Por Rafael Galvão
Serge pergunta: “Qualquer sucesso dos Beatles parece uma música que poderia ter sido composta ontem, ou seja, não é datada, enquanto quando ouvimos os sucessos do Elvis, é sempre bom, mas parece coisa do passado. As da década de 70, paradoxalmente, estão ainda mais datadas que as da década de 50. A que você acha que se deve isso?”
A resposta é simples, e está contida no post anterior: porque os Beatles codificaram essa linguagem musical, como Napoleão fez com o Código Civil francês.
Não acho que isso se deva unicamente à sua qualidade intrínseca. Independente dela, essa codificação se deve principalmente a uma convenção, à conjunção perfeita entre os astros. O mundo decidiu, em algum momento, que os Beatles eram o padrão musical a ser seguido, o marco inicial da música que se faria depois.
Eles pegaram aquela música gestada em campos de algodão e acrescentaram a ela a tradição de séculos da música popular europeia, de Bach (que está na base da progressão de acordes de Blackbird, por exemplo) ao vaudeville inglês. Esse talvez seja o seu grande diferencial musical.
Toda a música pop ocidental deriva daí. Talvez não haja comparação possível, por exemplo, entre o Led Zeppelin e os Beatles. Mas o que o Zep, ou qualquer outra banda, fazia tinha no horizonte a música que os Beatles estavam fazendo ou fizeram antes.
Podia ser vista como um ponto de partida, um ponto a ser evitado, ou alvo de um esforço deliberado para ignorar, podia ser qualquer coisa: mas era impossível não reconhecer a sombra massiva dos quatro cabeludos de Liverpool.
É a mesma razão pela qual as músicas de Elvis the Pelvis soam menos datadas hoje do que as de Elvis the Putz.
Em 1956, Elvis definiu o padrão comercial daquela música que vinha sendo gestada por uma infinidade de artistas, ao miscigenar definitivamente o rhythm and blues e o country and western. Os Beatles não existiriam, literal ou figurativamente, sem Elvis.
Em 1972, Elvis já não tinha nenhuma relevância musical havia mais de uma década, e sua música não trazia absolutamente nada de novo.
Claro que no período que se seguiu à sua volta da Alemanha Elvis apresentou algumas belas canções, como Suspicious Minds – mas agora havia uma diferença crucial, ele tinha deixado marcar o passo da caminhada, e todas elas, sem nenhuma exceção, vinham a reboque do som que se fazia na época.
É também a razão pela qual o Kind of Blue, de Miles Davis, parece ter sido lançado ontem (e o Bitches Brew, não).
No caso dos Fab Four, há outros elementos. Em primeiro lugar, os Beatles tinham uma dupla de compositores excepcional. Não apenas pela genialidade musical, mas pela sua dedicação e habilidade como artesãos.
Lennon e McCartney tinham ojeriza ao clichê musical. Estavam sempre em busca de algo novo, diferente. E mesmo quando usavam sequências conhecidas de acordes, algo difícil de evitar dentro da linguagem musical do rock, faziam isso sob uma melodia que trazia algo de permanente e inovador.
A primazia da canção ajudava. Diferente de outras bandas, em que as canções costumam se ajustar ou ser reflexo claro das características de seus integrantes, nos Beatles acontecia o contrário. Eles davam a cada canção o que ela precisava – Yesterday não precisa de nada mais que violão e um quarteto de cordas? Vão ali tomar um chá, John, George e Ringo. Cada canção era maior que a banda.
Sempre defendi que a música dos Beatles é revolucionária desde o início. Mas outras bandas inovadoras se acomodaram com o primeiro impacto, com o seu próprio jeito de fazer música, e nunca passaram disso – provavelmente porque isso era tudo o que tinham, e não é pouco. Ao contrário, os Beatles estavam constantemente tentando evoluir, ir além do que já tinham conseguido. No fundo, eles competiam com eles mesmos.
E é bom não esquecer que a maior banda de todos os tempos era, antes de tudo, um grande conjunto. Eram todos grandes instrumentistas, sem exceção. Alcançaram um nível de interação e harmonia musical entre seus membros sem paralelo em sua geração. Ficava mais fácil fazer da contribuição de cada membro algo individual, claro, mas também em perfeita harmonia com as outras.
Se alguém parar para ouvir Don’t Bother Me, a primeira composição de George Harrison a ser gravada pela banda, vai perceber isso claramente. A estrutura da canção obedece a um padrão simples, descendo de Bm a Em.
Mas é no refrão que ela registra o tempo exato de sua composição: não pode haver nada mais Swinging London do que a sequência de Em e A tocada na guitarra – não, é mentira, aquele C e Em de Goldfinger é ainda mais típico.
E no entanto, a maneira como a banda toca a música (principalmente o baixo fantástico de McCartney) dá a ela uma dimensão que, sendo outros a tocarem-na, ela jamais poderia alcançar. Os ex-beatles, sem exceção, se ressentiriam da ausência dessa interação durante todas as suas carreiras solo.
A produção também é outro fator importante. Os Beatles tiveram a sorte de cair nas mãos de um grande produtor (e de um excelente engenheiro de som, Norman Smith) que entendia com perfeição o seu papel e as ideias do grupo, e isso ajudou a fazer com que suas gravações soassem diferentes e melhores do que suas contemporâneas.
Mas tudo isso é uma tentativa de explicar o inexplicável. A resposta a essa pergunta é, na verdade, a resposta de um bilhão de dólares. E quem souber, nunca mais vai bater um prego numa estopa para ninguém. Basta pegar quatro cabeludos e montar uma banda.