Musicoterapia

A repressão policial aos primeiros sambistas

Clementina de Jesus, Pixinguinha e João da Baiana
Postado por Simão Pessoa

“Recebemos a denúncia de que aqui se canta samba.” Com este tipo de aviso a polícia invadia os locais onde aconteciam principalmente manifestações religiosas de negros, prendendo pais e mães-de-santo. A crônica policial registrava as batidas, geralmente com deboche, e apoiava a ação policial, que atingia também os sambistas, já que era hábito cantar samba depois do culto religioso.

O ato de portar um violão era motivo até de prisão, contou o compositor Donga ao pesquisador Hermínio Bello de Carvalho: “O fulano da polícia pegava o outro tocando violão, este sujeito estava perdido. Perdido! Pior que comunista, muito pior. Isto que estou contando é verdade. Não era brincadeira, não. O castigo era seríssimo. O delegado te botava lá umas 24 horas de xadrez”.

O samba corria solto em uma das esquinas da Rua Dona Vicência, no bairro de Oswaldo Cruz, na Zona Norte do Rio, quando o sargento Vésper chegou. De cara fechada, o policial encarou o grupo de rapazes que batucava. “Alô, seus vagabundos! Vou ali embaixo e quando voltar não quero mais ver essa pouca-vergonha aqui. Se ainda tiver samba, eu vou sentar o cacete”, sentenciou.

O episódio, ocorrido na década de 1940, é contado por um dos sambistas reprimidos pelo sargento: Monarco, hoje com 87 anos, compositor portelense, autor de algumas das composições mais bonitas da música brasileira. “Nós éramos discriminados. Vi muito sambista ser preso só porque tinha na mão um pandeiro.”

A batucada só era aceita quando tocada por orquestras em roupagem folclórica, estilizada, nos teatros frequentados pela elite. Já as rodas improvisadas em bares ou nas ruas, onde os sambistas negros e pobres tocavam pandeiro, tamborim e violão, eram vistas pelas autoridades como reunião de desocupados e bandidos. Muitas vezes, os músicos e cantores, vários deles ex-escravos, acabavam levados para a cadeia simplesmente por sambar.

O instrumentista João da Baiana e seu companheiro de trabalho

Surgido no meio dos negros, o ritmo sofreu o mesmo preconceito racial que seus criadores. A imprensa das décadas de 1920 a 1930 tem vários registros de ações da polícia contra os sambistas. Um desses foi João da Baiana, autor de clássicos e considerado por muitos como o introdutor do pandeiro nas rodas de samba. Nos anos 20 e 30, ele foi assíduo frequentador da cadeia.

“Fui preso muitas vezes e não adiantava correr dos policiais. Quando menos se esperava, a cana chegava e ia todo mundo para o xadrez. Tinha um delegado, o Meira Lima, que implicava com as calças largas, luxo que malandro gostava. Levava o preso para Delegacia e lá mandava seu ordenança, um crioulão chamado Cidade Nova, apanhar tesoura, agulha e linha. Cortava a calça verticalmente, diminuindo a largura, e se fosse branca, Cidade Nova costurava com uns pontos enormes de linha preta; se fosse escura, os pontos eram com linha branca e o malandro saía de lá com calça funil alinhavada”, contou João da Baiana ao jornalista Sérgio Cabral, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som.

Juvenal Lopes, o famoso Nanal do Estácio, que foi mestre-sala do Deixa-Falar, conta outra punição, em que os sambistas eram amarrados pela barriga, com uma corda, e pendurados na altura da água no casco do navio D. Pedro II para raspar a ferrugem.

João da Baiana narra outro episódio: “A polícia perseguia a gente. Eu ia tocar pandeiro na festa da Penha e a polícia me tomava o instrumento. Houve uma festa no Morro da Graça, no palacete do (senador) Pinheiro Machado e eu não fui. Pinheiro Machado perguntou então pelo rapaz do pandeiro. Ele se dava com os meus avós, que eram da maçonaria. Irineu Machado, Pinheiro Machado, Marechal Hermes, coronel Costa, todos viviam nas casas das baianas. Pinheiro Machado achou um absurdo e mandou um recado para que eu fosse falar com ele no Senado. E eu fui. Ele então perguntou por que eu não fora à casa dele e respondi que não tinha aparecido porque a polícia havia apreendido o meu pandeiro na festa da Penha. Depois, quis saber se eu tinha brigado e onde se poderia mandar fazer outro pandeiro. Esclareci que só tinha a casa do seu Oscar, o Cavaquinho de Ouro, na Rua da Carioca. Pinheiro pegou um pedaço de papel e escreveu uma ordem para seu Oscar fazer um pandeiro com a seguinte dedicatória: A minha admiração, João da Baiana. Pinheiro Machado”.

Com a descriminalização dos cultos afro-brasileiros, as coisas ficaram mais brandas para os sambistas.

Os Oito Batutas

Os Oito Batutas em sua formação original: Jacob Palmieri, Donga, José Alves Lima, Nélson Alves, Raúl Palmieri, Luiz Pinto da Silva, China e Pixinguinha

Foi em uma “república” de jovens músicos, na Rua Riachuelo, centro do Rio de Janeiro, nos primeiros anos do século passado, que a história começou. Na morada coletiva nasceria o Grupo de Caxangá.

A formação se originou sob a inspiração do nome da toada “Cabôca De Caxangá” e das músicas dos Turunas Pernambucanos e Turunas da Mauricéia, que visitaram o Rio de Janeiro, criando muitos seguidores.

O grupo, já conhecido na cidade e identificado pelos chapelões de palha de aba virada, tinha entre seus fundadores nomes que ficariam famosos. João Pernambuco, Pixinguinha, Caninha, Bonfiglio de Oliveira eram alguns, que receberam adesões importantes como as de Quincas Laranjeira, Lulu Cavaquinho, Vidraça e China, irmão de Pixinguinha.

No carnaval de 1919, o Grupo de Caxangá foi convidado pelo Clube Tenentes do Diabo, uma das grandes sociedades carnavalescas do Rio, para ocupar um coreto ao lado de sua sede durante os três dias.

Foi lá que o gerente do Cine Palais, Isaac Frankel, depois de ouvi-los, fez o convite para apresentações na sala de espera do cinema.

O maestro, flautista, saxofonista, compositor e arranjador Alfredo da Rocha Vianna Filho, mais conhecido como Pixinguinha

Ele queria, porém, um grupo reduzido e, como já conhecia Pixinguinha, pediu-lhe que selecionasse oito integrantes do Caxangá e os batizou como Os Oito Batutas.

Foi o início do grupo que viria a ficar célebre na história da música brasileira e o fim do Grupo de Caxangá, que não suportou a debandada de suas principais estrelas.

A formação original dos Batutas tinha Pixinguinha na flauta, Donga no violão, China, violonista e cantor, Nélson Alves, no cavaquinho, Raúl Palmieri, no violão, Luiz Pinto da Silva, na bandola e no reco-reco, Jacob Palmieri, no pandeiro, e José Alves Lima, no bandolim e ganzá.

A estreia aconteceu em 7 de abril de 1919 e virou assunto em todo o Rio de Janeiro. De Ruy Barbosa e Arnaldo Guinle a operários que passavam na porta do cinema, todos paravam para ouvir os Batutas.

A fórmula do sucesso era simples: até então todos os grupos musicais da cidade tocavam música estrangeira, valsas, mazurcas e xotes.

Eles resolveram inovar e a inovação funcionou como tratamento de choque: chorinhos de Ernesto Nazareth, Joaquim Antônio Callado e de outros autores contemporâneos, que faziam as pessoas suspirarem. Na sequência, lundus, corta-jacas, cateretês e sambas.

O êxito desses músicos, em sua maioria humilde e negra, tocando música brasileira em ambiente de brancos, dividiu opiniões. Na imprensa havia ataques e elogios. Mas com o apoio de Arnaldo Guinle – que financiaria várias viagens do conjunto – e do jornalista Irineu Marinho, dono do jornal A Noite, Os Oito Batutas consolidaram o prestígio.

Eles passaram a se apresentar em vários lugares, como no Teatro São Pedro (hoje João Caetano), onde se encenava a opereta Flor Tapuya. Foram aplaudidos por Alberto e Elizabeth, reis da Bélgica, em visita ao Brasil, e excursionaram por vários estados para pesquisa musical financiada por Guinle.

No carnaval de 1921, o grupo foi a grande atração no desfile do Tenentes do Diabo, cantando em cima de um carro alegórico. Tudo isso chamou a atenção do bailarino brasileiro Duque – Antônio Lopes de Amorim Diniz –, que dançando o maxixe com a francesa Gaby era a sensação de Paris.

Foi Duque que convenceu Arnaldo Guinle a financiar a viagem dos Batutas para uma temporada na capital francesa.

Em 29 de janeiro de 1922, com sete elementos e rebatizado como Les Batutas, um modificado grupo embarcou rumo à Europa, para se apresentar no Dancing Scheherazade, em Paris. As mudanças aconteceram porque os irmãos Palmieri e Luiz Pinto desistiram da viagem. Em seus lugares entraram Sizenando Santos (pandeirista), José Monteiro (cantor e ritmista) e J. Thomaz (ritmista).

Na última hora Thomaz não viajou e assim o grupo virou Les Batutas ou L’Orquestre des Batutas.

Mais uma vez a imprensa se divide, torcendo o nariz por ver o Brasil representado por negros e “música de gentinha”, ou elogiando a oportunidade da Europa conhecer o que se fazia no país em termos de música popular, por intermédio de um grupo extremamente talentoso.

Foram seis meses de sucesso em Paris, onde uma parceria entre Duque e Pixinguinha garantia no mais puro francês: “Nous sommes batutas,/ Batutas, batutas,/ Venus du Brésil/ Lei tout droit / Nous sommes batutas, / Nous faisons tout le monde/ Danser le samba/ Le samba se danse/ Toujours em cadence/ Petit pas par ci/ Petit pas pr lá/ II faut de l’essence/ Beaucoup d’elegance/ Le corps se balance/ Dansant le samba”.

De retorno ao Rio, os Batutas voltaram a ser oito (embora em algumas fotos apareçam nove elementos, sendo o nono o empresário) e desfrutaram da projeção internacional com apresentações no Jockey Club e no Teatro Lírico, na companhia de revista francesa Ba-Ta-Clan, no espetáculo V’la Paris.

Eram o grande destaque musical do país quando embarcaram, em novembro de 1922, para temporada em Buenos Aires.

Novamente modificado – da formação original ficaram Pixinguinha, China, Donga, Nelson Alves e José Alves, e entraram J. Thomaz (bateria), Josué de Barros (violão) e J. Ribas (piano) –, o êxito da Europa se repetiu.

O grupo gravou dez discos na Victor argentina, antes de se desentender, depois do que quatro de seus integrantes retornaram ao Brasil.

Pixinguinha, China, Josué e Ribas tentaram sobreviver com shows no interior do país, mas a penúria foi tão cruel que Josué de Barros teve de bancar o faquir em Rio Cuarto e ser enterrado vivo. Foi salvo pela piedade da mulher do chefe da polícia, que interrompeu a exibição.

Repatriados pela embaixada brasileira, eles voltaram ao Brasil para seguir carreiras independentes, já que Os Oito Batutas – qual trágico tango – “morreram” na Argentina.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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