Sancionada pelo presidente da República em exercício, Geraldo Alckmin, e publicada no Diário Oficial da União (DOU), no dia 11 de setembro de 2023, a Lei nº 14.668/23 concedeu a São Luís o título de Capital Nacional do Reggae. A norma é oriunda do projeto (PL) 81/2020, do deputado Bira do Pindaré (PSB-MA), que foi aprovado pela Comissão de Educação e Cultura (CE) em 8 de agosto, com relatório do senador Cid Gomes (PDT-CE).
Cid Gomes observou que, o reggae, gênero musical nascido na Jamaica no final dos anos 1960 e rapidamente difundido pelo mundo, tem um “inegável e contagiante vigor artístico, tanto na melodia, no ritmo e nos arranjos como nas letras”. Desde sua origem, ressaltou o senador, o reggae esteve vinculado à expressão da vida da maioria da população da Jamaica e “à ânsia de transformação, associada à promoção do igualitarismo, da negritude e do anticolonialismo”.
O movimento musical teve grande repercussão no Maranhão a partir dos anos 1970, em especial pelos moradores da ilha de São Luís. Há hipóteses de que o reggae tenha chegado pelas ondas de rádio emitidas do Caribe, ou por marinheiros que, descendo no porto, traziam discos para São Luís.
O relator observou que houve uma inesperada empatia entre o ritmo e a população maranhense, essa mesma que desenvolveu formas poderosas de arte popular, como o bumba-meu-boi e o tambor de crioula. “Não há dúvida de que a origem africana, transformada em moderna expressão afrocaribenha, foi um fortíssimo fator que impulsionou essa convergência do reggae com o povo do Maranhão, com sua elevada participação de afrodescendentes”, destacou Cid Gomes no relatório. Chegando ao Maranhão, o reggae foi passando por transformações culturais que lhe deram feição peculiar, como registrou o relator.
– Seja pelo jeito de dançar reggae agarradinho, em pares que se enlaçam, que é único no mundo, seja pela presença tão difundida das radiolas – que são verdadeiras paredes de caixas de som montadas nas ruas e em outros espaços abertos –, seja, por fim, pelo surgimento de bandas, como a pioneira Tribo de Jah, em atividade desde 1986, chegando até a Orquestra Maranhense do Reggae – disse o senador, na votação da proposta –, “o reggae maranhense se transformou em uma expressão genuína da cultura nacional”.
Cid Gomes afirmou ainda que, visto inicialmente com preconceito pela cultura oficial, o reggae conquistou espaços a partir da periferia de São Luís e se tornou uma das marcas inconfundíveis da cidade, ao mesmo tempo que se espalhava pelo interior do estado.
– Temos hoje, no centro histórico da capital, o Museu do Reggae Maranhão, único museu do gênero fora da Jamaica, visitado por dezenas de milhares de pessoas a cada ano.
Conforme destacou o relator, o caminho que o ritmo e seus admiradores, a chamada massa regueira, percorreu ao longo dos mais de 40 anos em que aportou na chamada Jamaica brasileira foi marcado por preconceito, discriminação, estigmatização e até racismo.
Não se sabe ao certo como o reggae chegou ao Maranhão, mas o fato é que o ritmo jamaicano já está presente, desde meados de 1970, nas festas da cultura popular, em bailes, com pequenas aparelhagens, as radiolas, nas periferias. Algumas versões apontam que os maranhenses começaram a curtir o rimo ao sintonizar rádios caribenhas de ondas curtas.
Pesquisadora sobre o gênero, a especialista em Jornalismo Cultural e mestra em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Karla Freire, autora do imprescindível livro “Onde o Reggae é a Lei” (Editora Pitomba), diz que a hipótese mais provável é que o reggae tenha aportado no Maranhão trazido por marinheiros vindos da Guiana e de ilhas do Caribe.
– O que é comprovado é que, sim, alguns ritmos caribenhos eram escutados aqui através das ondas curtas, mas ninguém consegue dizer que o reggae chegou aqui através das ondas curtas do rádio. Então a hipótese mais provável da chegada do reggae aqui no Maranhão é mesmo através dos discos em vinil, que vieram pelo mar em navios que vinham da Guiana e de outras ilhas do Caribe. E aí, quando chegavam aqui, aportavam nos portos do Maranhão e os marinheiros chegavam aqui e usavam esses vinis para fazer escambo, trocavam por alimento, por bebida, por diversão, enfim, por coisas desse tipo.
Karla chama a atenção para o fato de que o ritmo não foi “imposto”, a partir de uma ação da indústria fonográfica, mas sim, caiu no gosto da população ludovicence de uma hora para outra. Ela aponta para a possibilidade de identificação pela proximidade com ritmos caribenhos, como o bolero, a salsa e o merengue, muito tocados em festas dos povoados negros e rurais do interior do estado, de onde parte da população que habita as periferias da capital São Luís é oriunda.
– No começo, o reggae era conhecido como música estrangeira lenta. As pessoas nem sabiam de onde vinha, que era da Jamaica, e não entendiam a letra também, porque as pessoas não entendiam a língua inglesa. Mas então a gente pode pensar, como é que as pessoas passaram a gostar tanto de uma música que não se sabia a origem, não se sabia nada sobre ela? É que o reggae conquistou primeiro uma juventude negra da periferia, prioritariamente. Então eram jovens negros que tinham o reggae, adotaram o reggae como um elemento de identificação cultural – afirma.
E foi essa população periférica, em sua maioria negra e pobre, que criou as particularidades que o reggae adquiriu no Maranhão, a começar pela forma de dançar. No estado, o reggae é majoritariamente dançado a dois, esse tipo de dança é chamada de “agarradinho” e, possivelmente foi desenvolvido em referência a forma como os ritmos caribenhos eram dançados.
– Aquela coisa assim: a festa vinha quente, tocava uma lambada, uma salsa, um merengue, aí vinha um reggae para dar uma esfriada. E é por isso, inclusive, que as pessoas dançam reggae agarrado, que é o reggae agarradinho, porque elas já estavam dançando aos pares e elas permaneciam aos pares. Como ninguém sabia o que era reggae, era uma música estrangeira lenta, uma música romântica e as pessoas continuavam dançando em casais – detalha Karla.
Outra semelhança apontada é em razão do ritmo, da marcação se assemelhar ao de manifestações culturais negras, muito fortes no estado, como o bumba-meu-boi e o tambor de crioula.
– A batida do reggae tem um contratempo, um baixo, um grave bastante acentuado e ela tem uma batida que lembra um pouco a batida do bumba-meu-boi, do tambor de crioula. Por isso que, de alguma forma, é muito fácil você encontrar a mesma pessoa, o mesmo cara, a mesma mulher que vai no bumba-meu-boi, no tambor de crioula. É uma pessoa que é fã do reggae – relata Karla.
– Eles fizeram uma releitura desse reggae e passaram a sentir. Então, há uma questão da batida das semelhanças musicais do reggae com as nossas tradições locais, que fazem com que o maranhense acabe se identificando. E, se a gente pensar que São Luís e a Jamaica são duas ilhas predominantemente negras, que têm uma ancestralidade africana em comum, muitos ritmos que lá surgiram fazem sentido para a gente. Então, o Reggae conquista primeiro a massa, vamos dizer, que são os regueiros. E muito tempo depois é que ele vai se disseminando pela cidade toda, é que a classe média vai também abraçando esse ritmo, mas no começo o reggae se popularizou de forma muito forte, muito evidente nas periferias – afirma.
Os regueiros do Maranhão também foram responsáveis pelos termos aos quais se referem para definir as músicas consideradas boas, bonitas, que agitam o salão, são as chamadas “pedras de responsa” ou simplesmente “pedradas” ou “pedras”. Outra especificidade é a forma como são nomeadas as músicas, chamadas de “melôs”, que geralmente fazem referência ao que se imaginava corresponder ao som de determinado trecho do reggae ou mesmo batizando com nomes de pessoas. A hipótese mais aceita é que essa forma de batizar as músicas foi uma estratégia que os DJs criaram, com objetivo de esconder a verdadeira identidade da música para evitar o acesso da concorrência.
Esses melôs são tocados pelas radiolas, equipamento em que são acopladas caixas de som, formando um “paredão”, similar aos sound systems jamaicanos, os sistemas de som utilizados na ilha Caribenha desde os anos 50 para animar festas ao ar livre na periferia de Kingston. Um dos mais famosos, o “Melô do Caranguejo” foi batizado em referência ao que se acreditava significar o refrão da música “White Witch”, da cantora norte-americana Andrea True Connection, que diz “White Witch’s Gonna Get Ya?” (“A bruxa vai pegar você”, no original, mas que soa como “Olha o caranguejo…, em português). Outro caso exemplar é o da música “Think Twice”, cantada pela canadense Donna Marie e que em São Luís, virou o “Melô de Poliana” ou de “My Mind”, gravada em 1976 por Hugh Mundell, rebatizada como “Melô de Valéria” e antes conhecida como “Melô dos Astros”.
Apesar de toda a criatividade, a relação do ritmo com a cidade não foi tranquila. No começo, o reggae era associado pelos jornais e mídias locais à violência e ao consumo de drogas.
– Quando você encontrava o reggae no jornal, era na página policial. Normalmente era facada no reggae, era operação da polícia, a polícia invadindo, as pessoas sendo presas, as pessoas passando por baixo da batida policial, tomando porrada. O reggae era o local onde aconteciam os crimes. E tudo isso porque o regueiro era marginalizado, tudo isso porque o ritmo era marginalizado, era acusado de ser uma cultura importada, uma aculturação. Então, durante muitos anos, o reggae foi muito marginalizado – explica Karla.
Outro ponto levantado é o preconceito devido ao fato do ritmo ter vindo de baixo para cima. As classes altas, identificadas com outros epítetos da cidade – “Atenas Brasileira” e “cidade fundada por franceses” – também discriminavam o ritmo e seus fãs.
– Durante muito tempo, o reggae foi estigmatizado, foi marginalizado justamente pela sua origem, além da origem que é jamaicana, negra, é oriundo de uma ilha pobre do Caribe, a origem também das camadas sociais de São Luís, que eram camadas menos privilegiadas, foram essas camadas que abraçaram esse ritmo. Então, a elite aqui de São Luís não viu com bons olhos – analisa Karla. – A gente tem embates fenomenais na década de 1990 nos jornais. A gente tem artigos de jornais publicados por membros da Academia Maranhense de Letras, onde há toda uma discussão sobre esse título de Jamaica brasileira, achando que é um absurdo: “Como é que a gente era Atenas brasileira por conta dos grandes poetas que a gente tinha nos séculos passados e, agora, a gente vira Jamaica negra, pobre, que não tem cultura, que não tem referência?…”. Era essa a discussão reinante entre as elites da cidade. Analisando reportagens de jornais impressos, a gente identifica que a maioria das notícias que apareciam sobre o reggae eram sempre relacionadas às notícias policiais. Era alguém que tinha sido morto, era uma batida policial. Dificilmente o reggae era visto como um local cultural.
Esse cenário começa a mudar, em meados dos anos de 1990, quando o som foi aos poucos conquistando espaço, ocupando clubes, promovendo eventos, shows, e foram surgindo novos programas de rádio e programas televisivos especializados em reggae. Isso acabou atraindo aliados, em especial a classe média, que passou a frequentar esses clubes. O reggae começou a ser consumido por pessoas da universidade, por artistas locais, poetas, escritores, jornalistas. São essas pessoas que vão começando a quebrar essa barreira social e é a partir disso que o reggae começa a se diversificar na ilha.
– À medida que a classe média foi abraçando o ritmo, à medida que a própria mídia foi mudando esse recorte, ao longo da década de 90 para os anos 2000, televisões, jornais, sites começaram a dar muito mais visibilidade à Jamaica brasileira, que identifica o maranhense, que é orgulho do maranhense, e aí vários símbolos, você tem as vários ícones, as radiolas, o dançar agarradinho, a figura do regueiro, as cores do reggae, o Bob Marley, você tem várias coisas que identificam a cidade e isso passa a ser muito mais explorado – relembra Karla. – E aí vai diminuindo um pouco o preconceito. Ele acabou? Não. Ele continua. Até porque o racismo não acabou, a elite ainda tem preconceito com as classes sociais menos favorecidas. Então a gente vê, sim, ainda muito preconceito com o reggae, mas isso já foi diminuindo bastante.
A jornalista pontua que mesmo tendo sido criado na Jamaica, o reggae só se firmou em São Luís e conquistou reconhecimento graças a sua originalidade.
– Não se trata de uma cultura importada, se trata de uma cultura nossa. A gente ressignificou o reggae. Você vê mudanças irem acontecendo como o surgimento de bandas, os diferentes tipos de reggae. Então, você vai vendo modificação no reggae, mas você não vê esse movimento enfraquecer a ponto de a gente dizer que o reggae está acabando em São Luís. O movimento do reggae em São Luís é muito genuíno e verdadeiro e, por isso, mesmo que hoje a gente reconhece São Luís como a “Jamaica Brasileira” – finaliza Karla Freire.
Aliás, quem faz parte dessa história do reggae no Maranhão continua lutando para acabar com a estigmatização recorrente e o preconceito estrutural. Um bom exemplo é o do Grupo de Dança Afro Malungos (GDAM), fundado em 1986 e que desenvolve trabalhos sociais para crianças e jovens através da arte, cultura e cidadania. Um desses projetos leva o ritmo para crianças, adolescentes e jovens das escolas públicas das periferias da capital. A iniciativa começou em 2006, com a criação do bloco do reggae, que sai durante o período do Carnaval. O coordenador do GDAM, Cláudio Adão explicou que a iniciativa é uma forma de trazer o debate sobre questões como racismo, preconceito, discriminação, de uma forma mais leve.
– A gente trabalha durante o ano todos nas escolas municipais e estaduais da periferia de São Luís através de palestras, rodas de conversas, oficinas de dança e música, isso tudo direcionado aos amantes da música reggae. A seleção é feita de forma simples, a gente divulga nas rádios comunitárias, nas redes sociais do grupo, nas rádios com programas de reggae. As pessoas interessadas, se forem menores de idade, o pai, mãe ou responsável tem que fazer a inscrição – explica. – E a gente conseguiu, através da mensagem do reggae, falar de racismo de uma forma muito mais fácil, de preconceito, homofobia, educação, denunciar a forma como a polícia nos trata. Para nós é uma ferramenta muito boa.
Adão realça a ligação que a população negra de São Luís tem com a cultura popular e o reggae.
– A gente anda junto, porque o reggae é primo irmão de uma expressão muito forte no Maranhão que é o bumba-meu-boi. Na morte do bumba-meu-boi tem barracões do reggae ao lado, do tambor de crioula e também do hip hop e do samba – conta.
Entre outras coisas, o GDAM tem participado ativamente de todas as edições do Festival Re(x)istência Fest, no Parque do Rangedor, em São Luís. Na terceira edição do festival, em 2023, com o tema “Amazônia é Agora”, o festival chamou atenção para a necessidade de preservação da floresta e de celebrar os povos originários, que são a base pioneira da cultura da região. No evento, o GDAM realizou o aplaudidíssimo “Chama pra Dançar!”, uma grande aula de reggae ao ar livre.
Apesar dos pesares, ou seja, mesmo com a discriminação e o preconceito, Cláudio Adão diz que o reggae foi capaz de criar uma imensa cadeia produtiva, que vai das radiolas e casas de show aos dançarinos e professores de dança que conseguem gerar renda, tendo o ritmo como carro-chefe.
– Infelizmente, durante praticamente 40 anos a gente foi vítima da sociedade branca, racista, vistos como marginais. A massa regueira sofreu muito. Isso diminuiu muito, mas através de estudos a gente foi mostrando que o reggae é o estilo de vida de uma cidade em que 73% da população é negra e que você tem o direito de escolher a música que você quer ouvir no final de semana – avalia. – A gente tem direito de consumir o reggae como uma forma de lazer, de trabalho e também de contribuir com a cadeia produtiva no Maranhão, através dessa ferramenta que é o reggae, inclusive com esse viés da cultura, do turismo e da economia solidária.
Essa mudança na forma de tratar o ritmo levou à criação do Museu do Reggae do Maranhão. Fundado em 2018, o espaço conta com diversos ambientes, onde homenageia grandes nomes do reggae maranhense que já morreram, tradicionais clubes de reggae de São Luís, como o Clube Pop Som, Clube Toque de Amor, Clube União do BF e Clube Espaço Aberto, algumas delas citadas na música “Regueiros Guerreiros”, da banda maranhense Tribo de Jah.
O museu também possui fotografias, vídeos e discos raros, além de muitas informações e promove atividades como aulas de dança, rodas de conversa, projeção de filmes. Tem ainda a “Quinta do Reggae”, atividade que ocorre de julho a dezembro e reúne toda a cadeia produtiva em torno do movimento (cantores, bandas, DJs, moda reggae, etc).
Cláudio Adão também conta que após o reggae ter atravessado a ponte que corta a cidade e separa os bairros mais ricos dos mais pobres da capital, o momento é de pensar na promoção de políticas pública voltadas para essa população periférica.
– A gente começou a ganhar alguns espaços políticos, nos partidos, associações, clubes e a mídia teve que dar espaço para nós, através dos programas de rádio e isso facilitou, mas ainda falta muito. É uma conquista, mas tem que estar atento. Estamos discutindo políticas públicas para o povo, independentemente de ser do reggae ou não, mas que são do povo preto da cidade de São Luís do Maranhão.
Aprenda com quem conhece
Alcunhado de “Doctor Reggae”, o jornalista e DJ paulista Otávio Rodrigues foi uma das pessoas que ajudou a difundir o reggae no Brasil e consolidar São Luís como uma de suas principais praças, quando morou na cidade, na década de 1990. Na capital maranhense, ele criou e apresentou programas como “Disco Reggae” e “Bumba Beat”, além do pioneiro “Roots Rock Reggae”, em 1982, o primeiro no dial brasileiro dedicado ao gênero from Jamaica, que foi ao ar pela Excelsior FM, de São Paulo, com direção de Maurício Kubrusly.
Foi Otávio Rodrigues quem grafou pela primeira vez na imprensa do Brasil a expressão “Jamaica brasileira”, com que São Luís viria a se tornar conhecida. Isso aconteceu em 1988, quando ele foi pela primeira vez ao Maranhão, escalado para escrever uma reportagem sobre o reggae na cidade para a revista Trip.
– Minha relação com o Maranhão é orgânica, me sinto como se tivesse nascido aí também. Morei na Ilha, viajei bastante pelo interior, fosse em busca de manifestações folclóricas, paisagens ou reggae – ou as três coisas juntas – lembra.
No dia 31 de outubro de 2004, Otávio Rodrigues publicou uma bonita matéria na revista Superinteressante, intitulada “Reggae: Paredão de som”, em que faz uma retrospectiva interessante sobre a chegada do ritmo no Brasil e sua posterior assimilação por São Luís. O seu texto é tão didático e instrutivo, que estamos transcrevendo a matéria na íntegra:
“Brilha a luz de João Carcará / Madre de Deus das estrelas que tem fé / Itanatty, brincadeiras cazumbás / Brilha a estrela de Antônio José / Banda Guetos e a Tribo que é de Jah / Brilha a estrela que urrou no Pindaré” (“Luzes e Estrelas”, de Inaldo Bartolomeu, Toada de Boi da Mocidade de Rosário, Maranhão, 1997).
Quarta-feira, 18 de setembro de 1996. O carro do Corpo de Bombeiros atravessou São Luís levando Antônio José Pinheiro Silva, o “Lobo”, morto um dia antes num acidente de carro. No longo trajeto entre o bairro de São Francisco e o Cemitério Jardim da Paz, no Maiobão, milhares de pessoas alinharam-se nas calçadas e acostamentos, acenando, gritando ou vertendo lágrimas. Antônio José não era coronel, deputado, ministro, jogador de futebol ou artista de TV. Era DJ de reggae, profissão pouco conhecida e nada nobre – mas isso apenas aos olhos da elite maranhense. Pra “massa regueira”, formada principalmente pelos excluídos, era um adeus emocionado e muito justo a um dos mais importantes personagens do reggae do Maranhão.
Antônio José era um cara bacana, estava sempre de bem com a vida. Começara, ainda moleque, tocando no Clube Quilombo, onde mexia com discos de vários gêneros, e não apenas reggae, o que decerto contribuiu para a variedade instigante de suas sequências. E foi ele um dos primeiros a encarar o público olhos nos olhos, no momento em que os equipamentos de amplificação e controle passaram a ser colocados em mesas, e não mais nos móveis monolíticos (que forçavam os DJs a trabalhar de costas). Suas performances incluíam cantorias, refrãos gostosos feitos no improviso e até scattings, à moda dos melhores da Jamaica. Uma de suas criações, “Menina Linda”, sobre música de Willie Lindo, será lançada agora neste final de 2004 pelo cantor maranhense Jorge Thadeu.
Naquela quarta-feira triste, quando o caixão do Lobo desceu à sepultura, coberto pelas bandeiras do Brasil e da Jamaica, salpicado por responsórios, fotos, camisas e outras lembranças atiradas por familiares, amigos e fãs, caía definitivamente a ficha de que o reggae no Maranhão era bem mais do que “coisa da negrada”, dos salões de periferia e clubes de chão batido. A massa regueira, que já havia dado prova de força elegendo vereador, estava ali, chorando sentida, mostrando que também era capaz de fazer um herói.
Para entender o significado das homenagens a Antônio José, é preciso voltar uns 30 anos no tempo, até o meio dos anos 70, quando esse jovem DJ ainda usava fraldas e o som da Jamaica começava a pegar no Maranhão. Naquela época, é bom lembrar, o reggae experimentava sua explosão na Inglaterra, não era cidadão do mundo como hoje. Bob Marley, por exemplo, trilhava o caminho das pedras e quase ninguém no Brasil nem sequer ouvira falar dele.
Acontece que na capital maranhense, assim como em cidades do interior, especialmente as da Baixada (junto ao litoral oeste do estado) e as dos vales dos rios Itapecuru e Mearim, havia quem desde os anos 60 sintonizasse emissoras de rádio do Caribe. Outro fator importante foi a proximidade do porto de Belém, onde marinheiros e descascadores de batatas de toda parte do mundo alimentavam o comércio de LPs e singles de segunda mão.
Foi no mercado do Ver-o-Peso, na capital paraense, em 1975, que o pioneiro Riba Macedo comprou seus primeiros discos de reggae. E então, com as joias embaixo do braço, começou a aparecer nas festas dos amigos discotecários de São Luís (era assim que se chamavam os DJs), sempre tentando uma brecha entre um merengue, uma disco music e um bolerão… “Ninguém gostava. Falavam pra mim: ‘Riba, larga mão desse negócio, isso é música de arraial!’”
A partir de 1976, quando botou nas festas seu Sonzão Guarany – na época, como era comum, um sistema de som com apenas duas caixas e dois toca-discos –, Riba conseguiu espalhar o ritmo jamaicano e inspirar a primeira geração do reggae no Maranhão. Surgiram DJs, radioleiros (donos de radiola, como são chamados os sound systems), clubeiros (donos de clubes, os salões de dança) e colecionadores. “Eu tocava Jesse Green, Jimmy Cliff, Desmond Dekker, Toots (Hibbert, líder dos Maytals). Quando aquele disco This Is Reggae Music, o de capa amarela, apareceu no Maranhão, eu já tinha o meu fazia tempo!”
A cena que se desenvolveu a partir daí se baseou principalmente no gosto pelo ritmo. O batidão típico da música jamaicana, superamplificado e distribuído entre um número cada vez maior de caixas acústicas, seduziu a galera nos salões. Mas havia também a mística do reggae, já que os maranhenses identificavam-se com o jeitão dos jamaicanos nas capas de discos, com fotos da vida em favelas, a maconhagem, os problemas dos negros com a polícia… Ora, não é preciso estudar sociologia pra notar que a realidade de uns e outros é bem parecida.
Dez anos mais tarde, dezenas de clubes e radiolas chacoalhavam a ilha – tem essa ainda: São Luís, como a Jamaica, é uma ilha. O reggae tornara-se uma diversão boa e barata, oferecia bailes com luz negra e, delícia das delícias, a oportunidade de dançar junto, no chamego, à moda das “serestas” – os bolerões bregas, muito populares no Nordeste desde sempre.
Nos anos 80, emergiram os “intelectuais” do reggae. Entre eles, Fauzi Beydoun, hoje líder da Tribo de Jah, e Ademar Danilo, que, graças à “massa regueira”, elegeu-se vereador em 1992, abrindo caminho para outros (em 2004, José Eleonildo Soares, o Pinto da poderosa radiola Itamaraty, foi o vereador mais votado da cidade).
De 1984 a 1987, Fauzi e Ademar apresentaram juntos o programa Reggae Night, na Mirante FM. Com conhecimentos da cultura jamaicana, inglês na pinta e bem fornidas estantes de discos, a dupla deu uma injeção de conhecimento nos ouvintes, abriu os microfones para outros conhecedores, como os veteranos Zequinha Rasta e Viegas, e pavimentou o que seria o melhor período do reggae no Maranhão, que vai de 1985 a 1995. Foi a era da música de grandes estrelas como Jimmy Cliff, Gregory Isaacs, Max Romeo, U. Roy, Doctor Alimantado, Dennis Brown, John Holt, Big Youth, I Jah Man e Jacob Miller, sem falar em outros, menos conhecidos, mas também brilhantes, como Eric Donaldson, Jimmy London, Lloyd Parks e Pat Kelly.
O grande decênio consagrou grandes radiolas, algumas com 80 caixas acústicas ou mais, formando paredões de notável efeito visual e sônico. Práticas comuns na Jamaica foram espontaneamente incorporadas, como a raspagem dos selos dos discos, para despistar os curiosos, e o confronto de radiolas em disputas que alcançavam o amanhecer. Sem falar no reggae de praia, precisamente o domingo no extinto Toque de Amor, na Ponta da Areia, um dos clubes mais queridos na categoria conhecida como “melô-banhô” – afinal, o mar está logo ali.
Clubes e programas de rádio popularizaram-se na mesma medida, ajudando a produzir personagens únicos. Por exemplo, os “traficantes de discos”, que iam dez ou mais vezes pra Jamaica a cada ano em busca das “pedras” – o tipo de reggae que agrada à massa, necessariamente baixudo e bem marcado, e de preferência exclusivo, já que uma sequência “destruidora” ou “avassaladora” podia, como pode ainda, determinar o sucesso de uma radiola.
E se consagrou também nesse período a concorrência desleal entre algumas radiolas, os roubos de música e até os tiros na noite escura. Igual à Jamaica. Mas, como diziam os Mutantes, “posso perder minha mulher, minha mãe, desde que eu tenha o meu rock’n’roll…”
Em 1995, o reggae já era um negócio extremamente lucrativo no Maranhão, o que fez crescer a barriga da maioria dos que já estavam no lance, bem como os olhos de empresários, promotores e radialistas que nada tinham a ver com a história. Os programas de rádio perderam o caráter informativo e cultural dos anos 80, tornando-se servis aos interesses de radioleiros e clubeiros. Na busca do santo graal da exclusividade e do lançamento de sucessos, muitas “pedras falsas” foram empurradas na goela dos regueiros.
Em 1996, uma loja de discos de São Luís começou a piratear as músicas de grande sucesso nas radiolas, lançando-as descarada e sistematicamente em coletâneas, sem pagar direitos aos autores ou editoras, mas cobrando preço de importado pelo CD. Isso contribuiu para que alguns radioleiros passassem a procurar artistas do terceiro e quarto escalões do reggae como, Honey Boy e Bill Campbell, com o propósito de fazer encomendas diretas de músicas. Até Joe Gibbs, famoso produtor e dono de estúdio na Jamaica, entrou na dança.
Com tecladinhos meia-boca e uma boa percepção das batidas que andavam a agradar os maranhenses nos salões, artistas e produtores atenderam ao chamado e acabaram por criar uma nova linguagem para o reggae local, algo que nem de longe lembra os clássicos de outros tempos, nem resvala no reggae eletrônico de boa cepa. Em sonoro e castiço português, ficou difícil aturar as radiolas maranhenses nos dias de hoje.
Outro aspecto que conta muito para esse sucateamento estético é a atitude dos novos DJs. Contrariando a ideia de que as coisas na Jamaica Brasileira iriam seguir curso igual às da Jamaica Jamaicana, como sempre e naturalmente aconteceu, os donos do microfone não desenvolveram as técnicas nem o conteúdo de suas ladainhas – algo que na matriz, de tão bem resolvido e relevante, acabou gerando nada menos que o rap. Com slogans repetidos até o esgotamento e, às vezes, embromando no inglês sobre as músicas, essa turma não acenou, até agora, com sequer uma filigrana de mudança. A grande promessa aí, infelizmente, desceu à sepultura naquela tarde de 18 de setembro de 1996.
Os muitos verões do reggae:
1969 – No tempo em que se fumava cachorro com linguiça, um jovem de 21 anos chamado Jimmy Cliff aparece no Brasil defendendo a canção “Waterfall” no Festival Internacional da Canção. O jamaicano vai ao programa do Chacrinha e grava um disco por aqui, Jimmy Cliff in Brazil, cantando até em português!
1971 – Caetano Veloso compõe “Nine Out of Ten”, durante o exílio em Londres e a inclui no álbum Transa. Diz a letra: “Caminhando pela Portobello Road ao som do reggae/ eu estou vivo…” Nesse mesmo ano, Luís Vagner e Paulo Diniz fazem parceria no primeiro reggae em português, “Bahia Comigo”, que aparece no LP Paulo Diniz (Odeon).
1979 – Os baianos Jorge Alfredo e Chico Evangelista (ex-Arembepe, uma das primeiras bandas de reggae do Brasil) entram com “Reggae da Independência” no Festival da Tupi.
1980 – Bob Marley vem ao Brasil. Joga bola, dá umas bolas, enche a cara de suco de frutas nas típicas lanchonetes do Rio… E se manda, sem cantar um “a”. Pouco depois, Peter Tosh faz um show histórico (e cheio de fumaça) no Palácio das Convenções, em São Paulo, durante o 2o Festival Internacional de Jazz. Ainda nesse ano, Gilberto Gil e Jimmy Cliff excursionam pelo Brasil arrastando milhares de pessoas ao Mineirinho (Belo Horizonte), Estádio da Fonte Nova (Salvador), Geraldão (Recife), Maracanazinho (Rio) e Portuguesa (São Paulo).
1986 – Os Paralamas, que já haviam apresentado o ska aos brasileiros em Cinema Mudo (1983) e O Passo do Lui (1984), aparecem com Selvagem? (EMI), um tesouro de gravões, porradas secas e efeitos dub. É referência até hoje. No mesmo ano, o guitarreiro Luís Vagner, um dos gurus do samba-rock, autor de “Camisa 10”, entre outros sucessos dos anos 70, lança o álbum Ao Vivo, ponto culminante de sua bem bolada fase reggae.
1987 – O bloco Olodum lança Egito Madagascar (Warner), disco seminal do samba-reggae criado pelo mestre Neguinho do Samba. Jimmy Cliff, Paul Simon, Bill Laswell e Michael Jackson, entre outros, pagam pra ver. “Pagam”, claro, é modo de falar.
1989 – Os pancadões do dancehall e do ragga explodem nos bailes blacks de São Paulo. O funk e o samba-rock, tradicionais no repertório de equipes como Zimbabwe, Chic Show e Black Mad, ganham a companhia do reggae moderno de Shabba Ranks, Admiral Bailey, Frighty & Colonel Mite, J.C. Lodge e Cutty Ranks.
1990 – Falar a Verdade, primeiro disco do Cidade Negra (CBS), ainda com Ras Bernardo nos vocais e produzido pelo baixista e dubman Nelson Meirelles, marca a entrada das bandas brasileiras de reggae nas grandes gravadoras. No mesmo ano, os Wailers de Bob Marley vêm pela primeira vez ao Brasil para uma série de shows memoráveis. O Circo Voador, no Rio, quase despenca.
1991 – O cantor e compositor jamaicano Gregory Isaacs chega para o primeiro e histórico show em São Luís. Mas esquece a banda na Jamaica! Pra não frustrar a massa regueira que lota o Estádio Nhozinho Santos, acaba rolando um improviso com integrantes da Tribo de Jah e Universal Youth (da Guiana Inglesa), entre um e outro pout-pourri disparado pelo DJ Natty Naifson. Vinte dias depois, já com o visto vencido, mas devendo um show na cidade, o cool ruler é protagonista de uma frustrada tentativa de fuga a bordo de um jatinho e vai parar na delegacia.
1998 – Correndo por fora, longe das grandes gravadoras e sem tocar no rádio, a Tribo de Jah torna-se ícone dos fãs de reggae brasileiro. O sucesso dos maranhenses acaba semeando o surgimento de uma legião de bandas rasta de garagem, adeptas do lema “Uma guitarra na mão e um baseado na cabeça”. Graças a Deus, há exceções. Entre os nomes dessa geração, destaque para o trabalho-solo do baixista e compositor Edu Sattajah, do paulista Leões de Israel, Gérson da Conceição, baixista, cantor e compositor maranhense, fundador do já extinto Mano Bantu, e os mineiros do Manitu.
2000 – Surgem as primeiras dub sessions em São Paulo, dando a largada na formação de uma cena de outsiders do reggae. Sem excesso de cores e boinas, a confraria mistura a cultura dos sound systems jamaicanos, piques de ragga, toques do dub europeu e ritmias brasileiras, que podem ir do funk carioca ao bumba-meu-boi. Nessa lista, DigitalDubs e Apavoramento (Rio), Lord Breu (Salvador), Léo Vidigal e Corpo Santo (Beagá), Yellow P, Dubversão e Bumba Beat (São Paulo), entre outros.
2002 – Gilberto Gil vai pra Jamaica e grava Kaya N’Gan Daya quase todinho nos estúdios Tuff Gong, de Bob Marley, gilberteando vários clássicos do rei do reggae. Participam as I-Threes (Rita Marley, Marcia Griffiths e Judy Mowatt) e a dupla Sly & Robbie.
2004 – Uma safra de bons nomes aponta para um futuro mais criativo no reggae brasileiro. No Rio, chamam atenção Reggae B. (banda alternativa de Bi Ribeiro, dos Paralamas), Gustavo “Black Alien” e Marcelinho da Lua. Em São Paulo, Vilson Dub (herdeira d’O Vaca de Pelúcia), Firebug (produzida pelo festejado baixista americano Victor Rice) e o combo de skazeiros do Sapobanjo.
A importância da Lei Júnior Black no Maranhão
Em maio de 2024, o plenário da Assembleia Legislativa do Maranhão aprovou, em primeiro turno, o Projeto de Lei nº 153/2024, de autoria do deputado Zé Inácio (PT), que instituiu a Política Estadual de Incentivo à Cultura Reggae. A finalidade do projeto era coordenar e desenvolver atividades que valorizem o reggae no estado, elevando seu nível cultural, profissional, social e econômico, bem como desenvolvendo-o e promovendo-o como instrumento cultural, de trabalho e empreendedorismo, de forma direta e indireta.
O projeto, que depois de sancionado passou a se chamar “Lei Júnior Black”, definiu como entes pertencentes à cultura reggae o conjunto de artistas, produtores, artesãos e desenvolvedores de gêneros musicais como reggae e assemelhados, as radiolas e os sound systems, os artesãos dedicados ao desenvolvimento de vestuário e adereços próprios dessa cultura, bem como os dançarinos, bailarinos, coreógrafos e as bandas e músicos do gênero. Na justificativa do projeto, o deputado Zé Inácio afirmou que, no Maranhão, a cultura reggae foi sendo difundida e fortalecida desde a década de 1970, abraçando todas as dimensões destacadas, sendo atualmente uma expressão cultural identitária.
No Brasil, desde 2012, o Dia Nacional do Reggae é comemorado em 11 de maio. Além disso, sob a Lei Federal 14.668, de 11 de setembro de 2023, a capital maranhense ganhou o título de Capital Nacional do Reggae. “Sendo assim, nada mais coerente do que uma política específica que vise fundamentar e direcionar ações em prol deste movimento que tanto colabora para a caracterização cultural do nosso Estado”, frisou Zé Inácio.
Diversos DJs, cantores, compositores e produtores culturais compareceram ao Palácio Manoel Beckman, sede da Assembleia Legislativa, para acompanhar a votação do projeto. Eles ocuparam a galeria da Casa e, logo após a votação, comemoraram a aprovação da matéria. Membros da Comissão Integrada do Reggae e Turismo de São Luís, entre os quais os DJs Natty Nayfson, Jorge Black, Levi James e Cláudio Adão (do GDAM), foram chamados pela presidente da Casa, deputada Iracema Vale (PSB), para comparecer ao plenário, logo após a votação. Eles agradeceram aos deputados e posaram para fotografias ao lado deles. “Para nós, esta data vai ficar como um momento histórico, pois é um reconhecimento a toda uma história de luta e resistência. O movimento reggae já faz parte da nossa cultura e merece esse reconhecimento”, afirmou Natty Nayfson.
Depois da Ordem do Dia, o deputado Zé Inácio ocupou a tribuna para agradecer aos demais deputados a votação e aprovação unânime de seu projeto. “Acho importante esclarecer que este projeto de lei não nasceu no meu gabinete. Trata-se de uma proposição que vem do anseio popular, de pessoas que atuam no dia a dia fomentando a cultura reggae no Maranhão”, explicou Zé Inácio. O parlamentar fez referência à presença dos DJs e produtores culturais, e citou, entre eles, os DJs Natty Nayfson, Jorge Black, Paulo Caribe, Pedro Pedra, o cantor Fábio de Jah, a produtora Maria Riana e o jornalista Otávio Rodrigues.
– Acho que este projeto contribuirá imensamente com a cultura reggae, porque passaremos a ter uma política estadual neste setor. Eu tenho certeza de que o governador Carlos Brandão vai sancionar esse projeto e orientar não somente a Secretaria de Turismo, como também a Secretaria de Cultura, para poderem fazer com que esta lei saia do papel após aprovação e nós possamos ter, de fato, uma política de incentivo à cultura reggae – ressaltou Zé Inácio. Tal como previa o deputado, o governador maranhense sancionou o referido PL, que se transformou na Lei Estadual nº 12.324, de 20 de junho de 2024.
A lei estadual foi, também, uma espécie de homenagem póstuma ao saudoso José Ribamar Santos, conhecido como “DJ Júnior Black”, considerado um dos maiores agitadores do reggae em São Luís. Júnior Black começou a trabalhar com reggae em 1977. Era eletricista e consertava aparelhagens de som em um dos primeiros locais de reggae de São Luís, o Pop Som, na Jordoa. Depois, Júnior montou a própria radiola ainda no fim dos anos 80, a Black Power, uma das mais famosas de São Luís. Durante a carreira, ele também viajou diversas vezes pra Jamaica e para Londres, onde garimpou sucessos para as festas no Maranhão. Junior Black criou ainda a Sonzão do Jr. Black, Rebel Lion e Irie FM, além do Bar Kingston 777. O DJ enfrentava problemas de saúde há alguns anos e fazia hemodiálise. Ele morreu no dia 16 de agosto de 2023, em São Luís, após complicações renais.
A informação do falecimento do DJ se tornou pública através do também DJ e produtor cultural, Ademar Danilo, que postou em uma rede social: “Com imenso pesar e o coração partido informo o falecimento do amigo @JuniorBlack777 [Júnior Black], o “General do Reggae”. É uma perda muito grande para todos nós que construímos o movimento reggae no Maranhão. Contribuiu grandemente na formação do Museu do Reggae, criou as radiolas Black Power, Irie FM e Rebel Lion, viajou muitas vezes à Jamaica. Siga em paz, irmão”.
Os maranhenses desembarcam em Manaus
Para falar da importância dos maranhenses na história de Manaus será necessário recordar rapidamente aquele que foi um dos maiores deles: o militar Eduardo Ribeiro Gonçalves, o primeiro governador negro do Brasil. Filho de Maria Florinda da Conceição, uma ex-escrava negra, já alforriada, e de um pai branco desconhecido, Eduardo Ribeiro nasceu na capital do Maranhão, São Luís, em 18 de setembro de 1862. Mãe solteira, Maria Florinda criou o filho sozinha na Rua da Cerâmica, no bairro João Paulo. Para sobreviver, o moleque ajudava sua mãe na venda de peixe frito e, apesar da miséria reinante na casa, tomou gosto pelos estudos.
Pouco se sabe a respeito da infância de Eduardo Ribeiro, uma vez que os registros de sua vida pública iniciam somente na adolescência. Aos 16 anos, começou sua militância no jornalismo crítico. Em “O Pensador”, jornal maranhense fundado por ele no fim do século 19, tecia críticas ao catolicismo e à elite econômica da região de São Luís. O jornal era assumidamente positivista e anticlerical, por isso seus integrantes foram perseguidos por grupos oligárquicos da região, o que incluía políticos, grandes comerciantes e representantes religiosos de alto escalão.
Além de “O Pensador”, Eduardo Ribeiro fundou “A Pacotilha”, onde também escrevia. Em razão da fama do jornal “O Pensador”, ele foi apelidado de “O Pequeno Pensador”, devido a sua pouca idade. Ainda no Maranhão tornou-se amigo pessoal de Aluísio Azevedo, escritor conhecido pela obra “O Cortiço”, de 1890. Aluísio foi articulista do jornal “O Pensador”. Apadrinhado por uma figura poderosa da região, Eduardo Ribeiro se formou numa das maiores instituições de ensino secundário do Maranhão: o Liceu Maranhense. Alguns anos depois, em 1881, viajou ao Rio de Janeiro, então capital do país, para seguir carreira militar. Em 1886, bacharelou-se em Ciências Físicas e Matemáticas, no Centro de Formação do Oficialato do Exército Brasileiro, da Escola Militar da Praia Vermelha. Já promovido do posto de alferes (cadete) a segundo tenente, ele é enviado para Manaus, no início de 1887.
Em agosto de 1887, Eduardo Ribeiro chega a Manaus. Antes de sua chegada, foi recolhido em Belém, para cumprir medida disciplinar. A causa de sua prisão foi sua adesão ao movimento republicano em pleno regime monárquico. A Proclamação da República aconteceu em 15 de novembro de 1889 e representou o fim do Segundo Reinado e o início do período republicano. Desde a Guerra do Paraguai, os militares fortaleceram-se como grupo social e almejavam maior participação na política. O Clube Militar no Rio de Janeiro se tornou local para discussões sobre as causas republicanas. Dom Pedro II, utilizando o Poder Moderador, impediu a participação militar na política brasileira durante o Segundo Reinado. E foi justamente um levante miliar o responsável pela deposição do segundo imperador brasileiro. Logo após a instalação da República, a família real foi exilada na França.
No início de 1890, o capitão do Exército Augusto Ximeno de Villeroy toma posse como primeiro governador do período republicano do Amazonas. Com a chegada de Villeroy ao poder, o tenente Eduardo Ribeiro se torna chefe de gabinete do governador, ocupando a alta cúpula administrativa do Estado. No dia 2 novembro de 1890, pouco antes da instalação da constituinte, Villeroy se licencia do cargo de governador, em razão dos conflitos com políticos locais. Por decreto do então presidente da República, Marechal Deodoro da Fonseca, Eduardo Ribeiro torna-se governador do Estado do Amazonas.
Em 13 de março de 1891, Eduardo Ribeiro outorgou a primeira Constituição Política do Amazonas, que deveria ser submetida ao primeiro Congresso do estado. Seis meses após sua chegada ao governo, em 4 de abril de 1891, Eduardo Ribeiro é afastado da administração do governo por seus adversários, inconformados com seu trabalho em favor dos mais humildes, principalmente pela concessão de lotes de terra pública para agricultores, que as elites consideravam um anátema. Ele retorna ao poder graças à pressão popular, em manifesto firmado por 363 pessoas entre as mais influentes da cidade. Eduardo Ribeiro permanece na administração do Amazonas até 5 de maio de 1891 quando transfere o cargo para Guilherme José Moreira, o barão de Juruá, na época 1º vice-governador. Apesar da sua curta administração, o militar teve seus serviços reconhecidos pelo Exército Brasileiro, sendo promovido a capitão de Estado-Maior e, logo em seguida, é transferido para o Rio de Janeiro, onde assumiu o magistério, tornando-se professor de Matemática na Escola Superior de Guerra. O ex-governador ficou distante do Amazonas, mas não da política.
Em março de 1892, após uma fase de instabilidade, em que se sucederam vários administradores, Eduardo Ribeiro foi reconduzido ao posto de governador, com o apoio do então presidente da República Floriano Peixoto, em substituição a José Inácio Borges Machado, que por sua vez substituía interinamente Taumaturgo de Azevedo, intimado a deixar o governo no dia 26 de fevereiro. Empossado em 11 de março, Eduardo Ribeiro dissolveu o Congresso Legislativo e convocou novo Congresso Constituinte, que promulgou a Constituição estadual de 23 de julho de 1892, garantindo sua permanência no governo por mais quatro anos. Em fevereiro de 1893 sofreu uma tentativa de golpe por parte de um grupo de oposição liderado pelo major Tristão e apoiado pelo Partido Nacional do oligarca Constantino Nery. Após um enfrentamento armado, conseguiu manter-se no poder e enviar alguns revoltosos para Belém, embora Constantino Nery tenha permanecido em Manaus.
Seu segundo mandato é marcado pela rápida modernização da capital amazonense, por intervenções urbanas, por edifícios grandiosos e pela instalação de equipamentos turísticos, entre outras coisas. O Amazonas, nos últimos anos do século 19, vivia a pujança do ciclo da borracha, em razão disso havia recursos disponíveis para a realização de obras monumentais. O Palácio da Justiça, o Reservatório do Mocó, a ponte de ferro Benjamim Constant, o Teatro Amazonas, dentre outros, são obras do período da belle époque, que foram iniciadas no segundo mandato de Eduardo Ribeiro, viabilizadas ou finalizadas na gestão dele. O Palácio da Justiça, por exemplo, inaugurado em 1900, já no mandato de Ramalho Junior, foi uma obra iniciada no segundo mandato de Eduardo Ribeiro. O Teatro Amazonas, maior símbolo da capital, cuja construção estava paralisada desde 1886, teve sua conclusão no governo de Eduardo Ribeiro – mas só seria inaugurado no mandato de Fileto Pires Ferreira, em 31 de dezembro de 1896. Além disso, Eduardo Ribeiro criou a Imprensa Oficial, iniciou o embelezamento das principais avenidas da cidade e dotou Manaus de iluminação pública, água tratada, esgotamento sanitário e um moderno sistema de viação, com bondes elétricos.
A seu pedido, no dia 17 de agosto de 1895, o Congresso dos Representantes do Estado do Amazonas reformou a Constituição estadual. A última Constituição amazonense do século 19 estabeleceu a eleição de governador e vice-governador por sufrágio direto e voto aberto em todo o estado. Seu segundo governo chegou ao fim em 23 de julho de 1896. No fim do mandato de governador, Eduardo Ribeiro se candidata ao Senado, conseguindo uma das vagas para representar o Estado do Amazonas. Entretanto, a partir de 1889, começa a enfrentar sérios problemas de saúde. Viaja para o exterior e por cidades brasileiras, retornando à capital amazonense somente em 5 de setembro de 1900. Até que, na madrugada do dia 13 de outubro de 1900, Eduardo Ribeiro é encontrado morto, aos 38 anos, supostamente por suicídio. “Suicidara-se no próprio quarto de dormir, uma sala junto a varanda, com janelas para quintal e pátio. Tinha enlaçado no pescoço uma corda de mosqueteiro – uma corda de cor verde – que pendia do armador. Eduardo Ribeiro jazia com a cabeça para o lado direito, sentado no soalho, a cabeça e o tronco apoiados na parede, as pernas estendidas ao comprido, os pés ligeiramente cruzados”, noticiou o jornal A Federação, na edição de 25 de outubro de 1900.
Há controvérsias a respeito. Supostamente, o ex-governador Eduardo Ribeiro, que tinha inimigos poderosos entre os políticos locais (o futuro governador Constantino Nery era seu desafeto declarado), morreu em sua residência, durante a madrugada, logo após ter ingerido um copo de leite quente para combater a insônia. Foi armada uma pequena cena no local, com uma corda tendo sido amarrada no seu pescoço para simular um enforcamento. Seria o primeiro caso de um suicida que se enforca sentado no assoalho do próprio escritório, com as pernas esticadas, sem deixar nenhum bilhete de despedida para o tresloucado gesto. O médico que o examinou nas primeiras horas da manhã garantiu que ele havia sido envenenado, mas teve que deixar a cidade às pressas no mesmo dia.
Vários autores, como o historiador Mário Ypiranga Monteiro, contestam a hipótese de suicídio. Ypiranga afirma: “um médico italiano que vinha acompanhando o doente, estranhou aquela cena tão pouco revestida de naturalidade, chegando ao clímax de suspeita de homicídio, de assassinato!’’. Outro que não acredita na história do suicídio é o advogado, escritor e historiador Robério Braga, ex-presidente da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. Em artigo publicado no jornal A Crítica, no dia 30 de março de 2024, intitulado “A causa da morte de Eduardo Ribeiro”, ele assim se manifestou:
Cercada de subterfúgios para muita gente, notadamente historiadores de superfície, como dizia o mestre Arthur Cézar Ferreira Reis – raciocínio corroborado de forma ainda mais forte pelo saudoso Mário Ypiranga Monteiro –, ao falarem daqueles que se atrevem a escrever por informações de terceiros, sem pesquisas sérias e aprofundadas que vão penetrando fundo nas notícias, em outros autores e nos documentos de época, a morte do ex-governador Eduardo Gonçalves Ribeiro, em 1900, ficou cercada de mistérios, apesar da denúncia/revelação feita por ocasião do sepultamento do seu corpo.
Os laudos de exame cadavérico, o inquérito na polícia e os processos judiciais, inclusive sobre herança e patrimônio, parece que tiveram sumiço provocado por interesse de personalidades ou de grupos políticos que com ele disputavam a hegemonia partidária e eleitoral no Amazonas naqueles anos de ouro da exportação de borracha.
Tempos mais tarde, Mário Ypiranga, com autoridade, assinalou informações sobre a causa da morte, o que também fizeram, mas sob ótica mais amena, Edmundo Fernandes Levy, Agnello Bittencourt e Júlio Uchoa em livros distintos, e, ainda recentemente, eu próprio fiz na obra que dei a público sobre a vida e obra desse grande brasileiro.
Vítima de ira política e perseguição eleitoral, Ribeiro vinha sendo prejudicado por grupos com interesse econômico nos cofres estaduais, o que se confirma, também, quando por duas vezes o impediram de assumir a vaga de senador da República para a qual fora eleito como representante amazonense, em 1897. E isso foi feito por meio da atuação da famigerada Comissão de Poderes do Legislativo que, como se sabe, atendia às ordens do Governo Federal que sempre estavam bem sintonizadas com as “opiniões” dos coronéis estaduais, os quais, na oportunidade, estavam em oposição a Ribeiro.
Figura pouco ou quase nunca referida na trajetória do “Pensador”, mas que com ele conviveu de maneira muito próxima, inclusive, quando do tratamento das “doenças nervosas” que o atribuíram, o tenente José Fernandes Barbosa revelou, em várias ocasiões, ao genitor de mestre Mário, que o governador fora assassinado por envenenamento levado a efeito por meio de ervas recambiadas de Santarém do Pará, ervas estas que o dr. Hermenegildo de Campos apresentou como “trombeteira” ou “datura arbórea”, as quais teriam efeito narcótico e das quais os índios extraíam sumo excitante do tônus muscular que vinha a gerar alucinações auditivas e angústia em quem as consumisse, sintomas que, por tudo que se conhece em livros, depoimentos antigos e jornais da época, era o que se atribuía a Ribeiro.
Esse depoimento que Mário Ypiranga refere em sua obra “O Aguadeiro”, em 1977, coincide com muitas informações que foram sendo repassadas, ano após ano, a respeito desse episódio lamentável e criminoso que levou Eduardo Ribeiro à morte, cenário que veio a permitir a formação de extenso e poderoso grupo político que dominou o Estado por longos anos e até a revolução de 1930. Teria havido conluio político que levou a essa operação criminosa planejada para eliminar aquele que se constituiu em grande líder em sua época? Aquele que vencera inúmeras resistências eleitorais, políticas, partidárias e militares, e, de forma inconteste, realizara governo que, à distância, pode ser considerado de excelentes resultados, ainda que possam ser assinalados percalços e equívocos como sucede em qualquer outro por mais bem intencionado que seja o líder e bem gerenciada que seja a Administração. Seguirei procurando descobrir mais documentos e informações além do que reuni a respeito, mas, à título de provocação, bem que os laboratórios e as universidades poderiam fazer ensaios para confirmar a tese de Hermenegildo de Campos sobre os resultados da aplicação dessa erva “trombeta cheirosa”. Seria um bom caminho obter essa comprovação científica.
Não há conclusão até hoje sobre a verdadeira causa da morte de Eduardo Ribeiro, se suicídio ou homicídio. O que sabemos é que Eduardo Ribeiro, assim como qualquer outro político, teve, durante sua carreira, inúmeros conflitos. Apesar do fato anterior, não podemos atribuir a esses indivíduos a culpa pela morte misteriosa. O que não podemos negar é a sua contribuição para a modernização do Estado do Amazonas. Nem o simbolismo que seu nome carrega, desde suas intervenções urbanísticas até a sua representatividade, como o primeiro homem negro governador de um estado brasileiro. E mais: governador de um dos estados mais ricos do Brasil, no século 19. Diante disso, devemos celebrar as conquistas desse homem que morreu fisicamente, mas não simbolicamente.
A cultura negra abraça a cidade do Rio Negro
Localizado na Zona Centro Sul de Manaus, o bairro da Praça 14 de Janeiro é um dos mais antigos da cidade, tendo sido fundado em 1892. Ao longo de 133 anos de História o bairro teve diferentes nomes. Nos primórdios era conhecido como Praça da Conciliação. Em 1892, por proposta do Intendente Sérgio Pessoa, passou a se chamar Praça Fernandes Pimenta. Nesse mesmo ano, através de nova proposta, dessa vez do Intendente Antônio Dias dos Passos, recebeu o nome de Praça 14 de Janeiro. Esses três nomes, Conciliação, Fernandes Pimenta e 14 de Janeiro, fazem alusão à Revolta de 14 de Janeiro de 1892, que teve como causa as disputas políticas entre os partidos Democrático e Nacional.
No começo daquele ano, um grupo de cidadãos revoltados com a situação política do Amazonas, tendo na liderança Almino Affonso, Leonardo Malcher e Lima Bacuri, resolveu apear do poder o governador da época, Thaumaturgo de Azevêdo, responsável direto pelo fracasso da administração estadual. Apesar das volumosas receitas oriundas da exportação da borracha, o estado estava praticamente falido, com atraso no pagamento do funcionalismo e de fornecedores, obras de infraestrutura paralisadas e a miséria se alastrando na periferia da cidade. O conflito armado teve início em frente ao Palácio do Governo, na Praça D. Pedro II, onde funcionou a antiga Prefeitura Municipal de Manaus. O soldado João Fernandes Pimenta, do Esquadrão de Cavalaria do Batalhão de Polícia Militar do Estado, que guardava a entrada do Palácio de Governo, tombou com um tiro no peito. Foi a única baixa fatal da escaramuça.
O movimento revoltoso terminou em 27 de fevereiro de 1892, com a deposição de Thaumaturgo de Azevêdo e a nomeação provisória de José Inácio Borges Machado, que logo seria substituído por Eduardo Ribeiro. Em homenagem ao soldado morto, o bairro, que tinha o nome de Praça da Conciliação, passou a chamar-se Praça Fernandes Pimenta. Posteriormente, foi renomeado com a data da morte do soldado, 14 de Janeiro. Em 1917, o Intendente Sérgio Pessoa propõe um novo nome para o lugar, dessa vez Praça Portugal, uma homenagem à colônia portuguesa residente em Manaus. O administrador municipal não considerava digna a lembrança de uma revolta armada, conforme deixou registrado no decreto. Essa nomenclatura não caiu no gosto dos moradores do bairro, que continuaram a chamá-lo de Praça 14 de Janeiro e é assim que o bairro se chama até hoje.
No período em que o bairro surgiu, Manaus começou a receber um grande contingente de trabalhadores oriundos do Maranhão – terra natal do governador Eduardo Ribeiro –, em sua maioria ex-escravos, para atuar nas grandes obras de melhoramento urbano que estavam sendo executadas na cidade. Esses operários passaram a residir na região da Praça 14 de Janeiro, imprimindo, até hoje, sua identidade através de manifestações artísticas e religiosas afro-brasileiras. Foi no bairro que surgiu o primeiro grande boi-bumbá de Manaus, o Caprichoso (1913), os primeiros terreiros de candomblé e umbanda, a primeira Festa do Divino e a primeira escola de samba da cidade, a Escola Mixta de Samba da Praça 14 de Janeiro (1946). O bairro possui outras construções e lugares marcantes como o Santuário de Nossa Senhora de Fátima, construído entre 1942 e 1975, o Santuário Paróquia de São José Operário, construído entre 1949 e 1967, a Escola Estadual Plácido Serrano, a Escola Estadual Luizinha Nascimento, a Comunidade do Quilombo do Barranco de São Benedito e o Grêmio Recreativo Escola de Samba Vitória Régia, fundado em 1975.
Outro bairro que recebeu um grande contingente de imigrantes maranhenses foi a Cachoeirinha, também na zona sul. Projetado em 1892 por iniciativa do governador Eduardo Ribeiro, o bairro da Cachoeirinha surgiu no apogeu da belle époque e visava basicamente expandir o perímetro urbano da cidade. O encarregado de idealizar o projeto do novo bairro foi o engenheiro Antônio Joaquim de Oliveira Campos, que elaborou um plano piloto em uma área de 15 mil km², cujo principal ponto de referência era um caudaloso igarapé que, na vazante, formava uma forte corredeira chamada “Cachoeirinha de Manaus”. O igarapé de águas negras e transparentes ficou conhecido como “Igarapé da Cachoeirinha”.
O bairro teve origem a partir do chamado “caminho da Cachoeirinha”, uma pequena trilha de barro que começava no Igarapé de Manaus e terminava em uma pequena corredeira situada no curso final do Igarapé da Cachoeirinha, à jusante da Ponte Ephigênio Sales, que liga a velha Caxuxa ao bairro de Educandos. Nos primeiros tempos da Província, por volta de 1830, havia ali uma grande plantação de anil, época em que Manaus explorava e exportava a droga. A plantação era de propriedade da Fazenda Nacional. O recanto aprazível, tão elogiado pelos viajantes que visitaram a Vila da Barra do Rio Negro, era procurado para os piqueniques e banhos domingueiros. A estrada (ou “caminho”) para a Cachoeirinha de Manaus foi aberta em 1864, gastando-se a fabulosa soma de 400 mil réis. Com a criação do novo bairro, a antiga estrada se transformou na continuação da Avenida Sete de Setembro e, a partir do cruzamento com a Rua Waupés, passou a se chamar Rua Humaitá.
A nascente do Igarapé da Cachoeirinha ficava em um olho d’água, conhecido como “Bica”, localizado no quintal do Instituto Montessoriano, na Rua Paraíba, e dali descia do bairro de São Francisco em direção à Cachoeirinha, seguia paralelo à Rua Belém, passava pela Feira Livre de São Francisco e saía atrás da Vila Mamão, dali seguindo pela atual “Manaus Moderna”, já nos fundos do antigo Sanatório Adriano Jorge (SAJ). Bica é um termo arcaico, significando aquilo que entre nós é vulgarmente chamado de fonte de água potável, córrego, pequeno canal. Em Portugal, de onde procede o termo, é sinônimo de fonte ou regato. A Bica original existe até hoje. Está localizada nos fundos do condomínio Central Park e foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Amazonas (Ipham) como patrimônio da cidade.
No início apenas um pequeno córrego repleto de piabas, o Igarapé da Cachoeirinha se avolumava na “Manaus Moderna” (aquele trecho urbanizado em 1983, entre as ruas Codajás e Valério Botelho), depois que recebia seu principal tributário, o famoso Igarapé do Segundo, provavelmente o santuário onde milhares de moleques aprenderam a nadar. Ainda no Igarapé do Segundo, uns 50 metros antes da confluência entre os dois igarapés, funcionou durante muito tempo uma espécie de lavanderia pública a céu aberto, conhecida como “Pontão das Lavadeiras”. Era dali que saía o famoso bloco carnavalesco “Cordão das Lavadeiras”, formado quase que exclusivamente por arigós, negros e mulatos.
Na Estrada do Aleixo, nas imediações da atual sede da Secretaria de Produção Rural, (Sepror), no sentido Rua Paraíba-Bola do Coroado, havia um ramal à direita que terminava no bairro de Petrópolis. No início do ramal havia uma placa de madeira com os dizeres “Furna da Onça”, já que se tratava de uma espécie de picada no meio da selva, quase intransitável para veículos. Na verdade, Furna da Onça era o nome de um balneário público localizado no curso médio de um majestoso igarapé de águas cristalinas e correnteza absolutamente indescritível, de tão violenta. Quem não soubesse nadar como Johnny Weissmueller, o eterno Tarzan dos Macacos, não se atreveria a entrar n’água. Muitos incautos morreram afogados no local.
A única birosca do local, que vendia exclusivamente Cocal, peixe frito e caldo de cana, era propriedade do maranhense Pedro Inácio, um sujeito bonachão que divertia os fregueses garantindo rezar diariamente para ser o segundo em tudo: segundo homem mais bonito da cidade, segundo homem mais rico da região, segundo maior fornicador do bairro, segundo melhor sanfoneiro de forró, segundo maior devoto de São Benedito e por aí afora. Sua explicação possuía certa lógica:
– Ser o primeiro em qualquer coisa atrai inveja, mau olhado, panema e acaba em confusão, morte, peixeirada. Já pra quem é o segundo, ninguém liga, ninguém dá a menor importância – dizia candidamente. – Pra mim, bom mesmo é ser o segundo!
O maranhense passou a ser conhecido como “Pedro Segundo”, depois virou simplesmente “seu Segundo” e o igarapé foi batizado com o seu apelido. Na verdade, o Igarapé do Segundo era um dos vários braços à esquerda do Igarapé do Mindu, cuja nascente está localizada no atual bairro Cidade de Deus, nos confins da zona leste. O curso principal do Igarapé do Mindu atravessava o bairro de São José Operário, descia em direção ao bairro do Coroado e depois seguia paralelo à atual Avenida Efigênio Sales, nomeando uma dezena de “banhos” particulares (Las Palmas, Tucunaré, Guanabara, etc.), atravessava a Rua Recife, se transformava no famoso Balneário do Parque Dez de Novembro e dali seguia até o Parque dos Bilhares, onde desaguava no Igarapé de São Jorge, abaixo da Cachoeira Grande. O Igarapé do Segundo, infelizmente, também foi aterrado. Parte do seu antigo leito cheio de corredeiras e cercado de buritizais deu lugar ao campo de futebol da antiga Centrais Elétricas do Amazonas (Ceam) e a diversas ruelas apinhadas de barracos, mocambos e palafitas, que descambam na “Manaus Moderna”, a partir da famosa Rua Raquel, em Petrópolis.
Com exceção da Rua General Glicério, batizada pelo próprio governador Eduardo Ribeiro para homenagear o republicano e abolicionista Francisco Glicério, companheiro de Quintino Bocaiúva, Benjamin Constant e Ruy Barbosa na jornada de 15 de novembro de 1889, data da Proclamação da República, todas as demais ruas do novo bairro homenageavam os municípios amazonenses. As ruas no sentido Norte-Sul começavam no Grupo Escolar Getúlio Vargas e arredores, e terminavam no Igarapé do Quarenta/Educandos: General Glicério, Waupés (atual Castelo Branco), Camaçari (atual Carvalho Leal), Borba, Urucará e Maués. As ruas no sentido Leste-Oeste começavam no Igarapé do Mestre Chico e terminavam no Igarapé da Cachoeirinha: Antimari, Humaitá, Ajuricaba, Canutama (atual Ipixuna), Santa Isabel, Silves (atual Costa e Silva), Manicoré, Itacoatiara, Tefé, Parintins, Coari (atual J. Carlos Antony), Codajás e Barcelos.
A nascente do Igarapé do Mestre Chico ficava localizada nas imediações do Boulevard Amazonas, provavelmente em algum olho d’água existente abaixo do atual viaduto que une o Boulevard Amazonas à Rua Paraíba. Conhecido como Igarapé da Terceira Ponte, Igarapé da Ponte Metálica e Igarapé do Teodósio, ele ficou conhecido como Igarapé do Mestre Chico em homenagem ao cidadão Francisco José dos Santos, que chegou a Manaus em 1873, aqui ficando até 1888. Ele foi mestre do Setor de Carpintaria do Instituto de Educandos Artífices e depois Fiel de Tesoureiro da Delegacia Fiscal.
O velho Chico foi um dos primeiros moradores da Cachoeirinha, residindo na Rua Humaitá. Ele zelava pelo igarapé que corria límpido, ribanceira abaixo, podando a vegetação das margens que impediam o acesso de populares ao local e recolhendo o lixo que alguns moradores teimavam em lançar em suas águas. Mestre Chico só perdia a esportiva com a baderna da meninada brincando de “manja” dentro d’água, que, vira e mexe, afundavam sua canoa de estimação. Seu pioneiro trabalho de conservação ecológica é relembrado até hoje.
A Rua General Glicério acompanhava o Igarapé do Mestre Chico, que separava a Cachoeirinha do bairro da Praça 14. A Rua Maués acompanhava o Igarapé da Cachoeirinha, que separava a Cachoeirinha dos bairros de São Francisco, Petrópolis, Raiz, Crespo e Betânia. Os dois igarapés hoje estão mortos e enterrados sob o peso de centenas de palafitas, oriundas da favelização crescente da cidade.