Memória Viva

Nássara, Samuel Wainer e Última Hora

Postado por Simão Pessoa

Por Isabel Lustosa

Nássara acompanhou a melhor fase da imprensa carioca. Durante a década de 1930 esteve em Crítica, Carioca, Vamos Ler e A Noite. Nássara esteve com Samuel Wainer nas duas fases da Diretrizes, revista e jornal. Na década de 1950 esteve entre os que compuseram a primeira equipe da Última Hora.

“Eu conheci o Samuel Wainer bem antes d’A Última Hora. Ele tinha aquela revista Diretrizes, e eu ajudava – por causa do Otávio Malta. Bom jornalista, o Otávio Malta, era o braço direito do Samuel, um sujeito formidável. Na Diretrizes, eu resolvi inovar, mudando a tipografia e fiz um negócio para fazer manchetes com tipos desenhados: mandei um rapaz que eu conhecia, ótimo, especialista em letras, fazer clichês das letras. Para as vogais, 10 de cada, porque é o que você usa mais. Ficava um jornal mais bonito, diferente dos outros.”

Diretrizes foi fundada em abril de 1938 com o propósito de ser uma revista mensal de política, economia e cultura. Samuel Wainer, então com 26 anos, tinha como sócio Azevedo Amaral, famoso editorialista da época. Apesar da sociedade com um prócer do pensamento autoritário como era Azevedo Amaral, Diretrizes, surgida em pleno Estado Novo, tinha nítida orientação antifacista que se acentuaria ainda mais depois do fracassado golpe integralista de maio de 1938. Do corpo de redatores faziam parte, além de Otávio Malta: Rubem Braga, Osório Borba, Álvaro Moreira, Francisco de Assis Barbosa, Genolino Amado, Joel Silveira, Emil Farht e Carlos Lacerda. Diretrizes inovou a reportagem política, abordando assuntos proibidos e sobreviveu até 1944, ”com esforço curiosos, muita malícia e alguma ousadia”, diz Nelson Werneck Sodré, quando foi fechada pelo governo.

Durante a primeira metade da década de 1940, Nássara ocupou, com seu texto e seu traço, duas páginas em cores na revista o Cruzeiro, a maior que se publicava no Brasil de então. Isso num tempo em que o Cruzeiro era impressa em papel couchê. Por meio de usas colaborações em o Cruzeiro, Nássara revelou-se, ao lado de J. Carlos, um dos mais atentos observadores do desenrolar da Segunda Grande Guerra Mundial. Os ditadores, como os desenhados por J. Carlos, Mussolini, Hitler, e o próprio Vargas, saíam mais simpáticos do seu traço. Era o cacoete da caricatura brasileira, a vocação mais acentuada para o humor do que para a sátira. Nássara herdara de J. Carlos e da geração anterior a Guevara, aquele estilo mais ameno de humor. Se seu traço é anguloso, quebrado, muito estilizado, seu desenho não tem a agressividade de Guevara. Seu texto, a forma tratar os caricaturados, o uso de versos nas legendas, uma tradição do século XIX que também aparecia em J. Carlos, colocam a arte de Nássara muito mais em sintonia com a deste último.

O espaço que Nássara ganhara em o Cruzeiro era uma glória para quem já passara por tantos lugares e trabalhara exclusivamente como caricaturista em apenas cinco deles: o Cruzeiro, a Careta, Carioca, Vamos Ler e a Noite. Sem falar, é claro, na fase final de sua longuíssima trajetória, quando atuou em O Pasquim. Mas Nássara tinta orgulho do ofício de paginador, atividade em que era um craque. Sempre foi contratado como “técnico de paginação”, pois a caricatura não era reconhecida como atividade profissional. Tomara contato com aquele ofício desde aquele primeiro encontro com Euricles de Matos em o Globo e se tornara mestre no ofício durante o período em que trabalhou na crítica.

“Foi lá que eu comecei, realmente, a minha vida (no sentido mesmo de princípio, desde o zero grau, não é?). Lá aprendi a coisa mais importante: paginar. De retocador de fotografia, passei a tratar também de paginação. Naquele tempo não havia diagramação. A diagramação não exige trabalho mental, é só marcar. Mas paginar já exige um pouco de imaginação, você sempre tem que descobrir um processo de modificar a primeira página: às vezes, é uma caricatura, às vezes, é uma foto grande, um negativo. Naquele tempo não havia nem o papel pautado de hoje em que é feito o esboço. Eu pegava aquelas folhas de papel do tamanho da página e a minha obrigação era puxar as colunas a lápis, para que essas páginas, fossem entregues ao Guevara (por intermédio do Danton Jobim, porque o Guevara já não ia mais lá), para que ele esboçasse o panorama artístico, digamos assim, da primeira página. Chegava lá, fazia umas dez ou quinze e pronto não tomava mais conhecimento da coisa e ficava esperando fotografia para retocar. Inventei lá uma porção de coisas. Bolei muitos truques fotográficos.”

Em 12 de junho de 1951, aparecia Última Hora, o jornal de Samuel Wainer. Última Hora contava com o total apoio do presidente Getúlio Vagas, de quem Wainer se aproximara quando este estivera no exílio de São Borja. O apoio era tão explícito que Vargas figurava como editorialista no primeiro número. Apoio que se concretizava também por meio de facilidades de crédito, o que provocaria a violenta campanha que se faria depois contra Última Hora e contra Samuel Wainer, pessoalmente.

“Eu sou fundador d’A Última Hora. Eu estava desempregado e encontrei com o Chico Barbosa na rua: Nássara, vem cá! Olha, vai abrir um grande jornal. É do Samuel. – Poxa, o Samuel, eu ajudei ele na revista, na Diretrizes. – Pois é eu vou para lá. Aparece lá. Ia ser na Praça XI, onde foi o antigo Diário Carioca. O Guevara era o dono do negócio, porque ele é que estava fazendo o planejamento geral d’A Última Hora. E ele me viu, me tratou assim… aquela importância, não é? De fato, tinha que ser assim mesmo porque no tempo d’A Crítica eu era um joão-ninguém, era suplente de reserva de praticante de qualquer coisa. (ri) Não era nada mesmo. Mas naquele momento eu já usava calça comprida mesmo, como se diz na gíria, não é? Saí fora mas falei para o Chico. Ele me disse: O Samuel mandou um recado. Disse para você pensar numa coisa qualquer de caricatura. Eu aí pensei em retrato psicográficos, que era uma espécie de soma: botava dinheiro mais jogo igual a Ademar de Barros. Eu levei os desenhos e mostrei: Olha, Samuel, eu vou fazer isso. É uma por dia. Levei logo umas dez. O Guevara botou na quarta página. Eu não falei nada. Passa-se o tempo, eu já estou fazendo caricatura para página interna também e tal. Estavam me pagando bem. Eu fiquei com 15 contos que, em 1950, era um ordenado razoável.”

Última Hora teve papel transformador na história da imprensa brasileira, inaugurando novos padrões gráficos e jornalísticos. A partir de setembro de 1951, Otávio Malta assumiu a função de editor-geral. Após o carnaval de 1952, Última Hora já ultrapassava os 100 mil exemplares vendidos diariamente. Número que subia para 150 mil às segundas-feiras. Em 18 de março de 1952 surgia a Última Hora de São Paulo e, no começo dos anos 60, Última Hora também se publicava em Curitiba, Porto Alegre, Niterói, Belo Horizonte e Recife.

“O Guevara fez um grande serviço, porque levou uma turma de profissionais de primeira qualidade. Essa foi a vitória d’A Última Hora: o aspecto gráfico com que ela apareceu diante do público. Era um grupo muito grande, bom, dos melhores da Argentina. Porque o pessoal na Argentina já estava um passo adiante na técnica de jornal. Aí é que começou, no Brasil, a diagramação propriamente dita. A turma era de primeira. Depois ficou o Xavierzinho. Aquele Xavierzinho, pequenininho, que fazia aquele jornal da ABI. Bom diagramador.”

Mas nem tudo é elogio para o sensacional projeto gráfico de Última hora. Dizia o Nássara, e fazia questão de demostrar rabiscando no papel, que uma das novidades era a localização do nome do jornal no meio da página, ao invés de ser no alto como todos os outros.

“O Guevara fez um negócio aceitável para uma revista, mas que em jornal está provado que não dá certo: ele fez um planejamento, um croqui da primeira página do jornal, uns três dias antes do jornal sair. Estava bonito: manchetinha, manchete, título, foto… tudo colado acima da dobra. Ele botou o título logo acima da dobra. Estava resolvido e o jornal sairia no dia seguinte. Mas na véspera do dia em que o jornal ia sair, houve um desastre na Central e apareceu uma fotografia maravilhosa que ocupou praticamente o alto do jornal e o título, que ele tinha botado lá em cima, desceu para debaixo da dobra. Era um problema porque os jornais são expostos nas bancas e vendidos pelos jornaleiros dobrados…”

Nássara colaborou tanto na Última Hora do Rio quanto na de São Paulo, ficando no jornal de Samuel Wainer entre 1950 e 1953. Depois, passou a desenhar exclusivamente para Flan, um semanário da Última Hora do qual circularam 36 números. “Ia uma vez por semana. Era uma sopa”. Flan surgiu em abril de 1953 e desapareceu em dezembro

Durante o ano de 1952, ele fazia uma página semanal, “Viaje pelo mundo sem sair de casa”, alternando com Augusto Rodrigues. Uma vez publicou uma caricatura da rainha Vitória que, considerada ofensiva ao Reino Unido, provocou uma carta de protesto do embaixador da Inglaterra. “Ali mesmo no jornal foi aberta uma subscrição para que eu pudesse comprar uma frota de submarinos para enfrentar a poderosa esquadra inglesa”.

“Eu comecei a observar negócio: eu ia à oficina e via a ‘ficada’, aquilo que não é publicado, por falta de espaço. Naquele tempo isso era comum. Ficava nas estantes. Quer dizer, dava um trabalho fantástico para a oficina e, no fim, era publicado só dez por cento do que era enviado, porque o Guevara tinha feito um jornal compacto, de um caderno só.

E aí eu fui procurar pelo Samuel. Eu soube que o Guevara tinha levado, naquele tempo, 300 contos. Eu disse: Olha, eu tenho uma saída para isso. Mas quero 70 contos para fazer. Que era o que eu tinha que dar para esse apartamento [onde morou até morrer na rua Belisário Távora, em Laranjeiras]. E mais: você me dá uma parte antes, depois eu te dou as bonecas. Eu não disse o que era. Então, eu pedi uma semana de prazo para prepara as bonecas, colar e tal.

Era um segundo caderno. Para dividir melhor, botava nesse segundo caderno: teatro, rádio, quer dizer, toda essa parte delicada do jornal, que chamava, não é? As frescuras do jornal. Botei título novo, título grande. Não teve nem dúvida. Quando ele viu – eu fui com ele no restaurante do aeroporto, só nós dois. Ele achou: poxa, você tem toda razão. Guevara errou. Não precisava fazer um caderno só. Pode ter até dez. E acabou tendo. Daquele segundo caderno, partiu para um caderno especial de esportes… o que eles fazem até hoje. O negócio foi escalonado. Recebi o dinheiro adiantado e, a partir daí, eu fiquei no segundo caderno com o Echeveria, que era muito meu amigo. E teve uma reunião para apresentar os croquis.

Mas depois o Samuel se chateou comigo. Foi quando eu comecei a pedir dinheiro… aí ele achou que eu estava explorando. De fato, eu nunca fui muito trabalhador mas, de qualquer maneira dei a idéia boa, pô, abri o score. Depois, foi fácil. Porque o negócio é você encontrar, às vezes, uma coisa insignificante. Não brigou comigo, mas eu senti que ele ficou chateado, também porque eu comecei a zombar, não ia: não vou, amanhã eu venho… eu sou culpado, em parte, também.”

De qualquer maneira, apesar da mágoa por não ter sido citado no livro de memórias de Samuel Wainer, organizado por Augusto Nunes, de nunca ter declarado que tinha sido dele a idéia de se fazer o segundo caderno, Nássara reconhece:

“Quando ele lançou o jornal, ficou provado o grande jornalista que era, seu nível profissional. E numa época em que ainda era possível ser amigo do dono.”

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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