Musicoterapia

Galeria dos Bambas: Pixinguinha

Postado por Simão Pessoa

Neto de africanos, Alfredo da Rocha Vianna Filho ou Pixinguinha, nome que mistura o dialeto africano “Pizin Din” (menino bom), dado por uma prima, com “Bexiguinha”, por ter contraído bexiga, foi um dos músicos mais importantes da fase inicial da Música Popular Brasileira (MPB). Ele nasceu no dia 23 de abril de 1897, no bairro da Piedade, zona norte do Rio de Janeiro.

Com um domínio técnico e um dom de improvisação encontrados nos grandes músicos de jazz, Pixinguinha é considerado o maior flautista brasileiro de todos os tempos, além de um irreverente arranjador e compositor. Sua formação inclui o estudo formal da música, o que lhe possibilita ler e escrever partituras, fato pouco habitual entre os músicos populares. Posteriormente, obtém certificado no curso de teoria musical no Instituto Nacional de Música. Nos anos 1930, torna-se funcionário da prefeitura e leciona música em várias escolas cariocas.

Caçula, entre doze irmãos, aos 11 anos, aprende a tocar cavaquinho, mas sua arte se manifesta na flauta e, depois, no saxofone. Passa a infância num ambiente artístico em que o pai é hábil flautista, os irmãos também são músicos, e na casa são comuns as rodas de choro. Alfredo da Rocha Vianna (pai) era conhecido por promover saraus que reuniam em sua casa grandes músicos, como os violonistas João Pernambuco, Quincas Laranjeira e Sátiro Bilhar, Candinho Trombone, o flautista Juca Kallut, o trompetista Luís de Souza, o soprista Irineu de Almeida e o maestro Heitor Villa-Lobos, entre outros.

Em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, Pixinguinha recordaria a presença dos amigos de seu pai nessas reuniões musicais: “Eu ficava apreciando porque gostava de música. Mas quando chegava oito da noite, nove horas, meu pai dava ordem: ‘Menino, vai dormir!’. Eu respondia: ‘Perfeitamente, vou dormir’. Mas não dormia nada, porque ficava ouvindo os chorinhos bons que ele tocava. Gostava muito daquilo”. No futuro, caberá a Pixinguinha passar para a partitura a única composição de Alfredo Vianna (pai) de que se tem notícia: a valsa “Tristezas Não Pagam Dívidas”.

Ainda muito jovem, frequenta a casa da baiana tia Ciata, um dos pontos de encontro de músicos como João da Baiana, Donga, Sinhô, Caninha e Heitor dos Prazeres, intelectuais como João do Rio, Manuel Bandeira e Francisco Guimarães, e um dos lugares de gestação do samba no Rio de Janeiro no início do século 20. “Pelo Telefone” (Donga e Mauro de Almeida), reconhecido oficialmente como o primeiro samba a ser gravado, em 1917, tem o endereço de origem nas rodas musicais da casa da baiana tia Ciata.

Aos 12 anos, compôs sua primeira obra, o choro “Lata de Leite”. Aos 13, gravou seus primeiros discos como componente do conjunto Choro Carioca: “São João Debaixo D’Água”, “Nhonhô em Sarilho” e “Salve (A Princesa de Cristal)”. Aos 14, estreou como diretor de harmonia do rancho Paladinos Japoneses, participa da orquestra do rancho carnavalesco Filhas da Jardineira e passou a fazer parte do conjunto Trio Suburbano, quando conhece Donga e João da Baiana, parceiros importantes em toda sua trajetória. Aos 15, já tocava profissionalmente em casas noturnas, cassinos e cabarés da Lapa e na orquestra do Cine-Teatro Rio Branco.

Edita pela primeira vez, em 1914, uma composição de sua autoria, “Dominante”, e passa a integrar o Grupo do Caxangá. Nesse momento, é reconhecido como talentoso compositor e flautista, genial em sua criatividade e interpretação. Duas composições suas, o choro “Sofres Porque Queres” e a valsa “Rosa”, são gravadas pelo grupo Choro do Pixinguinha em 1917.

O ano de 1918 tem importância singular em sua carreira: é quando Pixinguinha e Donga organizam o conjunto musical os Oito Batutas. Além de excursionar pelo Brasil, o grupo se apresenta em Paris, no Dancing Shéhérazade, e em Buenos Aires, em 1922.

Nos anos 1920, compõe e faz arranjos para o teatro de revista, a exemplo da peça Tudo Preto, produzida por João Cândido Ferreira e encenada pela Companhia Negra de Revista no Rio de Janeiro. A peça, reeditada em setembro de 1926 com o nome Preto no Branco, conta no elenco com a participação do então jovem ator Grande Otelo. Além dos arranjos para o teatro, Pixinguinha trabalha como orquestrador na indústria fonográfica. Grava diversos discos como instrumentista e várias músicas de sua autoria na década de 1930.

Em 1937, duas composições suas tornam-se grande sucesso de público na voz de Orlando Silva – “Rosa” (letra de Otávio de Souza) e “Carinhoso” (composto em 1917 e gravado pela primeira vez em 1928 pela Orquestra Típica Pixinguinha-Donga com letra de João de Barro). Essas músicas são repetidamente gravadas, tanto pelos intérpretes da velha guarda quanto pelos mais contemporâneos, como Caetano Veloso e Marisa Monte.

Na década de 1940, sem a mesma embocadura para o uso da flauta e com as mãos trêmulas devido à sua devoção ao uísque, Pixinguinha trocou a flauta pelo saxofone, formando uma dupla com o flautista Benedito Lacerda, com quem grava dezenas de choros. Nessa época, participa do programa O Pessoal da Velha Guarda do radialista Almirante e lança seu primeiro LP, o disco “Carnaval da Velha Guarda”, em 1955, com a participação de seus músicos e de Almirante.

Três anos depois, o grupo Velha Guarda é escolhido para recepcionar os jogadores brasileiros vitoriosos na Copa do Mundo, conquistada na Suécia. No início dos anos 1960, cria a trilha sonora do filme Sol sobre a Lama, de Alex Viany, lançado em 1963. Seis composições do filme têm a letra escrita por Vinicius de Moraes, entre elas, “Lamento” (1928) e “Mundo Melhor”.

Compositor de uma obra musical extensa, Pixinguinha transita por gêneros como a valsa, polca, maxixe, samba, choro. Mas é no choro que melhor expressa sua arte. A obra do compositor, uma das mais importantes matrizes da música popular brasileira, ao introduzir elementos da música afro-brasileira e da música rural nos arranjos dos chorões, contribuiu para diversificar o gênero com um matiz particularmente brasileiro.

É o caso da composição “Os Oito Batutas”, gravada em 1919. Posteriormente, esse título deu nome ao primeiro conjunto de música popular a conquistar fama nacional e internacional, que tem em sua formação inicial Pixinguinha (flauta), China (canto, violão e piano), Donga (violão), Raul Palmieri (violão), Nelson Alves (cavaquinho), José Alves (bandolim e ganzá), Jacó Palmieri (pandeiro) e Luís de Oliveira (bandola e reco-reco).

Aliás, a brasilidade da música de Pixinguinha, somada à descendência afro-brasileira dos integrantes do Oito Batutas, é questionada por parte da imprensa e críticos, que com um discurso de cunho eurocêntrico e racista desqualificam a música nacional. A exemplo da ida de Pixinguinha e o conjunto Oito Batutas a Paris em 1922, jornais e revistas fazem a crítica admitindo que esses artistas representam um Brasil negro, atrasado e inferior. Mas há apontamentos a favor que enaltecem a qualidade dos músicos e a originalidade das composições.

O conjunto surge do convite feito a Pixinguinha e Donga por Isaac Frankel, proprietário do cine Palais, localizado no centro elegante da belle époque carioca, para formar uma pequena orquestra para a sala de espera do cinema. O repertório de maxixes, canções sertanejas, batuques, cateretês e choros inova, pois, as orquestras de cinema, até então, apresentam a chamada música fina: valsas vienenses e tangos. Anunciado como a única orquestra que fala alto ao coração brasileiro, Oito Batutas se torna a atração da casa.

Entre 1919 e 1921, financiado pelo milionário carioca Arnaldo Guinle, com a supervisão do maestro Heitor Villa-Lobos, excursiona por diversas capitais do Brasil, cabendo a Pixinguinha pesquisar o folclore musical desses lugares. Isso se explica num contexto de intenso debate sobre a identidade nacional. A turnê celebra o sucesso do grupo entre o público brasileiro e repete o êxito, quando, em 1922, se apresenta no elegante Dancing Shéhérazade de Paris. “Les Batutas” são aplaudidos com entusiasmo pelo público francês.

No fim dos anos 1920, a crítica faz uma série de restrições estéticas a duas composições de Pixinguinha. Nesse momento, não é o que elas contêm de brasilidade; mas sim de inovação. Os choros “Lamento” e “Carinhoso” são feitos em duas partes, em vez de três, fato interpretado como uma inaceitável influência do jazz. É certo que o jazz inspira o compositor. Pixinguinha entra em contado direto com essa musicalidade em Paris, por meio dos shows das jazz-bands americanas a que assiste nas casas de espetáculos da capital francesa.

Não por acaso, na volta ao Brasil, em agosto de 1922, grava dois foxtrotes: “Ipiranga” e “Dançando”, ambos de sua autoria. Em 1923, Oito Batutas se recompõe com o nome de Bi-Orquestra Os Batutas. Na avaliação do compositor, que, além de flautista, passa a integrar o conjunto como saxofonista, a mudança propõe um estilo mais identificado com os novos tempos, ou seja, o jazz.

De fato, tanto os arranjos quanto o timbre do sax dão uma coloração mais moderna à sonoridade do grupo. O que não quer dizer a vulgarização de sua brasilidade. Pixinguinha troca definitivamente a flauta pelo saxofone, em 1942. Nesse ano, faz sua última gravação como flautista, num disco com dois choros de sua autoria: “Chorei” e “Os Cinco Companheiros”.

A nova fase de Pixinguinha inclui dezenas de registros em disco com o flautista Benedito Lacerda. A dupla corresponde a um momento singular do choro. Nessas gravações, a criatividade de Pixinguinha destaca-se nos contrapontos que ele desenvolve no sax tenor, como resposta às melodias executadas na flauta por Lacerda.

A formação de Pixinguinha inclui amplo acesso ao universo da música erudita, bem como ao conhecimento do código formal da linguagem musical. Disso resulta a qualidade artística de seu trabalho como orquestrador. Num primeiro momento, ele faz arranjos para o teatro de revista, e, a partir de 1928, logo após a implantação da gravação elétrica no Brasil, para a indústria do disco, sobretudo para o selo Odeon.

As partituras de Pixinguinha inovam, no desenho harmônico, melódico ou rítmico, há uma marca de brasilidade formatado em seus arranjos. Até então, os arranjadores seguem a escola italiana. O estilo de Pixinguinha, tributário do contexto sociocultural de sua trajetória, tem contribuição importante em determinada forma de orquestração, que, em síntese, vai configurar a música popular brasileira da primeira metade do século XX.

A morte de Pixinguinha, no dia 17 de fevereiro de 1973, não poderia ter sido mais poética. Na manhã daquele sábado-magro do carnaval, Pixinguinha recebe em casa a visita do poeta e produtor Hermínio Bello de Carvalho, do fotógrafo Walter Firmo e do músico Eduardo Marques. Conversam amenidades, ouvem música e, na hora da despedida, Pixinguinha chora.

Por conta do abatimento de Pixinguinha, Walter Firmo não levou a máquina fotográfica para não registrar as marcas da decadência física do compositor. No entanto, revelou ao biógrafo Sérgio Cabral o seu arrependimento. O fotógrafo contou que, ao se despedir do Pixinguinha, o gesto do músico na janela de sua casa foi “a foto que não fez”.

À tarde, Pixinguinha veste seu terno marrom e sai de Inhaúma, acompanhado pelo filho Alfredinho, em direção à Igreja de Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, para batizar o filho de seu amigo Euclides Souza Lima. Como presente para o bebê, leva uma partitura manuscrita de “Carinhoso”. Porém, no momento em que se prepara para assinar seu nome no livro da igreja, Pixinguinha cai em pleno altar, fulminado por um infarto (causa mortis: arteriosclerose, miocardiosclerose, rotura de aneurisma da aorta abdominal).

A Banda de Ipanema, que faz um desfile pré-carnavalesco nesse dia, passa em frente à igreja quando se espalha entre os foliões a notícia da morte de Pixinguinha. O desfile termina em frente ao templo, molhado pela chuva que tinha acabado de cair e pelo choro de seus foliões – entre eles Hermínio Bello de Carvalho e Albino Pinheiro, o eterno general da banda.

O velório é realizado naquela noite na sede do Museu da Imagem e do Som e o sepultamento, às 16h do dia seguinte, se dá no Cemitério de Inhaúma (zona norte do Rio), quadra 60, sepultura 3868. A biografia “Pixinguinha, filho de Ogum bexiguento” (Marília Trindade Barboza e Arthur de Oliveira Filho) informa que não houve discurso nem extrema unção, mas sim o “Carinhoso” cantado pelos presentes, que acenavam com lenços.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

Leave a Comment