Musicoterapia

Despindo Ellington para vestir Strayhorn

Duke Ellington e Billy Strayhorn na labuta
Postado por Simão Pessoa

Por Ruy Castro

Estamos em novembro de 1996. Os estudiosos do grande planeta chamado Duke Ellington não querem esperar pelo ano que vem, quando se completam trinta anos da morte de Billy Strayhorn, o gêmeo musical e principal colaborador do maestro. Strayhorn morreu em 31 de maio de 1967, aos 51 anos, mas a avalanche de artigos, discos e livros a seu respeito já começou nos Estados Unidos e na Europa. Um dos livros é “Lush life: A biography of Billy Strayhorn”, por Davis Hajdu, uma biografia revisionista que, com enorme audácia, pretende demonstrar que muito do que se atribuiu exclusivamente a Ellington teria sido, na verdade, criação de Strayhorn. Não, você não leu errado. Há quem ouse causar convulsões no templo, despindo um santo para vestir outro – coisa melindrosa de se fazer quando os dois santos têm uma aura tão à prova de arranhões.

Ellington conheceu Strayhorn em 1939, quando este tinha 24 anos e, com toda a sua timidez, dirigiu-se a Duke dizendo que queria escrever arranjos para sua orquestra. Até aquele dia, o mundo nunca ouviria falar de Billy Strayhorn. Duke pediu-lhe que mostrasse alguma coisa. Billy foi ao piano e tocou sua primeira composição: nada menos que “Lush life” – música e letra de sua autoria. Duke deu-lhe o emprego no ato. Mas, se pensava estar contratando apenas um arranjador, não demorou a descobrir que Strayhorn era muito melhor que a encomenda. Nos poucos anos seguintes, Billy presentearia Duke com um punhado de temas imortais, como “Chelsea bridge”, “Something to live for”, “Day dream”, “Just a-sittin’, and a-rockin’” e, em 1941, com o próprio tema da orquestra: “Take the ‘A’ train”.

Nos quase trinta anos em trabalharam juntos, Ellington e Strayhorn fundiram-se musicalmente de tal forma que até seus músicos tinham dificuldade em distinguir quem escrevera este tema ou aquele arranjo. Seus temperamentos melódicos, harmônicos e rítmicos eram idênticos. Mas como podia ser isso se Duke, dezesseis anos mais velho, já tinha uma obra fenomenal quando Billy entrou para a orquestra? Simples: Strayhorn já absorvera todo o Ellington antes de conhecê-lo; e Ellington, por sua vez, foi absorvendo as contribuições pessoalíssimas de Strayhorn à medida que elas aconteciam – como fazia, aliás, com as de seus outros músicos. Só que esse amálgama se deu de maneira tão progressiva e sutil que muitos leigos nunca chegaram a percebê-lo. Para estes, só Duke Ellington existiu – muitos nunca ouviram falar em Billy Strayhorn.

Eles podiam ser como gêmeos, mas só na música. As personalidades eram opostas: Duke era exuberante, seguro de si e mulherengo; à sua passagem, portas se abriam, tapetes se estendiam, mulheres se atiravam no seu colo. Já Billy era retraído, inseguro, tinha problemas com a bebida e sofria por ser negro e homossexual. Duke tentou “recuperá-lo”, insistindo em que ele namorasse a cantora Lena Horne, considerada a mulher mais bonita de seu tempo –, mas só conseguiu que Billy e Lena cimentassem uma amizade na qual, depois, nem Ellington conseguiria se imiscuir.

Os novos exegetas de Strayhorn insinuam que Duke escondeu e anulou Billy, como teria feito com seu filho Mercer, o qual – este, sim – nunca superou a condição de “filho de Duke Ellington”. Mas as provas não são convincentes: há inúmeros relatos sobre Duke trazendo Billy ao palco nas apresentações da orquestra, sem contar as muitas referências a ele em entrevistas e artigos. Aconteceu apenas que Duke era o dono da orquestra, o nome que piscava nos luminosos. Natural que o grande público o conhecesse e ignorasse seus músicos.

A grande discussão, no entanto, é se Ellington se aproveitou das ideias de Billy Strayhorn. Sem Demétrio para Duke, a resposta é sim. Aproveitou-se também das ideias dos trompetistas Bubber Miley e Cootie Williams, dos trombonistas “Tricky Sam” Nanton e Juan Tizol, dos saxofonistas Johnny Hodges e Bem Webster, do contrabaixista Jimmy Blanton e de muitos outros que passaram por sua orquestra. Duke compunha os temas; esses eram enriquecidos pelas improvisações de seus homens; e essas improvisações eram incorporadas aos arranjos e, finalmente, às próprias composições. E não seria isto uma apropriação indébita? Não: esse processo (aliás, inerente ao jazz) se passava também com as composições de Strayhorn. Além disso, tudo que se criou dentro da orquestra de Duke Ellington teve um principal inspirador – Duke Ellington. Por maiores que fossem os seus músicos, nenhum deles, exceto Webster, sobreviveu por muito tempo fora da orquestra. Não admira que pertencessem a ela durante décadas.

A contribuição de Billy Strayhorn à orquestra de Duke Ellington foi patente, como arranjador, letrista, organizador, co-líder e compositor. Estima-se que Strayhorn tenha composto pelo menos um tema por semana nos 28 anos em que durou sua parceira. Só isso equivaleria a cerca de 1400 composições. Um número respeitável, mas só se não for comparado ao que se atribui a Ellington em toda a sua vida: mais de 6 mil!

Fizeram centenas de composições em dupla, entre as quais as peças mais ambiciosas, como A drum is a woman, a adaptação da Quebra-nozes, de Tchaikovsky, a Far East suíte e outras. E quem fez o quê? Talvez seja impossível apurar. Mas há material de sobra, assinado apenas por Strayhorn, para incluí-lo entre os grandes do século – ou como o melhor Duke Ellington alternativo que já existiu.

(Texto publicado no jornal OESP em 24 de novembro de 1996 e depois incluído no livro “Tempestade de Ritmos”, da Editora Companhia das Letras)

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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