Por Luiz Fernando Vianna
Aldir Blanc sai pouco do Rio, da Tijuca (zona norte), do apartamento da rua Garibaldi e até do escritório entulhado de livros e discos que é sua caverna de bruxo. O que a maioria das pessoas conhece dele, portanto, são letras como as de “O Bêbado e A Equilibrista” e “Kid Cavaquinho”.
Mas quem ouvir “Vida Noturna”, CD que chega às lojas nesta semana, poderá vislumbrar um outro Blanc: aquele que desafia sua fama de eremita e, ao lado de amigos antigos e súbitos, canta em bares ou na própria caverna.
O disco não é apenas o primeiro em que Blanc, 59, interpreta todas as faixas – em “Aldir Blanc e Maurício Tapajós” (1984) e “Aldir Blanc 50 Anos” (1996), ele cantava parte delas. Em tempos tão comerciais, nos quais se mercadeja qualquer idéia de felicidade, é um registro raro das sombras de um artista e da vida, por isso noturna.
“É um disco para se ouvir no térreo”, diz Mari de Sá Freire, mulher de Aldir, prevenindo potenciais suicidas e resumindo o clima do CD, composto de boleros e sambas-canções, embalados apenas por violão e piano.
“Há muito tempo eu queria fazer esse disco, com as músicas da madrugada, como eu e Aldir chamamos”, conta o amigo, vizinho e parceiro Moacyr Luz, produtor do CD e principal responsável por convencer o arredio Blanc a enfrentar três dias de estúdio.
Na maioria inéditas, são músicas de várias épocas, dos anos 70 até a mais recente, “Recreio das Meninas 2”, parceria com Luz escrita depois da primeira ida do letrista – “de bengala, tossindo, com febre” – ao Samba do Trabalhador, realizado às segundas-feiras no clube Renascença.
“Essa letra é a cara do Aldir, pela falta de medo de se expor”, diz Luz, referindo-se à fragilidade desbragada de Blanc. “Aos que me gozam no bar / Dizendo que eu sou / O recreio das meninas / Respondo: andorinhas fazem ninho nas ruínas”, diz a canção.
A “cara do Aldir” está espalhada pelas 12 faixas, embora não se possa garantir que o retrato esteja completo. “Tem bastante do que é o Aldir no disco, mas nunca é o suficiente. Para se fazer um retrato dele, precisaria de coisas demais”, brinca João Bosco.
Ele participa com a voz e o violão das novas versões de “Vida Noturna” e “Me dá a Penúltima”, parcerias dos anos 70 que são ótimos exemplos do fragmento boêmio que forma o mosaico Blanc.
Igualmente, outros fragmentos estão mais explícitos nas letras das músicas do CD do que estariam em eventuais frases ditas por Blanc para este texto.
“Ele é o que escreve”, define outro parceiro, Guinga. “Aldir gosta de se isolar, mas não é solitário. Ele tem horror à solidão e quer ter sempre por perto os amigos, os netos. E é um eremita que às vezes foge de casa”, explica.
O Blanc caseiro está no CD: em “Constelação Maior”, sua primeira parceria com Hélio Delmiro, ele parece cantar um triângulo amoroso bem resolvido, mas o “outro”, no caso, é seu labrador, Batuque. “Ele é bonito e a minha garota o recebe em seu leito / Eu mesmo às vezes abro mão do orgulho e com ele me deito”, relata.
Aquele que, pelo contrário, dissolve o lar – ou nem chega a construí-lo – em doses frequentes de álcool e incompreensão está em “Dois Bombons e uma Rosa” (só de Blanc), “Flores de Lapela” (com Maurício Tapajós) e “Dry” (com Luz). “Hoje somente se bebo / O dia seguinte pode me afetar / É que a secura me lembra / Teu jeito de amar”, canta, usando a voz feminina, em “Dry”.
O nostálgico, que já verbalizou a saudade dos avós, da Vila Isabel da infância e dos anos 50 em letras com quaradores e caramanchões, está sutilmente em “Paquetá, Dezembro de 56” e fortemente em “Velhas Ruas” (ambas só dele), homenagem à mãe, Helena. “Quando a cortina estremece / Vê-se a mulher que não esqueço / Correndo as contas de um terço / Por alguém que não lhe merece”, lamenta.
Há o que conversa com a música em “Cordas” (com Guinga), com o tempo no sucesso “Resposta ao Tempo” (com Cristóvão Bastos) e um fundamental em “Lupicínica” (com Jayme Vignoli): o que transforma a vida anônima, suburbana, em mítica.
Ao contar a história de “uma enfermeira com a chama vital de Anna Karenina”, ele ensina: “Heroínas sem par / Podem brotar na Rússia ou lá em Água Santa [subúrbio carioca]”.
“Não sei se o Aldir levou o samba para a literatura ou a literatura para o samba”, diz Bosco. No escritório-caverna do ex-psiquiatra, um cavaquinho repousa à vontade entre milhares de livros.
Foi há quase três anos, em 12 de dezembro de 2002, que João Bosco e Aldir Blanc se reencontraram após mais de 15 anos de afastamento. Gravaram juntos “O Bêbado e a Equilibrista” para o songbook de Bosco e abriram as portas para a retomada da parceria, uma das mais importantes da música brasileira.
Os encontros posteriores ao rompimento – ainda não-explicado de todo, mas que se deu, segundo os dois, pela incompatibilidade dos caminhos profissionais – resultaram até agora em três composições.
A primeira a deixar de ser inédita será “Toma Lá, Dá Cá”, composta em apenas uma noite por encomenda da TV Globo. Será o tema do especial homônimo que irá ao ar em 29 de dezembro.
Antes eles tinham concluído “Mentiras de Verdade”. E, recentemente, Bosco musicou um poema de Blanc, “Sonho de Caramujo”. Da introdução que fez para a gravação de “Me Dá a Penúltima”, Bosco ainda criou outra melodia para o parceiro letrar.
A idéia é reunir essas novidades e outras que a dupla planeja fazer ao lado de Francisco Bosco – letrista, filho de João e afilhado de Blanc – em um CD.
“Gostaria de ver isso [o projeto do disco] resolvido já no início do ano [2006]”, anseia Bosco, garantindo que o tempo não enferrujou a afinidade profissional nem emocional da parceria.
“Não sentimos o peso da ausência. Nosso reencontro foi como se tivéssemos nos visto na semana anterior. Tudo fluiu. Não dá para explicar a nossa relação no mundo em que a gente vive”, completa ele, quase místico.
(Publicado no jornal FSP em 29.11.2005. Aldir Blanc faleceu no dia 04.05.2020, por complicações causadas pela covid-19)