Por Rafael Galvão
Eu já escrevi sobre isso aqui, em mais de um momento, mas não custa escrever de novo.
Basicamente, o filme Let it Be pode ser visto como a crônica de uma banda superando suas dificuldades através da força redentora da música.
A primeira parte do filme foi filmada nos estúdios Twickenham, em Londres, a partir de 2 de janeiro de 1969. Frio de assustar pinguim num espaço enorme e vazio com um bocado de gente estranha em volta: fazer música assim, principalmente sem se darem o tempo necessário para superar as sessões conturbadas do “Álbum Branco”, era impossível, como apontou George Harrison.
O resultado é um clima estranho, hostil até. Vemos uma banda que está claramente se desintegrando, em que a intolerância mútua não para de aumentar. A presença tóxica de Yoko Ono não ajuda em nada; o vício de John Lennon em heroína, tampouco.
Paul McCartney tenta fazer a banda funcionar tomando a frente, o que para os outros soa apenas como uma tentativa de controlá-los e fazer deles sua banda de apoio, uma impressão que talvez não fosse totalmente disparatada.
Quando Harrison finalmente saiu da banda, depois de uma discussão com Lennon, uma de suas condições para voltar era a de que saíssem de Twickenham e fossem para o estúdio da Apple. O estúdio montado por um picareta chamado Alexis Mardas não valia nada, mas ali era sua casa – mais que isso, era um estúdio de gravação, o seu ambiente natural.
Foi a decisão mais acertada que poderiam tomar. Os ânimos melhoraram instantaneamente, e certamente para isso contribuiu também a presença de Billy Preston, obrigando-os a se comportar com civilidade. Essa melhora é facilmente perceptível no filme, mas também nas gravações não incluídas no produto final.
Finalmente vem o concerto no telhado da Apple, no penúltimo dia de gravação. Foi outra das condições de Harrison, que não queria fazer o grande show ao vivo que McCartney propôs (pensaram até em Pompéia, antecipando o Pink Floyd em alguns anos).
Apesar do frio desolador, a intimidade entre os quatro, o entrosamento musical único, a cumplicidade histórica entre Lennon e McCartney e, paradoxalmente, as semanas desgraçadas que passaram ensaiando fazem daqueles poucos minutos quase um revival da velha banda que havia conquistado e ajudado a mudar o mundo.
Naquele momento não existem os problemas financeiros, as diferenças de visão artística e musical, a queda de braço entre McCartney e os Eastman e os outros Beatles ao lado de Allen Klein. O que existe é a música, exatamente o que fez deles a maior, a melhor e a mais influente banda de toda a história.
Se s Beatles tivessem continuado, o Let it Be seria visto assim: a história de uma banda em crise que graças à música supera os seus problemas; essa é a sua estrutura básica. Mas não foi bem isso que aconteceu, e o resultado é um filme que, sendo lançado com um ano de atraso, um mês após o anúncio da separação, soa unicamente como um epitáfio, um pós-escrito, e não dos melhores.
Não é mais o crescendo musical e pessoal, a apoteose alegre, os olhares cúmplices entre Lennon e McCartney que sobressaem: é a irritação, a má vontade, o descaso, é Harrison dizendo que tocará como McCartney quer, ou não tocará se ele preferir assim.
Mas não é só isso. O fato é que, além do interesse histórico e musical, o Let it Be é um filme muito ruim. Eu assisti a ele – ou melhor, vi que estava passando na televisão e aturei alguns momentos – no dia 14 de dezembro de 1980, quando a TV Aratu o exibiu numa tarde quente de domingo, certamente motivada pelo assassinato de Lennon uma semana antes.
O pouco que lembro consegue evocar apenas uma palavra em mim: tortura. Mas tarde, já fã da banda, assisti várias e várias vezes. Continuo achando muito, muito ruim. Os Beatles cometeram um erro gravíssimo ao entregar uma tarefa que se revelaria hercúlea a Michael Lindsay-Hogg.
Verdade seja dita, seria muito difícil para qualquer um ter que lidar com uma banda em crise mas perfeitamente consciente do seu tamanho e do seu poder, e certamente com um profundo senso de unidade quando confrontada com qualquer pessoa de fora – o que incluía Brian Epstein e George Martin. Mas além de tudo isso, ele não tinha a experiência necessária, e provavelmente nem o talento.
Lindsay-Hogg não soube editar um filme que fosse coerente e inteligente. Ele parece ter tentado costurar uma narrativa linear, mas realmente não sabia o que estava fazendo. O resultado é abaixo do medíocre.
Há uma infinidade de conversas registradas que fariam do filme algo surpreendente, sólido, valioso (recomendo uma visita ao A Moral To This Song, que faz um trabalho belíssimo transcrevendo esses diálogos); mesmo obedecendo aos limites estabelecidos pela banda seria possível fazer um grande filme — se ele soubesse como fazer.
Let it Be já foi restaurado digitalmente há muito tempo, mas os Beatles sempre relutaram em relançá-lo. O filme conseguiu a proeza de desagradar a todos, e ainda hoje deve ser um dos pontos de conflito entre os remanescentes e os herdeiros dos já defuntos.
Mas o tempo passa, o dinheiro da venda de discos que possibilitou a George Harrison e John Lennon viverem nababescamente sem fazer nada não existe mais, e o Let it Be pode descolar alguns caraminguás tão necessários nestes tempos difíceis.
A oportunidade virá em 2020, quando ele completará 50 anos. No entanto, eu já disse aqui e repito: eu jamais relançaria o Let it Be.
Em vez disso, entregaria as 90 horas de material bruto para Martin Scorsese e deixaria que ele fizesse um novo filme, como quisesse, utilizando o que se sabe ser uma experiência e talento muito, muito superiores aos de Lindsay-Hogg e com o benefício de meio século de distância. Acho que ele faria isso até de graça. Eu daria ao resultado o título original do filme: Get Back.
Mas isso é impossível. Basta ver o que fizeram com Eight Days a Week, dois anos atrás: entregaram o trabalho a um diretor medíocre como Ron Howard, porque eles já consolidaram a sua história e não querem alterá-la, e precisam apenas de um artesão obediente que organize uma narrativa de acordo com as versões que querem deixar para a posteridade.
Musicalmente o cenário é melhor, com mais possibilidades, mas também com mais chances de dar tudo errado.
Agora que a Apple Corps. finalmente se rendeu ao modelo utilizado por McCartney há anos para continuar a vender material antigo — remixar um disco velho, incluir outtakes, demos e eventualmente canções inéditas, jogar no balaio livretos e souvenirs e vender tudo isso por dez vezes o preço de um disco comum —, dificilmente deixará de aproveitar as próximas oportunidades para reembalar seus cacarecos e vendê-los a fãs que comprariam qualquer coisa com a chancela dos Beatles.
É desonesto: todo esse material é simplesmente inferior, que jamais deveria ver a luz do dia ou, ao menos, ser oficializado. Mas as pessoas querem ser enganadas, como prova Jair Bolsonaro.
Eu posso apostar que as primeiras gravações retiradas das sessões do Let it Be serão lançadas em agosto do ano que vem, numa eventual edição comemorativa do cinquentenário do Abbey Road.
Podemos esperar uma nova mixagem, discos e mais discos de outtakes e etc.
Várias dessas gravações serão retiradas das sessões de janeiro de 69, quando boa parte delas foi ensaiada.
Há cerca de 90 horas de gravações do Let it Be — que, para quem tem pressa e paciência, podem ser encontradas na internet, na série A-B Road, da Purple Chick.
Mas é em 2020 que virá chance de os Beatles finalmente resolverem as questões que envolvem o Let it Be e que estão mal resolvidas há meio século. Curiosamente, essa seria a única remixagem que eu gostaria de ouvir.
Realmente não liguei para as do Sgt. Pepper’s e do “Álbum Branco” (as do “Álbum Branco”, por sinal, me pareceram ter retirado um pouco do som distinto do álbum, encaixando-melhor no padrão George Martin dos outros discos dos Beatles, o que não é bom), mas sempre achei o som do Let it Be estranho, abafado. Uma remixagem vai lhe fazer bem.
Mas a principal questão é: e o resto? Que vai haver uma edição comemorativa do Let it Be eu não tenho dúvidas. O problema é saber como ela vai ser, porque ela poderia ser realmente boa, rica, nova.
Eu tenho a minha ideia de uma edição comemorativa. Para começar, eu relançaria o Get Back, a segunda mixagem de Glyn Johns, com a capa original. (Falo “relançar” porque o álbum chegou a ser distribuído para algumas rádios, mas foi quase imediatamente recolhido.) No entanto, acho difícil. É mais fácil relançarem o livro que acompanhava a primeira prensagem do Let it Be, excluído logo depois porque encarecia muito o disco.
Em vez de incluir o amontoado de outtakes que costumam incluir, eles poderiam fazer um álbum apenas com gravações realmente inéditas da banda.
Certo, duvido que eles lancem pequenas pérolas como Negro in Reserve, When You’re Drunk You Think of Me ou What’s the Use of Getting Sober, mas ali há material suficiente para encher três ou quatro discos com qualidade.
Mas tudo isso são apenas desejos. O histórico da Apple nesse sentido é muito ruim, e eles sempre passam a impressão de estarem sempre segurando material, para garantir que possam lançar algo “novo” daqui a alguns anos. A mim isso não importa mais. Quase todo esse material está na internet. Ninguém precisa mais da Apple. Let it be.
(Publicado em 19/12/2018)