Por Michelle Licory
Gilberto Gil lançou o álbum “Ok, Ok, Ok” essa semana com festa na galeria de Oskar Metsavaht dentro do Jockey Club do Rio, junto com o evento de divulgação de seu novo programa de entrevistas no Canal Brasil, “Amigos, Sons e Palavras”. Glamurama foi e aproveitou para bater um longo papo com o anfitrião.
Esse disco é uma prova de superação? “Num certo sentido. É uma reiteração de vitalidade minha, de capacidade de ainda fazer coisas com gosto e disposição… Passei um ano e meio pelo menos, quase dois, tendo que cuidar da saúde, com hospitalizações frequentes… O disco é um respiro bom. Ele poderia se chamar ‘Prece’, uma das canções que mais gosto, ou ‘Sereno’, nome do meu neto mais recente, ou até ter um título mais poético abstrato. Demorei muito para escolher, todo mundo insistindo em me perguntar. Aí disse: ‘Ah, Ok, Ok, Ok’ [que é como ele batizou a faixa sobre a situação política atual do Brasil e as demandas para que ele se posicione]”. Dividimos a conversa por temas. Vem ler!
Sobre a morte e a finitude
Caetano Veloso é um dos entrevistados do novo programa de Gil no Canal Brasil. Em pauta, o envelhecer. Perguntamos para Gil sobre o mesmo tema. “Vou usar uma das frases famosas da Canô [mãe de Caetano]: ‘Quem não morre, envelhece’. Uma frase muito simples, mas sábia. É uma necessidade que nós todos temos de estabelecer um diálogo entre a finitude e a plenitude do viver, que está ligada à juventude, quando não pensamos na morte, nas dificuldades da velhice… Como é que se vive antes de morrer? Cuida da saúde, das suas mínimas responsabilidades com o resto da humanidade, com o fato de você pertencer a um grupo… É isso: vida e morte”.
“A gente tem que lhe prender aqui”
Gil continua… “‘Jacintho’ [outra faixa do álbum] foi isso. Esse meu amigo estava completando 100 anos na época em que eu estava nas internações. E ele inteirinho, lépido e fagueiro. Esse impulso natural de afeto por alguém que estava fazendo 100 anos, um produtor rural, criador de gado, muito próspero… Fui convidado para a festa. Fiz essa música pra ele, pra cantar lá, como um cartão de presente, um buquê de flores. No dia do aniversário dele, passei no hospital só para exames de rotina e os médicos disseram: ‘Você não pode sair daqui, teve uma alteração no seu quadro, a gente tem que lhe prender aqui’… Não cantei a música na festa, mas cantei em outro dia, durante um jantar que ele me ofereceu”.
“Se vale a pena viver, então morrer vale a pena”
Essa finitude, termo que Gil usou aqui em cima: será que era algo que não saía de sua cabeça na época? “Sempre pensei em finitude, mesmo antes desses episódios que desafiaram minha vitalidade. Uma vez um amigo que também estudava as religiões mais esotéricas, apreciador desse modo de especular sobre a existência, me disse: ‘Gil, pense na morte todo dia’. Então passei a pensar na morte todo dia. A morte faz parte da vida. Se vale a pena viver, então morrer vale a pena: esse é um trecho de uma dessas novas canções”.
Gil esteve doente e lutando nessas internações, todo mundo temendo algo pior, e se recuperou. Por outro lado, um amigo muito próximo dele, o jornalista Jorge Bastos Moreno, foi embora de repente, no susto, pegando muita gente de surpresa. “Isso é um tema bastante frequente na minha meditação. Moreno, ao contrario de mim, tinha pavor da morte e não queria tocar no assunto, mas de repente teve que morrer (risos). Morreu e pronto. Eu fui tomado por um sentimento de tristeza, de perda, porque ele tinha se tornado uma espécie de irmão tardio com quem eu compartilhava sentimentos de paixão, admiração, de revolta… Mas ele se foi. Não adianta ter medo. A morte é inevitável (risos)”.
Musas inspiradoras: “Elas que pediram”
Maria Ribeiro, Andreia Sadi e Roberta Sá ganharam músicas de Gil nesse novo álbum. Sadi até interrompeu nosso papo para cumprimenta-lo e ganhou uma legenda: “uma das musas, veio embelezar”, comentou o músico, antes de explicar: “Elas são amizades que fiz nos últimos tempos, através do Moreno, que tinha uma espirituosidade extraordinária”. Mas ganhar assim, meio do nada, uma música de Gilberto Gil… Como foi quando elas souberam? “Tenho a impressão que Maria e Andreia acharam muito bom porque foi um pedido delas”.
Como assim?! “Eu fiz ‘Afogamento’ para a Roberta. Era para ser uma parceria com o Moreno, mas fiz um esboço, mandei pra ele, e ele não acrescentou nada. A única coisa que fez foi falar que eu deveria incluir a palavra ‘boto’ na letra. Fiz isso e virou parceria. Durante um dos encontros na casa do Moreno, mostrei como tinha ficado a canção. A Maria estava lá e disse que também queria uma música. Aí a Sadi falou: ‘Então eu também’. Maria contemporizou: ‘Não, Gil, então faz uma canção só para nós duas’. E eu disse: ‘Tá bom’”. Elas dividem a faixa “Lia e Deia”. Mas e a Mariana Ximenes, uma das mais assíduas da casa do Moreno? “Pois é… Se ele ainda estivesse aqui entre nós, era capaz de me convencer a fazer outras, e participar mesmo da letra”, respondeu Gil, rindo. Foi por pouco, hein, Mariana? “Também fiz canções para os meus médicos, por razões óbvias. Estou aqui bebendo esse gim depois de ter problemas nos rins… ”
Política, posicionamento, fake news e “a maldição do Zuckerberg”
Pegando carona na música “Ok, Ok, Ok”, perguntamos sobre a inspiração e o posicionamento político de Gil atualmente. “Sermos solicitados para falar de nossos posicionamentos, isso já vem de muito tempo na minha vida por questão geracional. Minha geração foi levada a fazer isso por ímpeto espontâneo ou responsabilidade social sendo uma figura pública, ídolo, gente querida. Isso vem desde a ditadura. Tanto é que ‘Cálice’, que nós cantamos na manifestação em favor da libertação do Lula, a gente fez lá atrás, naquela época. É uma demanda que existe pra mim, para o Chico Buarque, Caetano… Mas esses ataques profundos, esses bombardeios que o Chico leva, e eu muito menos que ele, são novidades dessas novas formas de empoderamento individual que a internet proporciona, onde todo mundo é uma rádio, uma televisão, um palanque, um microfone aberto para um discurso. São as fake news, é a maldição do Zuckerberg… Essas críticas ao Chico quando primeiro surgiram na internet foi uma surpresa enorme pra ele. Me lembro de ele falar: “Não sabia que tanta gente me odiava”.
“Quando eu estava hospitalizado, me mataram duas vezes”
Mas esse ataque de “haters” não acontece dessa forma com Gil… “Não é verdade. Sou muito amaldiçoado nas redes sociais. Quando eu estava hospitalizado, me mataram duas vezes. ‘Gil morreu! Ainda bem que já foi’. Me lembro de um post assim: ‘Recebemos a notícia de que Gilberto Gil morreu: já foi tarde’. Era assim. São vários lobos solitários. Tem a ver com tudo, e com o fato de eu ser negro: é bom que se diga. E por aí vai”.
“Não necessariamente se o Lula fosse candidato eu votaria nele. Possivelmente não”
E tem a ver com ter sido ministro do Lula? “Pode ser. Muito antes disso, fui secretário de Cultura em Salvador, tentei ser prefeito, me filiei ao PMDB. Cheguei a ter ímpeto de ser eu o prefeito a tentar dar um jeito… Fui no ‘Lula Livre’ por questões de princípios de defesa dos direitos democráticos, de pluralidade, da manifestação plena. Mas não necessariamente se o Lula fosse candidato eu votaria nele. Possivelmente não. Talvez eu votasse na Marina, como já votei duas vezes. Não estava apoiando a candidatura do Lula, e sim me colocando em relação às dificuldades que temos de compreender os aspectos de lisura absoluta na condenação dele”.
“Tenho dificuldade com esse pensamento único em sexo, em política, em comportamento”
Cansou? “Não é nem que cansei. É que pensei, pensei, pensei… Mas as palavras dizem sim e os fatos dizem não. Os fatos são contraditórios. Os fatos recusam a ideia de que podemos agrupar o bem de um lado e o mal de outro. A vida, na verdade, é um misturar permanente das duas coisas, de várias coisas. Pensei que não adianta ter apenas uma única opinião. A Janaína Paschoal, quando ponderava se seria vice do Bolsonaro, disse que uma questão que a incomodava era a sensação de pensamento único que ela compreendia haver ali, e se ela tinha lutado contra o que ela entendia como pensamento único no posicionamento do PT [no impeachment de Dilma], não poderia fazer algo semelhante. É um antipluralismo nas ideias, nas reivindicações, nas veiculações, na capacidade de inserir várias classes sociais. Tenho dificuldade com todo esse flerte, esse pensamento único: único em sexo, único em politica, em comportamento, em dimensão social. Sou negro. As dificuldades que os negros tiveram para vencer essas questões foram extraordinárias e não se pode esquecer disso”.
Mito
Sobre o perigo da figura do herói nesse contexto político… “O herói vem, seja por insistência de uma demanda de um grupo social ou por ímpeto próprio, para promover essa ideia de libertação. Não adianta! Não funciona assim. Não precisamos de heróis. Fala-se do mito, essa palavra que está na moda. O mito do herói, do salvador. Não tem. A salvação é a permanência na labuta, na lida da vida, no dia a dia, no afazer, no discernir entre o melhor e o pior o tempo todo, nessa requalificação permanente que a gente tem que fazer do cotidiano com as coisas simples. A salvação é isso”.
Em tempo: respondendo se vai ter turnê do novo disco, Gil entregou um pouco mais de sua personalidade. “O Bem [Gil, filho dele], produtor competentíssimo e menino que está inserido nesse universo, ele queria necessariamente uma complementação do disco com uma temporada de shows. Estou assoberbado. Pedi: ‘Bem, dá um tempo, vamos ver’… Estou tentando convence-lo, mas vem as pessoas dizendo que tem mesmo que fazer os shows. Provavelmente vai haver. Sou assim: pra recusar uma proposta é uma dificuldade enorme. Não sei dizer não. Sou aderente a tudo que me pedem”.
(Publicado no site Glamurama em 11 de agosto de 2018)