Musicoterapia

Galeria dos Bambas: Candeia

Candeia, na cadeira de roda, junto com Martinho da Vila, no pandeiro
Postado por Simão Pessoa

Filho do tipógrafo Antônio Candeia e de dona Maria, Antônio Candeia Filho, mais conhecido como Candeia, nasceu no dia 17 de agosto de 1935, no Rio de Janeiro. Sambista e boêmio, seu pai tocava flauta em rodas de choro e samba na década de 1930 e é considerado o idealizador das Comissões de Frente das escolas de samba.

Tanto sua casa quanto a de dona Ester, ambas localizadas no bairro de Oswaldo Cruz, eram frequentadas assiduamente por sambistas, como Paulo da Portela, João da Gente, Dino do Violão, Claudionor Cruz, Zé da Zilda, Cumpadi Cambé, Zé da Fome e Luperce Miranda. Dessas reuniões, acabou nascendo um bloco carnavalesco que teve vários nomes até chegar a “Bloco Vai Como Pode”.

Filho de sambista, o menino Candeia até poderia guardar mágoa do samba. Em seus aniversários, ele contava com certa tristeza, não havia bolo, velinha, essas coisas de criança. A festa era mesmo com feijoada, limão, cachaça e muito partido-alto. No Natal, a situação se repetia. A grande onda do seu pai era passar os domingos e feriados cantando com os amigos debaixo das amendoeiras do bairro de Oswaldo Cruz.

Desde os seis anos, Candeia frequentava esses encontros e, mais tarde, também participava das rodas musicais. Ainda jovem, aprendeu violão e cavaquinho, começou a jogar capoeira e participar de “giras” em terreiros de candomblé. Estava se forjando ali o líder que mais tarde seria um dos maiores defensores da cultura afro-brasileira. Arte negra era com ele mesmo. Como integrante da escola de samba Vai Como Pode, ele participou do núcleo original de sambistas que fundou a Portela.

Em 1953, Candeia compôs seu primeiro samba para a Portela, “Seis Datas Magnas”, em parceria com Altair Marinho, o “Altair Prego”. Foi quando a Portela realizou a façanha inédita de obter nota máxima em todos os quesitos do desfile (total 400 pontos).

Ele venceu outras quatro seletivas de samba da Portela: “Festas Juninas em Fevereiro” (1955) e “Legados de Dom João VI” (1957), ambos em parceria com Waldir 59, e “Rio, Capital Eterna do Samba” e “Histórias e Tradições do Rio Quatrocentão”.

No início da década de 1960, Candeia ingressou na Polícia Civil, assumindo o cargo de investigador. Ganhou fama como policial enérgico e truculento, principalmente com prostitutas e malandros, e chegou mesmo a receber vários prêmios por sua atuação na corporação. Certa vez, em uma sinuca, chegou a pedir documentos a um certo rapaz que mais tarde seria conhecido como Paulinho da Viola.

Inspirado pelo grupo A Voz do Morro, Candeia cria o Mensageiros do Samba, com Casquinha, Arlindo, David do Pandeiro, João do Violão, Picolino e Bubu da Portela, com quem faz apresentações no Bar Zicartola, e participa, em 1966, do disco “A Vez do Morro”.

No entanto, sua carreira como policial terminou de modo trágico no dia 13 de dezembro de 1965. Ao abordar um caminhão durante uma batida de trânsito e ter esvaziado o revólver nas rodas do veículo, acabou sendo surpreendido pelo motorista que lhe desferiu cinco tiros. Um deles alojou-se na medula óssea e o deixaria sem o movimento das pernas. Diz-se que na noite anterior ele havia esbofeteado uma prostituta e ela rogou-lhe uma praga. Deu no que deu.

Paraplégico pelo resto da vida, Candeia foi obrigado a se aposentar por invalidez e passou a se locomover em cadeira de roda. A limitação física o levou a mergulhar em uma profunda depressão. Sua vida e sua obra se transformaram completamente. Em seus sambas, podemos assistir seu doloroso e sereno diálogo com a deficiência e com a morte pressentida: “Pintura sem Arte”, “Peso dos Anos”, “Anjo Moreno” e “Eterna Paz” são só alguns exemplos. Recolheu-se em sua casa. Não recebia praticamente ninguém. Foi um custo para os amigos como Martinho da Vila e Bibi Ferreira trazerem-no de volta para a ribalta.

Ao mesmo tempo, Candeia pôde se dedicar exclusivamente ao samba, que passaria por profundas mudanças. Segundo pessoas próximas, ele se tornou mais sensível, equilibrado e liberto, corrigindo seu caráter e enriquecendo sua obra como sambista, que atingiria maturidade de caráter lírico e social, mostrando um homem amargurado, mas que tentará resistir.

Muitas de suas letras procurariam discutir sua nova condição, tendo no compor e cantar do samba o sentido e o significado de sua vida. Simultaneamente, ele se dedicou a retomar o legado de seu pai dos tempos de Oswaldo Cruz. Isso contribuiu para que o sambista começasse a resgatar sua autoestima. O couro voltou a comer nos pagodes do fundo de quintal de Candeia que comandava tudo de seu trono de rei, a cadeira que nunca mais abandonaria.

Em 1970, ele teve seu primeiro disco como intérprete lançado pela gravadora Equipe. O LP “Candeia”, cuja capa fazia um jogo com as palavras autêntico, samba, original, melodia, portela, brasil e poesia que formavam o nome do sambista, continha doze canções de sua autoria, entre elas “Dia da Graça”, considerado um dos grandes sambas do compositor e feito em homenagem à Portela.

No ano seguinte, foi lançado seu segundo LP, intitulado “Raiz” pela gravadora Equipe, que trouxe o samba “De Qualquer Maneira”, outro clássico do samba, cuja letra cria uma imagem figurativa da cadeira de rodas de Candeia à de um rei em seu trono.

Em 1975, Candeia concluiu seu terceiro LP individual, “Samba de Roda”, lançado pela Tapecar. Também naquele ano, participou da gravação do LP “Partido em 5”, o primeiro de uma série de três volumes dedicados ao partido-alto, estilo que se tornou uma das bandeiras do sambista.

Entre 1973 a 1976, Candeia foi um dos personagens do documentário homônimo de Leon Hirszman sobre o subgênero conhecido pela improvisação.

Também em 1975, Candeia lançou um manifesto crítico aos rumos que a Portela vinha tomando no carnaval, com críticas severas e transparentes a direção, gigantismo, fantasias, alegorias, samba de enredo, destaques, participação de componentes e posição externa.

Apesar do tom duro, o sambista apresentou propostas claras, radicais, elaboradas e sem meandros, que no seu entender evitaria que a escola não perdesse de vista seus objetivos iniciais. No entanto, elas jamais foram discutidas pela direção da escola de Oswaldo Cruz.

Com isso, em dezembro daquele ano, Candeia e outros sambistas e compositores, como Nei Lopes e Wilson Moreira, fundaram o Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo, que se propunha a ser uma agremiação carnavalesca diferente, enfatizando principalmente a identidade cultural afro-brasileira.

Na mesma época compõe dois de seus maiores sucessos, o samba “O Mar Serenou” (1975) – regravado por Milton Banana Trio, e depois por Clara Nunes – e o samba-canção “Preciso Me Encontrar”, gravado por Cartola em 1976, e posteriormente por Marisa Monte e Ney Matogrosso, entre outros.

Em 1977, Candeia participou do álbum “Quatro grandes do samba”, que contava também com Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Elton Medeiros. Também naquele ano, assinou com a gravadora estrangeira WEA, que era mais conhecida no mercado fonográfico por ser voltada a música dos Estados Unidos, fato que gerava críticas a Candeia. O sambista, no entanto, rebatia seus críticos, afirmando que jamais pensou em fazer concessões ao selo.

A WEA lançou “Luz da inspiração”, onde Candeia trabalhou suas reflexões sobre a identidade cultural do negro brasileiro após a abolição.

Ainda em 1977, ele começou a escrever o livro “Escola de Samba: A Árvore que Esqueceu a Raiz”. Candeia pretendia escrever o livro com Paulinho da Viola, mas por falta de tempo do cantor, a obra foi escrita junto com Isnard de Araújo, devido à sua participação na criação do projeto Museu Histórico da Portela.

Inicialmente proposto como um levantamento histórico da escola de samba, aproveitando depoimentos de integrantes da Velha Guarda portelense, o livro aprofundou as ideias de como uma escola de samba deveria se portar, como símbolo de arte e resistência negra.

Com problemas nos rins decorrentes da sua paralisia, Candeia foi internado, mas se recusou a continuar o tratamento, alegando que não tinha tempo. Em 1978, seu livro foi finalmente lançado, sendo bem recebido pelos críticos.

Ele também conseguiu finalizar a gravação de “Axé – Gente amiga do samba”, o seu quinto e último álbum, considerado um dos mais importantes discos da história do samba. Mas o sambista não viveria para ver seu lançamento.

Em 14 de novembro daquele ano, ele teve uma crise aguda que o levou ao coma. O sambista foi internado no Hospital Cardoso Fontes, em Jacarepaguá. Seu estado piorou dois dias depois e Candeia morreu na manhã daquela quinta-feira por conta da infecção renal. Poucos dias depois, a WEA lançou o disco.

De acordo com o crítico musical Mauro Ferreira, “tal qual Zumbi dos Palmares, Candeia era o Zumbi dos terreiros cariocas, desbravando caminhos e lutou para manter erguida a bandeira dos partidos mais altos e do orgulho negro.”

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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