Por Aderval Borges
O pastoril é um auto (abreviação de peça dramática popular) natalino muito difundido no Nordeste, geralmente apresentado no período que vai do Natal ao Dia de Reis, em 6 de janeiro. Teve origem europeia, nos dramas litúrgicos apresentados nas igrejas, nos quais se fazia elogio aos personagens do Natal. Chegou ao Brasil trazido pelos jesuítas, por volta do século XVI. Há registros de pastoris em Portugal no ano de 1223. Portanto, trata-se de uma tradição antiquíssima, mais ou menos do mesmo período da poesia trovadoresca, da qual alguns traços ainda resistem no Nordeste.
Sobretudo nos estados de Alagoas e Pernambuco, os autos natalinos, desde a sua introdução, ganharam força na cultura popular, possibilitando ao longo dos séculos o surgimento de dezenas de canções e jogos cênicos de domínio público. Mas incorporaram outras tradições medievais, como o torneio de cavalhadas, no qual duas vertentes pastoris tradicionais – a do cordão Azul e a do cordão Encarnado – simulam competição. As disputas entre os dois lados são, no final, apaziguadas pela angelical pastorinha Diana, que conduz o espetáculo em harmonia. Apesar dessas incorporações todas, que não faziam parte dos antigos autos natalinos europeus, esse tipo de pastoril continua estritamente religioso. Mas vou tratar neste artigo de uma vertente nacional realmente oposta aos autos natalinos importados: o pastoril profano.
No pastoril profano, as pastorinhas não têm nada de angelicais. São mesmo escrachadas, falam palavrões, erguem as saias, mostram as coisas íntimas e soltam palavrões dos mais cabeludos. Também não entoam ladainhas religiosas. Seus cantos estão voltados para as sátiras sociais, sendo o sexo (no seu caráter mais chulo) o carro-chefe de seu humor e alegria. Os apelidos dados a esse tipo de pastoril dizem tudo: “pastoril de ponta-de-rua”, “pastoril escabroso”, “pastoril esculachado”, entre outros.
Nele, as mocinhas dos cordões azul e encarnado foram substituídas por “mulheres-da-vida” – na verdade são cantoras populares que representam as figuras de prostitutas. Com tais referências, evidente que suas funções não se regulam pelo respeito à moral vigente. Todo pastoril profano tem um mestre que rege a apresentação, o qual quase sempre leva antes do nome a alcunha de “velho”. Não por ser necessariamente idoso. “Velho” aqui é sinônimo de sujeito safado, experiente, amoral e sem-vergonha. Qual seja, um sátiro das antigas. Dos vários mestres de pastoris profanos, meu preferido é mesmo o Velho Faceta. Inclusive porque o conheci…
Na primeira metade dos anos 1980 tive o melhor emprego da minha vida: passei quatro anos viajando pelo país como assessor de eventos e repórter dos veículos de uma grande instituição financeira privada. Claro que não trabalhava o tempo todo. Por onde ia sempre sobrava tempo para conhecer as coisas locais e fazer amizades. Tinha amigos por toda parte, inclusive no Recife, onde estive quatro vezes a trabalho. Numa delas, depois de me manguaçar de cachaça e me empaturrar de galinha cabidela, meus amigos de lá, que trabalhavam com teatro, me levaram a uma apresentação do Velho Faceta e seu grupo na periferia da Grande Recife.
O nome de nascimento desse grande mestre farsesco era Constantino Leite Moisakis. Nasceu em 1925, em Carpina (PE) e faleceu em 1986. Quando o vi já era “velho” de verdade. Mas de uma agilidade ímpar e uma capacidade de improviso inesgotável no palco. Suas pastorinhas tinham vozes de menininhas, mas também já não eram jovens. Seu pastoril se chamava Rosa Branca. Moisakis preferia se apresentar em pequenos povoados ou nos bairros de periferia da região metropolitana, onde a população melhor entendia o espírito brincalhão de suas malícias e também melhor correspondia aos seus convites à interatividade.
A apresentação a que assisti foi num pequeno circo. O repertório das canções, sob a ótica dos idiotas politicamente corretos de hoje, era afrontosamente pornográfico. Mas para o público – pessoas de todas as idades, dentre elas pais de família, idosos e muitas crianças – eram apenas brincadeiras jocosas e todos se divertiam à beça com tudo, sem se importar com as inúmeras referências a órgãos genitais e palavrões. As canções eram todas compostas por Moisakis.
Algumas de suas músicas fizeram bastante sucesso, entre elas “É mais embaixo” e “Bacurinha”, que foram gravadas pelo apresentador de TV Chacrinha (Abelardo Barbosa), também pernambucano, e pela cantora Maria Alcina. Taioba é uma planta parente do inhame cuja folha se come refogada ou cozida. Mas no jargão de Faceta era outra coisa. Ouvindo a música “Brinquedinho da taioba”, você logo entende por quê. Mais tarde, “O casamento da filha do Seu Faceta” teve uma versão bastante conhecida feita pelos Os Trapalhões que a chamaram de “Papai, eu quero me casar”.
Em Recife comprei um dos discos de Faceta e, na volta a São Paulo, cometi a asneira de pô-lo para animar a festa de aniversário da minha filha mais velha, que tinha então dois anos. Aquilo que soara tão inocente para as famílias da periferia recifense pegou mal pacas entre as mamães das convidadas da minha filha em São Paulo. Todas acharam que eu estava bêbado. Não estava. Mas fui obrigado a tirar o disco na primeira faixa.
Acredita-se que o pastoril profano surgiu no final do século XIX, como uma estratégia para atrair candidatos à iniciação sexual. Tratava-se, no início, de um show de variedades, no qual as prostitutas eram apresentadas ao público. O lema que sustentava os antigos pastoris profanos, hoje quase extintos, era o ideal revolucionário do prazer e do sexo sem concepção. Na época em que conheci o Pastoril Rosa Branca, de Faceta, eram estes os pastoris profanos mais famosos: Futrica, Cebola, Dengoso, Rabeca, Balalaica, Xaveco, Xumbrega, Mangaba e Barroso – este era irmão de Faceta. Todos levavam os nomes dos seus “velhos” sátiros. Apenas o de Faceta tinha esse nome fantasia de Rosa Branca. Segundo meus amigos pernambucanos, o pastoril de Faceta era o que mantinha as regras originais do pastoril profano.
A apresentação que vi foi atípica, fora da época convencional. O show durou menos de uma hora, pois fazia parte de uma sessão circense que tinha outros números. Disseram que no período convencional, entre o Natal e o Dia de Reis, a apresentação começava às 20h e só terminava de madrugada, quando o público se cansava. E o repertório de músicas era numeroso. Segundo meus anfitriões, nessas ocasiões Faceta ficava “tomado”, ou seja, infernal. Dividia o palco com suas pastorinhas cantando, dançando, provocando as pessoas e contando piadas escabrosas, seguidas de muitos improvisos inconvenientes. A apresentação que vi, embora insólita, foi bastante interativa. Pessoas do público pediam a Faceta para dizer impropérios aos seus conhecidos que estavam presentes. Ele, sempre em tom dos mais maliciosos e debochados, vinha com coisas do tipo: “Sai pra lá, lençol de bixiguento!”, “O que foi, sovaco de aleijado?”, “Te aquieta, pancada na canela!”. E o povo ria que só vendo!
Quase não ficaram registradas imagens de Faceta. As poucas mais conhecidas são as das capas de seus três álbuns em vinil. Seu grupo era formado pelo sanfoneiro Edinaldo Castanha, o zabumbeiro Zeca, o pandeirista Jegue, o triangueiro Ivo e as pastoras Terezinha, Biuzinha, Genilda, Biazinha, Cleides e Séo. Atualmente, o pastoril mais conhecido de Pernambuco é o do Velho Mangaba, personagem criado e vivido pelo ator, músico, compositor, dançarino e palhaço Walmir Chagas, por ele próprio denominado “ilustre membro da comunidade fubânica”.
A seguir, um prospecto redigido pelo próprio Antonio Nóbrega, contando como surgiu seu personagem Tonheta, inspirado no Velho Faceta, e como o grupo se originou:
Estreamos o espetáculo Brincante em março de 1992 no 1º Festival de Teatro de Curitiba. Entre a jornada Dimitri e essa estreia já tinham se passado seis anos. Ao longo desse período fui procurando organizar as ideias do espetáculo que teria como coração a figura de Tonheta, personagem que há muito vinha pulsando e se desenhando dentro de mim.
Vale a pena discorrer um pouco sobre a razão desse nome para o meu personagem. Em Recife, onde, como se diz, nasci e me criei, um Antonio, normalmente, desemboca em Toinho, assim como, em São Paulo, em Toninho. Pois bem, esse Toinho que aqui vos escreve, tinha o hábito de frequentar as apresentações do Pastoril do Velho Faceta, realizadas pelo verão no Janga, localidade praiana pernambucana do litoral norte, a que se chega depois de atravessar toda a cidade de Olinda.
Para quem não conhece, o pastoril é um dos espetáculos populares nordestinos presentes no ciclo natalino, ocorrendo suas apresentações de meados de dezembro até o dia 6 de janeiro, Dia de Reis. De origem portuguesa, é constituído de uma sucessão de pequenos bailados-pantomimas, animados por marchas, loas e cantigas simultaneamente cantadas e dançadas por pastorinhas, que, divididas em dois cordões, o Azul e o Encarnado, louvam o nascimento do menino Jesus e a chegada dos três reis magos.
Pastoril de ponta-de-rua, profano ou de velho são nomes dados à sua versão cômico-profana. Nele, um personagem com o rosto pintado, portando uma bengala retorcida, cheio de gracejos e danças mugangueiras, fazendo-se acompanhar por um conjunto de “pastoras” mais liberais no quesito indumentária e na maneira de dançar, tirando cocos, marchinhas e cançonetas licenciosas, entretém uma variada plateia noite adentro. Foi esse Velho Faceta – segundo uns, Constantino Leite Moisakis e segundo outros, Jonas Francisco Pereira – que durante vários anos acompanhei em andanças e apresentações. E por conta das imitações que dele fazia vez por outra, ganhei o honorável apelido de Tonheta. Está aí, portanto, a genealogia “profunda” do nome do meu estupendo personagem…
Era para um espetáculo de natureza teatral dedicado a ele que há muito tempo eu vinha anotando em cadernos ideias, trechos de obras literárias, histórias cômicas e picarescas, entremeios de espetáculos populares, situações que presenciava, notícias jornalísticas, etc. Uma espécie de caderno-ideário “tonhetânico” geral através do qual eu ia esboçando uma epopeia-bufônica tendo o industrioso Tonheta como o seu herói-bufão. Esse grande armazém de rascunhos seria o ponto de partida para a criação de esquetes, danças, pantomimas, músicas cantadas e tocadas, que dariam corpo ao espetáculo a ele dedicado.
Mas como seria narrada essa epopeia? Qual a forma de apresentá-la? É aí que entram em cena Rosane Almeida, Bráulio Tavares e Romero de Andrade Lima. Rosane já desde o espetáculo “O maracatu misterioso” – com o qual viemos para São Paulo – vinha me ajudando tanto como atriz quanto como conselheira artística geral. Bráulio Tavares eu conhecera em Campina Grande quando, integrando o Quinteto Armorial que por lá se fixara, ia eu semanalmente à cidade para ensaiar ou me apresentar com o grupo. Tínhamos uma enorme afinidade artística, sobretudo no campo do cômico, pois assim como eu tinha criado o meu personagem Tonheta, ele tinha também inventado o seu: Trupizupe, o Raio da Silibrina.
Enquanto o meu tinha como fonte principal de referência o universo dos palhaços presentes nos espetáculos populares – Mateus, velhos de pastoris, emboladores e palhaços circenses –, o dele se referenciava, sobretudo, na rica galeria dos personagens picarescos que inundavam as histórias da literatura de cordel. Romero de Andrade Lima era um artista plástico por quem eu tinha enorme admiração. Numa ocasião seu tio, Ariano Suassuna, mostrou-me uns desenhos e pinturas suas que muito me impressionaram. E foi com essa trinca de ouro que montei o “Brincante”.