Memória Viva

De volta para o passado de um bairro que não existe mais

Bairro São José, em Aracaju
Postado por Simão Pessoa

Por Rafael Galvão

Foi antes mesmo da pandemia que seu Antônio fechou a Panificadora São Carlos, na esquina da Augusto Maynard com a Vila Cristina. A padaria estava lá havia pouco mais de 40 anos, seu Antônio já tinha passado dos 85, estava na hora de descansar. Era lá que, quando eu ia tomar uma ou duas cervejas sozinho num começo de noite, eventualmente me serviam em copo de extrato de tomate.

Mais um pedaço do São José se foi naquele dia.

De uns tempos para cá a Panificadora São Carlos parecia ser um dos últimos resquícios de um bairro que já representou talvez o melhor microcosmo da cidade, a mistura que condensou em uns tantos quarteirões a cidadezinha nova, acanhada e pretensiosa que Aracaju foi um dia.

Alguns anos atrás, com os clientes tradicionais afastados pela infinidade de clínicas que se instalam nas redondezas como moscas e reconstroem as casas antigas, grandes e pequenas, reuniam-se ali alguns dos últimos bêbados do bairro para um happy hour que, também ele, já tinha se tornado tradicional. Entre eles o senhor que envergava sempre uma camisa do Fluminense, ganhasse ou perdesse; e aquela senhora, tão mirrada e pequena, que não parecia ser capaz de parir os tantos filhos que tinha, e que não abria mão de suas muitas cervejas no fim do expediente; e a moça que a acompanhava valentemente em cada copo, mas que pouco antes da padaria fechar caiu da escada e ficou paraplégica, ainda antes da padaria fechar.

Todos eles servem como lembrete de que o São José foi um dos bairros mais democráticos que já se viu nesta cidade. Ali morava Constâncio Vieira, industrial e engarrafador da Coca-Cola, na Augusto Maynard que ainda hoje é velha elegante, mesmo que dilapidada. Moravam também as lavadeiras da vila na rua General Chaves, as tantas e tantas famílias que se equilibravam entre a pobreza franca e a classe média baixa na Zaqueu Brandão. Morava Veiga na casa mais imponente da Stanley Silveira, com seu muro de estética singular decorado com peças de um finado Dodge Dart, assim como velhos comunistas como o Major Teles, velhos boêmios como Bisuca, e jogadores de futebol como Henágio, que chegou a vestir a camisa 10 do Flamengo nos anos 80.

Morava por ali Célia, moça com problemas mentais — “Lígia, peste!”, ela gritava para a vizinha circunspecta enquanto enfiava o dedo nas partes pudendas e cheirava —; eu a via quando passava férias em Aracaju e ela era grande e gorda e parecia a Madame Min, mas depois de muitos anos eu a vi uma vez e ela era tão pequenininha, tão mirradinha, e em vez de admitir que era o fato de eu ser muito criança que a fazia parecer maior do que era, decidi acreditar que Célia foi minguando, encolhendo, até desaparecer numa tarde de outono.

Célia era vizinha, pulando uma casa, do Amarelinho. Era no Amarelinho que, 45 anos atrás, seu Hunaldo roubava na conta e Perereco batia pontos todos os finais de tarde.

Era um homem magro, alto, com um nariz enorme cravejado e sempre vermelho, um andar meio trôpego e um sorriso triste no rosto. Era elegante, sempre bem vestido dentro do que achava ser elegância — o que significava que lembrava vagamente um bicheiro daqueles anos 70, com sapatos e calça brancos e camisas estampadas de seda e mangas compridas.

Todo dia, religiosamente, por volta das cinco da tarde ele sentava diante de uma mesa do Amarelinho, O Globo a tiracolo. Os meninos ficavam por perto, sabiam que ele iria pedir para comprar cigarros, sempre Carlton, e os deixaria ficar com o troco, imediatamente transformado em balas e doces.

De lambuja eu ainda podia ler a página de quadrinhos — então gigantesca, uma página inteira — do jornal, antes que ele ficasse completamente bêbado e fosse embora aos tropeços, tentando afastar sem sucesso os fantasmas que deviam lhe perseguir havia 40 anos.

O que os meninos não sabiam era que Perereco era veterano da II Guerra. Segundo dona Lígia, ele tinha voltado da Itália “descalibrado”. Parece ter sido um rapaz promissor, inteligente, mas a guerra tinha deixado traumas que ele só conseguia afogar na cachaça. Bom soldado, Perereco se esforçava aplicadamente nesse exercício, e mesmo hoje não serei eu a condená-lo, eu que nem sempre me furto a tentar também afogar fantasmas muito menos assustadores

Essas lembranças, em grande parte, são tudo o que resta do fastígio do São José. Porque já faz uns muitos anos que o bairro vem desaparecendo, perdendo sua identidade. Dia desses foi a vez da casa que meu tio se arrependia de não ter comprado, casa bonita com paredes de vidro amarelado. Resistiu solitária tempo demais, até, mas finalmente desapareceu para dar lugar a um estacionamento de alguma clínica, mais um, atendendo às tantas mazelas de um povo cada vez mais velho e mais doente e mais hipocondríaco.

Talvez o São José, no fundo, nunca tenha sabido muito bem qual o seu lugar no mundo. Não era chique como a Rua da Frente, nem como seria depois a 13 de Julho — enquanto o São José vivia seu auge, se é que teve um, a 13 ainda era uma coleção de casinhas de pescador com telhados de palha. Tampouco foi homogeneamente pobre como o bairro Industrial, mesmo o Grageru ou o Luzia; mas estava na zona sul da cidade ribeirinha que já espichava os olhos em direção à praia, pertinho da Rua da Frente, e era como o irmão remediado, mas mais velho e por isso merecedor de ainda algum respeito. A Augusto Maynard ainda é a rua mais charmosa da cidade, mas eu contei dia desses e com exceção dos seus dois únicos edifícios, há apenas 12 famílias morando nela. O resto é loja, é bar, é clínica, é petshop, é até Associação dos Renais de Sergipe. Apareceu agora uma delicatessen, não sei quanto tempo vai durar.

Na região em volta do Atheneu, aparentemente ocupada a partir dos anos 50, permanecem ainda casas belas que cristalizam um momento de um novo tempo estético na cidade, mas que já ficou para trás há muitas décadas. É de se imaginar que tenham pertencido aos filhos dos ricos da Rua da Frente, mas agora também elas estão desaparecendo. Uma a uma, vão dando lugar a clínicas e lojas de aspecto funcional, a lógica burra da funcionalidade. Parte grande delas já está desocupada, vítimas imóveis de inventários que se arrastam por ódio entre irmãos ou porque nenhum deles precisa de dinheiro, e mais cedo ou mais tarde serão demolidas, ou então descaracterizadas até ultrapassarem o limite da infâmia.

Essas casas são lembranças de que em algum tempo o São José tentou se modernizar e se dar ares de chique. O Caga-em-Pé, se alguém perguntar, hoje é parte da 13 de Julho, bairro esnobe que finge que o grande esgoto que corre à sua frente ainda é um rio, e faz questão de não lembrar dos dias em que passava pouco de um grande charco baldio.

Seus limites se diluíram, e agora fica difícil sem recorrer aos arquivos da Prefeitura saber o que é São José, o que é Grageru, Salgado Filho e 13 de Julho. Seu único limite óbvio é a Barão de Maruim — mas esse limite só existe, se é que existe, na letra fria das ordenações urbanas e na memória de uns poucos aracajuanos, porque é cada vez mais difícil dizer o que é centro e o que é São José.

Mas o São José persiste. Senhoras nonagenárias ainda lembram de fulano ou cicrano, alguém pode lhe contar ainda o horror do crime da rua Campos. Senhoras septuagenárias ainda conseguem reconhecer as poucas, cada vez menos casas de sua infância. Mas dia desses foi dona Laís que morreu, e mais um pedaço da memória do bairro se foi com ela.

Se acabou também o Caldo Verde, o antigo bar de seu Nelson na esquina da praça Tobias Barreto com a Itabaianinha; seu Nelson morreu e outro velhinho assumiu o boteco, um dos dois únicos pés sujos autênticos do bairro, rivalizando com o Bico Doce. Noite dessas, faz uns anos já, um senhor relembrava os velhos tempos, o dia em que seu pai recebeu em casa o então candidato a presidente Paulo Maluf.

O pai fora deputado, sei lá qual, a família viu dias de riqueza maior que aqueles que ele parecia viver, mas os tempos pareciam não ter sido bons para eles: naquela noite ele estava limitado a contar vantagens de um tempo passado a velhos como ele, também alijados do poder do estado, mas senhores ainda de suas memórias. O velhinho fechou o bar na pandemia, e agora o lugar vende açaí. Nada simboliza mais a decadência de um lugar decente do que vender açaí.

O São José viu também desaparecem tantos de seus velhos malucos de rua, dos quais sempre teve boa cota. Talvez seja um dos sinais mais tristes da decadência de um bairro; feliz da cidade que sabe quem eles são, porque conservam ainda uma humanidade e uma proximidade o crescimento sempre destrói.

Anos atrás, circulavam pelo bairro pessoas como Capone, sempre maltrapilho e xingando e ameaçando os meninos que o chamavam por esse nome. Os meninos diziam que ele tinha sido um menino muito inteligente que endoideceu de tanto estudar, e não podia haver desculpa melhor para eles gazearem as aulas no Atheneu ou no Patrocínio de São José. Capone, claro, não era seu nome. Dona Sinhá Galvão nunca foi de prestar respeito a quem não o merecia nem de negar o que é seu direito; e quando Capone chegava à sua porta pedindo comida, ela o chamava de seu Humberto. A casa de dona Sinhá hoje é um estacionamento de uma clínica, e com ela desapareceram as mangueiras que davam as melhores e maiores mangas-rosa que alguém poderia experimentar em toda uma existência.

Kikicacau morava perto do Carro Quebrado, moço com problemas de fala mas amor incomparável ao pés femininos. Com pena do rapaz, umas tantas moças deixavam que ele pegasse neles; e Kikicacau ficava lá, sempre arrumado, apenas segurando-os como quem segura um passarinho, beatífico, em paz — normalmente, normalmente; mas às vezes seu olhar se tornava brilhante demais e sua respiração um pouco mais acelerada, e então as moças puxavam o pé grosseiramente, e se o desespero de ver seu sonho escapar de suas mãos o fizesse tentar agarrar-se a ele às vezes lhe davam um chute, e sua tristeza expulsava a lubricidade dos seus olhos.

Felizmente não é por falta de malucos que o São José definha, porque malucos esta cidade ainda produz à mancheia. Rogério hoje vaga pelas ruas do bairro, recitando sempre sua interminável litania de bons votos para quem se deixa ouvir o que ele tem a dizer. Dentes em péssimo estado, ultimamente segurando sempre uma bandeira do Brasil, diz que já foi perigoso, um homem mau metido com coisa ruim, mas hoje seu único problema é “o vício”. Rogério é guardador de carros. Seu estado mental se deteriora a cada dia, como o São José. Andou uns tempos preso, violação de condicional, e quando voltou outro sujeito tinha ocupado o seu ponto; magnânimo, o usurpador lhe disse que ele podia ficar num ponto mais afastado, e nos dias que se seguiram Rogério estava revoltado, como é que se faz isso com um cidadão, como é que se tira o seu trabalho?, ele me perguntava. E eu não tinha o que responder.

Pelos arredores da praça Tobias Barreto circula Fábio. Fábio é esquizofrênico, e grita consigo mesmo, dá socos na própria cabeça, xinga aqueles que passam. Um amigo meu é “estuprador”. Outra amiga, “prostituta”. Eu dei sorte, sou só “o mais fodido” — “…E o mais fodido é você! O mais fodido é você!” Fábio xinga, assusta, mas não agride ninguém. Parece ser dos poucos a não ter medo do meu cachorro, que não gosta quando ele se aproxima. E se a lua não míngua Fábio é um rapaz civilizado, e diz que o pastor alemão é Deus na Terra, e lembra com carinho que foi um pastor que o prendeu uma vez porque ele tinha pulado o muro de uma casa para dormir. Suas diatribes misturam sexo e religião, e ele tantas vezes é Deus condenando fornicadores e ladrões e assassinos — e talvez, quem sabe, também os mais fodidos. Fábio acende fogueiras nos pés das árvores e toma banho completamente nu no lago da praça, sob o olhar indiferente da estátua de Tobias Barreto, mas a água suja nunca consegue limpar seus demônios.

Conta a lenda que Fábio era trabalhador de uma grande estatal, mas a noiva o traiu e ele endoideceu, e a gente sabe que o amor transformado em dor é tão pior que o que se transforma em ódio, e é tão melhor contar isso do que falar de esquizofrenia. De vez em quando a sua família surge do nada, e o leva para fazer prova de vida no INSS. Dizem que sua pensão é muito alta. Fábio, pelo visto, mesmo louco ainda sustenta a família, que não cuida dele.

Escrevo tudo isso porque a senhora mirrada e pequena que tomava suas cervejas na padaria de seu Antônio e ia para casa deixando o xixi correr pelas calças morreu há alguns dias.

No lugar da padaria, já há alguns meses, funciona um bar muito frequentado — não por ela, obviamente, que uma senhora tem que se dar ao respeito. O bar é sucesso absoluto de terça a domingo, sempre cheio de gente, cheio de luz, cheio de barulho. Fui tomar uma cerveja lá dia desses. Não me serviram em copo de extrato de tomate. Não, não, este não é mais um lugar para cavalheiros como eu.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

Leave a Comment