Por Mário Adolfo
Apesar de os tempos aconselharem cautela, a voz do senador Arthur Virgílio Filho não silenciava. E muitas vezes ecoou solitária na tribuna do Senado, enfrentando os que já haviam debandado para o lado do governo e até se consideravam amigos dos militares “desde pequenininhos”.
No dia 28 de novembro de 1965, o senador amazonense proferiu o seu mais corajoso e arrojado discurso no Senado, que, certamente, o colocou na mira da cassação. Enfrentando alguns governistas de primeira hora, ele contestou na sessão daquele dia a assinatura do Ato Institucional nº 2 (AI-2), de outubro de 1965.
A íntegra do discurso foi reeditada pelo Congresso Nacional em 1999, numa edição histórica sobre os Grandes momentos do Parlamento brasileiro. Com voz grave, mas firme, aplaudido pelas galerias e provocado pelos adversários, Arthur Virgílio manteve a postura e a elegância até o fim de seu discurso, mesmo interrompido por apartes nem sempre elegantes:
O SR. ARTHUR VIRGÍLIO – Sr. Presidente, Srs. Congressistas, Brasília é bem a síntese do Brasil. Esta Casa sempre vazia, quando falamos apenas para nós mesmos ou quando vemos uma ou outra pessoa isolada assistindo às sessões, hoje está repleta. É o Brasil que se encontra aqui, de norte a sul, pela população desta cidade, para assistir e para esperar a decisão que vamos tomar nesta noite histórica. E este interesse de Brasília na síntese da nacionalidade, quando a população da cidade aqui se congrega para acompanhar a reunião do Congresso, está a nos indicar apenas aquilo que o povo espera de nós: se, nesta hora, vamos abdicar da delegação popular que recebemos ao ser eleitos deputados e senadores, se vamos aceitar a tutela, se vamos aceitar a coação ou se vamos nos diminuir a ponto de desaparecermos diante do que poderíamos ser perante a nacionalidade. Sr. Presidente, Srs. Congressistas, não há como esconder a gravidade da hora que esta nação vive. Não há como obscurecer, sobretudo, a responsabilidade nossa diante dessa gravidade: ou seremos dignos do mandato popular que recebemos, ou seremos dignos de representação que aqui apenas expomos, ou, então, estaremos entregando esta nação ao mais degradante dos destinos. (Não apoiado!) Ouvi um “não apoiado” muito tímido. Não sei de onde, não sei de onde partiu, talvez de alguém que se está agachando diante da força. (Muito bem! Muito bem! Palmas prolongadas.)
O Sr. Ruy Santos – No Congresso não há quem se agache, Sr. Senador.
O SR. ARTHUR VIRGÍLIO – Não ouvi, também, de quem partiu…
O Sr. Ruy Santos – Partiu de um representante como V.Exa. Nesta Casa não há quem se agache. Se V.Exa. é digno, tem que reconhecer que todos são dignos quanto V.Exa. (Muito bem! Palmas.)
O SR. ARTHUR VIRGÍLIO – Sr. Presidente, um Congresso sitiado, um Congresso sofrendo pressões como nunca imaginou pudesse sofrer: um Congresso sem autonomia, que amanhã poderá estar sob um outro ato institucional e ter vários de seus membros cassados, este Congresso é que não se agacha? Este Congresso que tem cedido sob pressão… (Não apoiado! Não apoiado!)
(Tumulto no plenário. O Sr. Presidente faz soar a campainha.)
O Sr. Presidente (Moura Andrade) – (Fazendo soar os tímpanos.)
– Atenção!!! Está com a palavra o senador Arthur Virgílio Filho.
O Sr. Antônio Carlos Magalhães – Sr. Presidente, peço a palavra para uma questão de ordem.
O SR. ARTHUR VIRGÍLIO – Sr. Presidente, peço a V.Exa. que me garanta a palavra. Não dou permissão para questão de ordem durante o meu discurso e peço a V.Exa que me assegure a palavra.
O Sr. Presidente (Moura Andrade) – O deputado deixará para propor a questão de ordem em seguida ao discurso do Sr. Senador Arthur Virgílio. (Muito bem!) Declara a presidência que não admite a interrupção de oradores para questão de ordem. Assim sendo, nos termos do Regimento, a presidência garantirá a palavra ao orador e, em seguida, ouvirá a questão de ordem do deputado Antônio Carlos Magalhães. Com a palavra o senador Arthur Virgílio.
O SR. ARTHUR VIRGÍLIO – Sr. Presidente, no meio desse tumulto, desse desespero…
O Sr. Pinheiro Brizolla – Eu é que não dei o “apoiado”. Não me curvo. Sou independente. Tenho espinha dorsal. Não estou sob pressão de ninguém.
O SR. ARTHUR VIRGÍLIO – E V.Exa. pensa que me curvo? Quero ver V.Exa. me curvar com toda a sua idade. Tem que me fazer curvar.
O Sr. João Herculino – Muito bem!
O Sr. Pinheiro Brizolla – V.Exa. não tem o direito de afrontar o Parlamento, de afrontar o povo! V.Exa. está afrontando o Parlamento!
O Sr. Presidente (Moura Andrade) – (Fazendo soar as campainhas.) – Atenção! Os apartes deverão ser concedidos pelo orador. Os aparteantes deverão solicitá-los.
O SR. ARTHUR VIRGÍLIO – Vou dar uma demonstração de serenidade. Democracia é isso. É diálogo, é debate. Quero ouvir as opiniões contrárias às minhas. Gostaria de ouvi-las e contestá-las. Esse deputado que estava aí tão exacerbado, esse deputado…
O Sr. Pinheiro Brizolla – “Esse deputado” não!
O Sr. João Herculino – É o Brizolla!
SR. ARTHUR VIRGÍLIO – (Dirigindo-se ao Sr. Pinheiro Brizolla.) – Não sei o nome de V.Exa.
O Sr. Pinheiro Brizolla – Esse senador que está aí não é melhor que este deputado!
O SR. ARTHUR VIRGÍLIO – Não fiz nenhuma ofensa a esse deputado. Não tenho o prazer de saber o nome desse deputado.
O Sr. João Herculino – É o Brizolla!
O SR. ARTHUR VIRGÍLIO – É o Brizolla. Pois bem, eu lhe concedo o aparte.
O Sr. Ruy Santos – É um Brizolla decente, é verdade.
O SR. ARTHUR VIRGÍLIO – Eu concedo o aparte a S.Exa.
O Sr. Arruda Câmara – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem, se o orador consentir.
O Sr. Presidente (Moura Andrade) – O orador já disse que não concede questão de ordem durante seu discurso.
O SR. ARTHUR VIRGÍLIO – Um momento, apenas eu quero declarar que não conhecia, infelizmente, pessoalmente, o deputado Pinheiro Brizolla e concedo o aparte a S.Exa. se S.Exa. quiser apartear, dentro do Regimento, dentro dos princípios democráticos, dentro do diálogo que devemos tratar nesta Casa. Concedo a V.Exa. o aparte.
O Sr. Pinheiro Brizolla – Sr. Senador, eu disse “não apoiado” porque V.Exa. afirmou que se estava arrastando o país para a desgraça, que estão degradando o país. Não é verdade, senador. O governo atual é um governo digno, como eu demonstrei, hoje, desta tribuna. Tem praticado atos para o desenvolvimento da nação: o desenvolvimento agrícola, industrial, como o aumento de nossa exportação (não apoiado!), conforme demonstrei com algarismos, com estatísticas. Por isso, não concordei com afirmação de V.Exa., que pode dissentir do atual governo, V.Exa. pode ficar amarrado ao passado, àquela situação de caos que o Brasil estava vivendo. V.Exa. pode estar satisfeito com o dia de ontem, mas não pode negar, Sr. Senador, que nós estamos vivendo uma radiosa manhã. (Não apoiado. Vozerio.) Esta é uma manifestação de praça pública, não é uma manifestação de parlamento!
O Sr. João Herculino – É a manifestação do povo!
O Sr. Pinheiro Brizolla – Não é o povo que está aqui.
O Sr. Presidente (Moura Andrade) – (Fazendo soar a campainha.) – Atenção, Srs. Congressistas! Peço a V.Exa., Sr. Deputado Pinheiro Brizolla, que encerre o seu aparte, que já está ultrapassado o permitido pelo Regimento.
O Sr. Pinheiro Brizolla – (Prossegue.)
O Sr. Presidente (Moura Andrade) – Vou desligar o microfone de V.Exa. Peço ao nobre senador Arthur Virgílio que prossiga em seu discurso.
O SR. ARTHUR VIRGÍLIO – Sr. Presidente, irei conceder ao deputado monsenhor Arruda Câmara, meu prezado companheiro de Congresso, e ao nobre deputado Antônio Carlos Magalhães o aparte que não concedi antes devido ao tumulto que se verificou.
O Sr. Antônio Carlos Magalhães – Nobre senador Arthur Virgílio, já que V.Exa. me concedeu o aparte, quero dizer a V.Exa. que esta é realmente uma sessão de se marcar posição. Consequentemente, a questão de ordem ia se referir ao direito de V.Exa. marcar sua posição, mas não desrespeitar a nossa, com termos que não são comuns a V.Exa. e que esta Casa não vai aceitar. Não há nenhuma ameaça nisto. Pelo contrário, o meu desejo é travar o diálogo com V.Exa. nos termos em que sempre se travaram nesta Casa. Consequentemente, quero dizer que estamos prontos para o debate, examinando as posições nesta conjuntura, no passado e no presente. Não temos por que não defender este governo do marechal Castello Branco. Porque muito nos honra o apoio que lhe damos; é uma honra para nós. (…)
O SR. ARTHUR VIRGÍLIO – É este o diálogo que desejo, nobre deputado. O diálogo democrático, a troca de razões, a troca de opiniões, o que nesta hora querem negar a nós, porque nesta hora quase nos impedem de falar, em vista do tumulto que V.Exa. viu aqui. Isto vem demonstrar que eu ouço a opinião de V.Exa. Agora, quero que fique bem claro, nesta hora, que ninguém conseguirá me calar pela violência. (Muito bem!) E quem quiser fazê-lo, que o tente, porque vai verificar que não me calará pela violência. Quem quiser impedir-me com ameaças, que o tente, para verificar se o consegue. Porque, assim como não admito também que alguém seja monopolista do moralismo, da dignidade, não admito também que ninguém seja monopolista da coragem. (Muito bem!) Ninguém aqui monopoliza a coragem. Ninguém aqui é mais bravo que o outro. E se alguém duvidar, que venha testar, que venha experimentar, que venha impedir-me de dizer aquilo que desejo dizer nesta hora. (Muito bem! Palmas.)
O Sr. Presidente (Moura Andrade) – (Fazendo soar a campainha.) – Para isso a Mesa garante a palavra a V.Exa. Não há necessidade de ser colocado o assunto nos termos em que V.Exa. e o aparteante estão colocando. A Mesa garante a palavra a V.Exa. Portanto, não há necessidade de excesso de coragem, de parte a parte, para ocupar a tribuna. (Muito bem! Palmas.)
O SR. ARTHUR VIRGÍLIO – Mas antes de a Mesa me garantir, Sr. Presidente, eu me garanto. Asseguro a V.Exa., asseguro ao Congresso, asseguro a quantos colegas congressistas que me ouvem que, antes de a Mesa me garantir, eu me garanto! Concedo o aparte a V.Exa., deputado Cid Carvalho.
O Sr. Cid Carvalho – Nobre senador Arthur Virgílio, inscrito para a discussão, sei que não terei tempo para falar. Por isso, considero da maior importância ler um trecho histórico, que se aplica muito bem a esta sessão do Congresso. Discutia-se, na Alemanha de Hitler, uma lei de autorização solicitada ao Parlamento. Aqui temos essa maravilhosa página, que pode ficar muito de advertência a este Parlamento, neste momento histórico e grave:
“A democracia parlamentar… depois de concedidos poderes, (…) foi, assim, enterrada na Alemanha. A não ser pela prisão dos comunistas e de alguns dos deputados social-democratas, tudo foi feito de forma completamente legal, se bem que acompanhado pelo terror. O Parlamento entregara sua autoridade constitucional a Hitler e, assim, suicidara-se, embora sobrevivesse, como uma recordação, até o fim do Terceiro Reich, servindo esporadicamente como caixa de ressonância para alguns dos estrondosos pronunciamentos de Hitler; seus membros, daí em diante, foram escolhidos pelo Partido Nazista, pois não houve mais eleições de verdade.”
É isto, Sr. Presidente, é isto, Srs. Congressistas, que se está decidindo, neste dia histórico e grave da nação brasileira.
O Sr. Presidente (Moura Andrade) – (Fazendo soar a campainha.) – O Sr. Senador Arthur Virgílio dispõe apenas do tempo necessário para concluir suas considerações. Peço a S.Exa. que use o tempo para conclusão de seu discurso.
O SR. ARTHUR VIRGÍLIO – Vou concluir, Sr. Presidente. Nós estamos, de fato, nesta hora, escrevendo História; nós estamos fazendo História. Cada palavra nossa é uma linha que acrescentamos na História; cada frase poderá ser um capítulo; cada período poderá vir a ser um título da História. Temos uma responsabilidade presente. Temos, por nós e pelos nossos descendentes, uma responsabilidade futura: cada um de nós assume, nesta hora, a responsabilidade pelo papel que está representando dentro da História. Cada um de nós se responsabilize por aquilo que fará, hoje, pelo futuro deste país e de suas instituições livres.
Sr. Presidente, depois de muito conceder, depois de muito recuar, depois de muito abdicar, chegou a hora de este Congresso se impor: chegou a hora de este Congresso ser digno da representação que ele encarna e dizer à nação que se ele cede, que se ele recuou, não cederá nem recuará mais. Nós não exercemos um emprego aqui, Sr. Presidente, mas uma delegação popular. Nós não devemos pensar apenas nos subsídios que nos são pagos (muito bem! palmas), mas na delegação que recebemos dos eleitores, que para cá nos enviaram. E está na hora – permita V.Exa., Sr. Presidente, que eu lembre agora aquela frase dos barões aragoneses que V.Exa. citou na instalação do Congresso, em 1963 – está na hora de ser lembrada essa frase:
“Se se dirigirem a nós pedindo leis justas para o povo, pedindo leis que deem tranquilidade ao povo; se se dirigirem a nós solicitando que cumpramos com o nosso dever, que sejamos fiéis ao juramento que fizemos quando assumimos o nosso mandato: se se dirigirem a nós pedindo isso, apenas isso, nós diremos sim: se não – não! Se se dirigirem a nós pedindo que votemos leis que aperfeiçoem o regime democrático, que apliquem as liberdades e as garantias populares: se dirigirem a nós solicitando isso, diremos sim; se não – não!”
Está na hora de respondermos como os barões aragoneses, Sr. Presidente, com toda a coragem, com toda a renúncia, com todo o espírito público de amor a este país, que não pode continuar mais assim desgraçadamente tutelado, dominado pela prepotência, pela violência e pelo arbítrio.
Se querem degradar-nos perante o mundo, se querem aviltar-nos perante o povo civilizado, implantando a ditadura, que o façam, Sr. Presidente, e assumam a responsabilidade perante a História. Mas que cessem com a farsa, cessem com a impostura dessas leis que são, assim, a legalização da ditadura, votadas por nós.
Arranquemos, pois, a máscara. Que se implante a ditadura, mas não com leis do Congresso Nacional. Que se liquide com a liberdade, mas não com nosso apoio e nosso voto.
O Sr. Presidente (Moura Andrade) – (Fazendo soar a campainha.) – O tempo do orador está terminando. Solicito a S.Exa. que compreenda, e encerre suas considerações.
O SR. ARTHUR VIRGÍLIO – Concluirei, Sr. Presidente.
Que liquidem com o direito que tem o povo brasileiro de ser livre, de ser digno, mas que o façam sem a nossa conivência, sem a nossa participação, sem que este Congresso se diminua, e se agache, para, amanhã, ser fechado com o apoio do povo. Que nos fechem, hoje, mas com o povo que nos assiste ao nosso lado; e não nos fechem amanhã, Sr. Presidente, ingloriamente, com o aplauso do povo brasileiro, como aconteceu em 1937, na implantação do Estado Novo!
(Publicado em 2011, no livro “Perfis Parlamentares nº 59 – Arthur Virgílio Filho”, pela Câmara dos Deputados)