Musicoterapia

Ala das Baianas, Heitor dos Prazeres e Zé Pilintra

Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres, Gilberto Alves, Alcebíades Barcelos (Bide) e Armando Marçal dando um rolê no bairro Engenho de Dentro
Postado por Simão Pessoa

Nem Dante Alighieri, nas profundas divagações sobre o Inferno, imaginaria uma ala de baianas desfilando na sua “Divina Comédia”. Mas para a grande magia do carnaval nada disso é impossível e nos primórdios das escolas de samba, a primeira delas, a Deixa Falar, desfilava com o enredo “O Inferno de Dante”.

Como o fundador da Escola, Ismael Silva, exigia a presença de baianas, o jeito foi incluí-las – de saias rodadas, turbantes, pulseiras e colares – entre caldeirões, tridentes e diabos na versão carioca da obra do autor italiano.

A importância da Ala das Baianas nas escolas de samba pode ser medida de imediato pelo valor da nota que lhe é atribuída nos desfiles. Com no máximo trinta componentes, tem o mesmo peso da bateria, que muitas vezes tem mais de quatrocentos integrantes. Carregada de simbologia, a ala representa o elo histórico entre o samba e as antigas baianas.

Desde o primeiro momento, no Rio de Janeiro, quando chegou pelas mãos dos migrantes baianos, o samba foi acalentado nos casarões das velhas “tias”, que preservaram os costumes culinários, musicais e visuais (no que diz respeito aos trajes) trazidos junto com suas mudanças.

O desenhista francês Debret, impressionado com as batas, as saias presas na cintura e que não passavam do meio da canela, ornadas com rendas, os colares de ouro ou coral, as pulseiras e os berloques de prata, as pequenas chinelas que mal abrigavam os dedos, deixando livres os calcanhares, fixou as baianas muitas vezes nas telas em que retratou o Brasil.

Edison Carneiro, em seus estudos folcloristas, conta que o aparecimento das baianas em trajes típicos remonta aos grupos africanos que foram traficados para o Brasil. Segundo ele, o turbante é muçulmano, os panos-da-costa e as saias rodadas, sudanesas, e os colares e figas-de-guiné, dão o toque final ao conjunto.

Tais aspectos dão referências históricas à figura da baiana. A ala tem a função de aludir, portanto, às origens afro-baianas do samba, elo tradicional que ainda mantém as escolas de samba unidas a seu cordão umbilical, mesmo com toda a pompa e circunstância que cercam hoje seus luxuosos desfiles.

Não foi sem motivo que Ismael Silva exigiu uma ala de baianas, logo no primeiro desfile de sua Escola de Samba Deixa Falar.

A exigência foi cumprida, transformando-se em tradição e parte intocável do regulamento dos desfiles das escolas até hoje. Certamente uma homenagem às “tias” baianas, pioneiras e protetoras do samba nos seus primórdios.

O sambista e artista plástico Heitor dos Prazeres

“Quiseram me comprar, / Eu não vendi / Uma linda coleção de passarinhos. / Bernardo é o gaturamo, / Aurélio é o rouxinol, / Lino é o canário, / Mano Rubens, curió”.

Paulo da Portela fez o samba “Coleção De Passarinhos”, homenageando seus companheiros, sambistas do primeiro time da época, e identificou como canário um certo Lino do Estácio, chamado também Mano Heitor e que se perpetuaria na história da cultura popular brasileira como Heitor dos Prazeres.

De talento diverso tal qual os nomes que lhe atribuíram, Heitor cedo circulou sua genialidade por vários escalões, em todos se destacando, superdotado que era. Nasceu predestinado a influenciar a cultura popular do país.

Ao contrário dos meninos de sua geração, que optavam pelos instrumentos de percussão, escolheu o cavaquinho e tornou-se instrumentista respeitado, desenvolvendo o líder que seria.

Pelas mãos de Tia Ciata – sempre ela, a matriarca do samba – tem acesso aos festejos de santo e de samba, aulas com os melhores mestres possíveis. Crescido em tamanho e em saber, percebeu que seu destino estava traçado.

Como Lino do Estácio, aprendeu e ensinou samba nas rodas do bairro. Compositor, desde sempre foi cobiçado pelos cantores da época, distribuindo-se entre seus pares do Estácio, e os sambistas de Madureira, da Mangueira.

Na fundação da Deixa Falar, a primeira escola de samba, cita-se obrigatoriamente a presença de Mano Heitor entre os pioneiros. O mesmo acontece quando Cartola inventou a Estação Primeira de Mangueira. E quando Paulo da Portela criou a sua escola azul e branco. Ou ainda, quando o próprio Heitor fundou a De Mim Ninguém Se Lembra.

A radiofonia teve seu quinhão, depois que Heitor trocou as escolas de samba pelos microfones e auditórios. Passou a interpretar composições que antes entregava aos cantores, e criou um grupo vocal, ao qual deu o nome de Heitor e Sua Gente.

Apontou então seu talento para as artes plásticas e se transformou em um dos mais expressivos pintores primitivistas brasileiros.

Era mais uma das facetas da cultura popular que a influência de Mano Lino do Estácio atingia.

Instrumentista, compositor, cantor, líder comunitário, pintor premiado, Heitor dos Prazeres transbordou sua importância na história do samba e se transformou no protótipo do malandro carioca bem-sucedido, uma espécie de Zé Pilintra redivivo com presença garantida na galeria dos bambas. Malandro é malandro, mané é mané.

Na verdade, o malandro de responsa sempre teve lugar de destaque no imaginário popular. Na música, na literatura, nos causos e histórias, repetidos em balcões de bares ou rodas de amigos, o malandro é sempre visto com simpatia, uma ponta de inveja, um herói e anti-herói.

Malandro é bom no baralho, não perde briga, tem a mulher mais bonita, compõe sambas lindos, não trabalha, está sempre bem-vestido, nunca lhe falta dinheiro, é bem-relacionado e se, por rara desgraça, morrer nas mãos de um desafeto, vira notícia de jornal, com direito a fotografia e tudo mais.

A malandragem remonta às rodas de capoeira, comuns na Bahia e no Rio de Janeiro, no século 19. O excedente de mão-de-obra e o ócio criavam o malandro. A diversão era a roda de batucada, a pernada carioca. Cachaça, pernadas e cabeçadas geravam confusões, prisões e proibições.

Aos poucos, o malandro se aprimorou. Terno branco, chapéu panamá, navalha garantindo a integridade e a conversa, muita conversa. Lábia para conquistar mulheres e enganar otários, conseguindo a grana para baralho e vida boa.

Quando não estava fazendo samba, retomava as rodas de pernada, geralmente na Praça Onze, que, no final dos anos 20, era o reduto dos melhores batuqueiros cariocas. Lá se encontravam os bambas do Estácio, Favela, Mangueira, Lapa, Salgueiro e quem mais viesse. Os bons ficavam em pé, os outros caíam, na primeira “banda” que levassem.

A melhor definição musical do malandro foi Bide quem fez, no samba “A Malandragem”, em 1927: “Você diz que é malandro/ Malandro você não é/ Malandro é Seu Abóbora/ Que manobra com a mulher”.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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