Musicoterapia

Galeria dos Bambas: Cartola

Postado por Simão Pessoa

Angenor de Oliveira só descobriu que era Angenor, quando casou com Zica, já quase sessentão. Até ali se julgava Agenor, como era chamado pelo pai, Sebastião Joaquim de Oliveira. Mas, o erro do escrivão não teve importância, pois a cultura brasileira consagraria o compositor da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira pelo singelo apelido de Cartola.

Cartola nasceu no Rio de Janeiro, em 11 de outubro de 1908, e teve infância de menino bem tratado pelos pais e avós. Frequentava o Rancho Arrepiado e gostava das festas de ruas das Laranjeiras, o seu bairro. Desfilava no Dia de Reis e só não gostava das várias escolas pelas quais passou, concluindo o curso primário a muito custo.

A família se muda para o morro da Mangueira e o destino do moleque Agenor (então com 11 anos) estava selado. No morro, mistura-se com a malandragem, começa a se interessar pela música e entra em conflito com o pai. Pouco tempo depois, a mãe morre, o pai abandona a Mangueira, mas Cartola, à época com 14 anos, fica por lá. Ele é iniciado no samba e na boêmia pelo seu amigo Carlos Cachaça, seis anos mais velho, que se torna um dos seus mais constantes parceiros.

Entre uma roda de samba e outra, tratou de arrumar emprego. Perambulou por algumas gráficas, mas acabou ajudante de pedreiro e mais uma vez o destino interferiu: usando chapéu-coco para não sujar os cabelos com cimento, passou a ser chamado de Cartola pelos companheiros e nunca mais outro nome o identificou.

Vive pela noite do subúrbio carioca, até ser acolhido por Deolinda, uma senhora que mora na Mangueira e passa a cuidar dele. Sem trabalho, começa a compor e a cantar nos bares do morro. Torna-se figura cativa nas rodas de samba e da boêmia, e ensaia suas primeiras composições e acordes no violão.

Em 1928 já estava tomado pelo amor à Mangueira. Os amigos, bambas nas pernadas das rodas de samba, respeitavam a facilidade com que tratava o violão e a inspiração que fazia nascer sambas já famosos em todo o morro. Quando fundaram o Bloco dos Arengueiros, levaram o menino franzino, que não ajudava em briga, mas na hora de fazer samba era imbatível.

Pois foi o menino quem percebeu que era hora de acabar com arruaças, unificar os sambistas e criar uma escola de samba que representasse o morro e fosse respeitada. Foi dele a escolha do nome Estação Primeira de Mangueira. Foi ele quem selecionou as cores verde e rosa para o pavilhão que seria o mais amado do Brasil. Cores conflitantes, mas que se harmonizam perfeitamente quando se unem em nome da Mangueira.

Além de Cartola, outros “arengueiros” como Arturzinho, Carlos Cachaça, Zé Espinguela, Saturnino, Homem Bom, Chico Porrão, Gradim e o irmão Antonico integram o núcleo inicial do qual surge a escola de samba, fundada em 28 abril de 1928. No desfile inaugural, a escola apresenta um samba de sua autoria, Chega de Demanda.

O primeiro diretor de harmonia da Mangueira foi Cartola. Seus sambas-enredo fizeram escola – Vale do São Francisco é citado ainda hoje como um dos melhores de todos os tempos –, logo a fama desceu as ladeiras e espraiou-se pela cidade.

No ano de 1929, sua composição Que Infeliz Sorte é gravada por Francisco Alves. O samba chega às mãos do cantor por intermédio de Mário Reis, que o compra de Cartola por 300 mil-réis. Tal prática, muito comum nesse período da era do rádio no Brasil, significa a entrada de Cartola no meio artístico.

Ele conhece Noel Rosa com quem compõe Não Faz Amor e Qual Foi o Mal que Eu Te Fiz? – ambas gravadas por Francisco Alves, em 1932. Também nesse ano, o cantor grava um dos seus maiores sucessos, Divina Dama. Nos anos 1930, as composições de Cartola ainda são gravadas por Carmen Miranda, Silvio Caldas e Aracy de Almeida.

Cartola apresenta na rádio, com Paulo da Portela, o programa A Voz do Morro, em 1940. Os dois criam, com Heitor dos Prazeres, o Conjunto Carioca, que chega a se apresentar em São Paulo, na Rádio Cosmo. No fim dos anos 1940, ele se desentende com o presidente da Mangueira, afasta-se da escola de samba e se isola da carreira musical. Nessa fase, Cartola fica viúvo, some e chega a ser dado como morto.

Em 1956, é redescoberto pelo jornalista Sérgio Porto, que o encontra trabalhando como lavador de carro em uma garagem em Ipanema. Ele volta à Mangueira, casa-se com Eusébia Silva do Nascimento, a Zica, e inaugura no centro do Rio de Janeiro, na Rua da Carioca, o restaurante Zicartola, em setembro de 1963. O local torna-se reduto importante do samba.

A casa é frequentada por estudantes, escritores, artistas de teatro e do cinema e jornalistas, mas, sobretudo, pelos sambistas da velha-guarda, além dos cantores da bossa nova como Carlos Lyra e Nara Leão, que inclui em seu show Opinião, de 1964, o samba O Sol Nascerá (Cartola e Elton Medeiros).

O Zicartola contribui para o surgimento de compositores como Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho. Em sua trajetória, Cartola também participa de alguns filmes, a exemplo de Orfeu Negro (1959), de Marcel Camus, e Ganga Zumba (1963), de Cacá Diegues.

A obra de Cartola tem significado especial na narrativa da evolução do samba. Estilo inconfundível de suas harmonias, melodias e letras traduz a poética do trovador da Mangueira, que, sozinho ou em parceria, com Carlos Cachaça, Elton Medeiros, Nuno Veloso, Hermínio Bello de Carvalho, influencia novas gerações de sambistas, em especial, Paulinho da Viola.

Suas composições atravessam décadas e se atualizam a cada regravação. Por exemplo, o samba Não Quero Mais Amar a Ninguém (com Carlos Cachaça e Zé da Zilda), gravado em 1937 por Aracy de Almeida, novamente é cantado pelo público nos anos 1970 com a gravação de Paulinho da Viola, o mesmo acontecendo com a interpretação de seus sambas por Ney Matogrosso, no ano 2002.

Para Carlos Drummond de Andrade, Cartola é um mestre da delicadeza. Esse distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira, diz Drummond, em uma crônica publicada no Jornal do Brasil, em novembro de 1980, sabe sentir que o samba é a forma encontrada para expressar sua vida, seus amores e o seu sentimento pelo mundo: “Cartola sabe sentir com suavidade dos que amam pela vocação de amar, e se renovam amando”.

Quando, em 1940, aporta no Brasil o maestro norte-americano Leopoldo Stokowski em missão ligada à política da boa vizinhança com intuito de gravar o que havia de mais expressivo em termos de música popular no Brasil, Villa-Lobos apresenta Cartola ao visitante, que ao lado de Donga, Pixinguinha, João da Baiana participa da gravação do disco Native Brazilian Music, lançado nos Estados Unidos pela Columbia. Villa-Lobos também o convida a participar de espetáculos que promove.

Em sua trajetória, Cartola mantém-se fiel ao universo sociocultural que inspira seus sambas, ali se afirma como ilustre representante da inventividade musical que pulsa nos morros cariocas, nos primórdios do samba, em seu caso, o Morro da Mangueira, que, como escreve na canção Sala de Recepção, “habitada por gente simples e tão pobre e que só tem o sol que a todos cobre, como podes Mangueira, cantar?”.

No entanto, na década de 1950, sua obra é eclipsada por uma indústria fonográfica voltada aos sambas-canções bolerizados e posteriormente à bossa nova. Somente em meados dos anos 1960, quando o Brasil é tomado pela ditadura militar, a nova geração, ligada direta ou indiretamente ao Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC/UNE), passa a valorizar os artistas da velha-guarda do samba como Nelson Cavaquinho, Ismael Silva, Zé Kéti e o próprio Cartola.

Em 1974, aos 65 anos, Cartola grava seu primeiro LP. O disco, lançado pelo selo Marcus Pereira e produzido por J.C. Botezelli, é reverenciado pela crítica e pelo público, recebendo diversos prêmios; a partir daí, lança outros quatro LPs, que incluem sucessos como As Rosas Não Falam e O Mundo É um Moinho.

A popularidade de Cartola permite uma agenda intensa de shows por diversas capitais do país. Mas sua saúde, no fim dos anos 1970, está debilitada, e ele falece em 30 de novembro de 1980, no Rio de Janeiro, aos 72 anos. Velado na quadra da sua Mangueira, foi enterrado no Cemitério do Caju.

Nas décadas seguintes, muitos artistas revisitam sua obra, entre eles Leny Andrade, Cazuza, Ney Matogrosso, Marisa Monte e Chico Buarque, com o CD de 1997, Chico Buarque de Mangueira, gravado com os integrantes da Mangueira.

No ano de 2006, é lançado o documentário sobre sua vida: Cartola, Música para os Olhos, dirigido por Lírio Ferreira e Hilton Lacerda.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

Comentar

Leave a Comment