinpas no eixo de suas verdadeiras finalidades, garantiu, ele virá ocupar certamente a sua grande função na assistência social do povo.
Nos primeiros dias de sua administração, Arthur Virgílio Filho foi surpreendido com a notícia de que 250 mil funcionários da Previdência entrariam em greve. Defensor intransigente dos direitos dos trabalhadores, ele voltou a surpreender aqueles que esperavam uma reação autoritária, dizendo que sempre defendeu a greve como instrumento de luta dos servidores e que poucos se posicionaram no Congresso Nacional em defesa desse direito quanto ele, e enfatizou:
– A greve é o grande instrumento de luta do trabalhador para a conquista de suas reivindicações. O piquete é válido porque procura convencer. E é pelo convencimento que a reivindicação pleiteada pela greve pode sair vitoriosa. E, se vitoriosa, a greve beneficiará indistintamente a todos aqueles que lutaram, que sofreram privações e às vezes até demissões, e aqueles que não lutaram.
Arthur Virgílio Filho argumentou que o direito de greve deveria ser estendido a todas as categorias de trabalhadores, como acontece em muitos países que vivem sob regimes democráticos estáveis. Mas, apesar do discurso liberal, de compreensão à luta dos trabalhadores, alertou para os excessos e advertiu que seria intransigente no respeito à Lei, porque, segundo ele, “se formos tolerar afrontas ao ordenamento jurídico do país, estaremos caminhando para o caos”:
– Compreendo as duras condições em que vivem todos aqueles que dependem do ganho pelo seu trabalho. No entanto, a Nova República está apenas começando e é justo admitir que nesse começo já se registraram conquistas expressivas dos trabalhadores em geral, principalmente no setor específico da Previdência Social, que está apenas no início, haja vista que o ministro Walter Pires assumiu a direção da política previdenciária nacional há dois meses.
O ex-senador e líder do governo Goulart deixou claro, em quase duas horas de entrevista, que o povo brasileiro não deve esperar “milagres de nós”, até porque “ninguém quer ser santificado”. Mas garantiu que o país pode esperar dedicação ao bem público, probidade na aplicação dos dinheiros recolhidos aos cofres públicos, combate vigoroso, intransigente e implacável à corrupção:
– Isso eu asseguro. Por mim e por aqueles a quem foram confiados estes postos importantes no complexo da Previdência Social e no governo da Nova República em geral. Nós trabalharemos para dar o melhor.
(Publicado em 2011, no livro “Perfis Parlamentares nº 59 – Arthur Virgílio Filho”, pela Câmara dos Deputados)