Programa Rouanet Norte

CAPÍTULO 3 – De como a ZFM virou uma nova Babilônia

O pega-pra-capar da ditadura militar nos anos de chumbo
Postado por Simão Pessoa

Quando as tropas do general Olympio Mourão saíram de Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro, na madrugada de 31 de março de 1964, deram início, de forma quase acidental, a um dos movimentos de transformação mais profunda da vida empresarial brasileira. A partir daquele dia, e por longos 21 anos, os militares e um grupo de técnicos escolhidos por eles (os chamados “tecnocratas”) passaram a dar as cartas. Os cinco presidentes militares criaram, ao sabor das suas inclinações ideológicas, talentos e preconceitos pessoais, um modelo econômico que mudou a face e as entranhas do País.

Autoritário e pragmático, esse modelo tinha o Estado como centro dinâmico e Brasília como Meca. As empresas nacionais e estrangeiras tinham que se curvar diariamente em direção à capital, em busca de licenças, créditos e oportunidades. Ancorados no poder do AI-5 e na mobilização de recursos do Estado, Arthur da Costa e Silva, Emílio Médici e Ernesto Geisel criaram setores industrias a partir do zero (como a petroquímica, as telecomunicações e a informática) enquanto outros, incipientes nos anos 60, cresceram para além do que seus fundadores poderiam sonhar. Esse foi tipicamente o caso das empreiteiras e de outras empresas ligadas ao setor de infraestrutura, que se beneficiaram diretamente do investimento estatal do período.

O fato é que em março de 1985, quando o general João Batista Figueiredo saiu pelos fundos do Palácio do Planalto, recusando-se a entregar a faixa presidencial a José Sarney, o cenário empresarial do País era irreconhecível. O Brasil continuava pobre e injusto, tinha um estado semifalido e convivia com taxas grotescas de inflação, mas havia se transformado, aos trancos e barrancos, na 8ª economia industrial do planeta. Algumas de suas empresas já se contavam entre as maiores do mundo.

Rememorar pequenas histórias é o suficiente para dar uma pálida ideia sobre tudo que aconteceu durante os anos de chumbo. O advogado Mario Garnero foi um empresário que surgiu nesse período. Em 1964, recém-saído da faculdade, dirigia em São Paulo a campanha de Juscelino Kubitschek para presidente. A eleição estava marcada para 1965. O golpe militar abortou a eleição, Juscelino foi cassado (embora tivesse 65% das intenções de voto) e o então jovem advogado, depois de ter sua casa revistada, trocou a política pela vida empresarial.

Em 1970, quando Delfim Netto comandava a economia, ele tornou-se diretor de relações industriais da Volkswagen. A partir de 1974, como presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), passou a conviver de perto com o poder militar. Em 1976, valendo-se dos seus contatos internacionais e do aval do governo, organizou em Salzburgo, na Alemanha, um suntuoso encontro empresarial com milhares de participantes. Nessa época do governo Geisel, o Brasil era a vitrine do capitalismo emergente e Garnero consegui reunir 80 sócios para montar o banco de negócios Brasilinvest. “Cada um entrou com US$ 250 mil e juntamos um capital de US$ 20 milhões”, conta ele.

Seus problemas começaram mais tarde, quando o governo do general Figueiredo, de quem Garnero era amigo, induziu o Brasilinvest a associar-se à NEC japonesa numa joint-venture para a produção de centrais telefônicas digitais no Brasil. “A proposta da Philips era melhor, mas a tecnologia da NEC interessava ao governo”, lembra. As coisas na época funcionavam assim. Era pegar ou largar. Garnero pegou e tocou o negócio com sucesso até março de 1985, quando Figueiredo deixou a presidência. No primeiro dia do governo Sarney, a Nova República ordenou a intervenção no Brasilinvest. A partir daí, Mario Garnero viveu seu inferno astral. Foi coagido a se desfazer da NEC, que perdeu as encomendas do governo, e a empresa foi parar nas mãos da Globo. Levou 10 anos para Garnero mudar a situação do Brasilinvest na Justiça.

Decisões de governo, durante o período militar, eram tão importantes quanto informações de governo. A Zona Franca de Manaus foi criada nesse período e serviu de plataforma para muitas empresas que perceberam a oportunidade. Os projetos da indústria de base irrigaram setores inteiros com crédito subsidiado. Mudanças institucionais eram constantes e traziam embutidas grandes oportunidades. Veja-se o caso de Ronald Levinhson, dono da famosa e extinta caderneta de poupança Delfim.

Ele começou seu negócio com uma informação privilegiada que antecipava uma mudança. Em 1964 era consultor e encontrou na rua, no Rio de Janeiro, o economista Mário Henrique Simonsen, que trabalhava próximo ao governo Castelo Branco. “O Simonsen me disse que eles iriam mudar a lei que dava estabilidade aos empregos do setor privado”, contou Levinhson. Em vez de empregos estáveis, os trabalhadores teriam o FGTS. Pela lei, seriam alocados no FGTS 8% dos recursos das folhas de pagamento do Brasil, que seriam usados para financiar habitações de classe média. Era uma montanha de dinheiro e o consultor vislumbrou um grande negócio. “Comprei cinco sociedades de crédito imobiliário”, lembra.

Nos anos 70, quando surgiram as cadernetas de poupança, também com a finalidade de atrair recursos para a habitação, ele comprou a Delfim. Com métodos agressivos de publicidade, a empresa chegou a 1982 com depósitos de US$ 230 milhões. E então o vento de Brasília mudou. O governo decidiu que era melhor ter os recursos da poupança nos bancos comerciais e uma série de instruções do Banco Central liquidou o negócio de Levinhson. “Fui perseguido pelos militares porque, mesmo sendo um homem de direita, sempre protegi meus amigos comunistas”, diz o empresário, que hoje é dono da UniverCidade, uma instituição de ensino carioca.

Esse tipo de ambiente econômico hoje tem nome científico: “crony capitalismo”, ou “capitalismo de compadres”, cunhado pelos economistas anglo-saxões para definir modelos asiáticos baseados no poder de Estado e no favorecimento dos apaniguados. Isso não explica o que aconteceu no Brasil durante a ditadura, mas é parte da explicação. Havia muito poder e muito dinheiro concentrados em Brasília, a imprensa estava sob censura, e isso criou distorções. Os amigos se deram bem e os inimigos ficaram de fora. É claro que, mesmo nesse ambiente, a maioria dos negócios floresceram sem que seus comandantes tivessem laços com a ditadura, mas esses empresários também dependiam dos ventos de Brasília.

Pegue-se o caso da Construtora Método, de São Paulo. Ela foi criada em 1973 e decolou no foguete do milagre econômico. “Crescemos construindo hospitais, escolas, creches, prédios públicos e fóruns”, conta Hugo Marques da Rosa, fundador da companhia. “O governo representava 80% de todos os investimentos”. Assim a Método chegou ao início dos anos 80 com 4 mil funcionários e logo em seguida começaram os problemas. Primeiro veio a ressaca da segunda crise do petróleo de 1979, depois a elevação dos juros internacionais e, finalmente, a inadimplência do Estado brasileiro. Em dezembro de 1982 a empresa já empregava apenas 700 pessoas. “A partir daí tivemos que nos reestruturar a tocar a empresa de um outro jeito”, diz Rosa.

O caso da Panair do Brasil é outro exemplo de como a ditadura militar engendrou um período selvagem e obscuro da vida econômica brasileira. Às 15h do dia 10 de fevereiro de 1965, uma quarta-feira calorenta no Rio de Janeiro, um telegrama do Ministério da Aeronáutica chegou aos escritórios da Panair do Brasil. A mensagem curta e grossa, um simples despacho, informava a decisão do governo militar, representado pelo ministro Eduardo Gomes, de cassar o certificado de operação da Panair, com base em uma suposta posição financeira “insustentável”. Este comunicado seco e implacável, típico do estilo castrense do período, abateu em pleno voo a mais conhecida e glamorosa empresa brasileira de aviação, detentora de pelo menos 10% do mercado aeroviário mundial.

Na mesma noite, com os hangares da empresa já ocupados pela tropa, a Varig assumiu todas as rotas internacionais da rival – e decolou imediatamente, sem qualquer atraso, numa demonstração de eficiência sem precedentes na história da aviação mundial. “Embora a Varig fosse uma grande empresa, assumir voos de outra companhia com horas de antecedência só poderia ser feito se houvesse informação prévia”, afirmou o especialista R. Davies, autor do clássico americano “Airlines of Latin America”.

No dia seguinte à intervenção, uma quinta-feira, a Panair entrou com pedido de concordata preventiva. Na segunda, por iniciativa própria, o juiz transformou o pedido de concordata em falência alegando que a empresa, que não tinha um único título protestado e gozava de outras fontes de receita, não teria como saldar suas dívidas por estar proibida de voar. Terminava ali, de maneira kafkiana, uma trajetória de 35 anos de charme e eficiência.

“Fomos vítimas de perseguição política”, resume até hoje Rodolfo Rocha Miranda, filho do falecido dono da empresa e atual diretor-presidente da Panair do Brasil, uma holding sem atividade empresarial mantida com o intuito de lutar por ressarcimento na Justiça. A origem da perseguição é dupla. De um lado, Celso da Rocha Miranda, o pai de Rodolfo morto em 1981, era um empresário muito próximo à Juscelino Kubitschek. Depois do golpe as outras empresas da família, que atuava no ramo de seguros, perderam todos os contratos com o governo e sofreram seguidas investigações da receita.

Mas o problema principal da Panair talvez tenha sido acarretado pelo sócio de Rocha Miranda na Panair, Mario Wallace Simonsen. Milionário e influente dono da TV Excelsior de São Paulo e de 40 outras empresas, este paulistano era considerado pelos golpistas como homem do “esquema Jango” de comunicação. Também ele foi perseguido pelo regime e suas empresas sistematicamente prejudicadas. Morreu em Paris em 24 de março de 1965, em depressão, dias depois de ter seus bens sequestrados pelo governo. Entrará para a história, com a Panair, na relação das primeiras vítimas fatais da ditadura.

O setor da construção civil foi o mais impulsionado pelos ventos do regime militar. Nesta raia, nenhuma outra empresa manobrou melhor do que a Construtora Norberto Odebrecht. Antes da ditadura, a Odebrecht jamais atingiu dimensão nacional. Fundada em 1944, na véspera da derrocada do Estado Novo, nos 20 anos seguintes de democracia a empresa teve sua vida restrita a obras regionais. Em nada aproveitou a grande onda de desenvolvimento representada pela construção de Brasília, no governo de Juscelino Kubistchek. O que parecia um erro, no entanto, se revelou um atestado de salvo-conduto a partir de 1964, quando a ditadura militar chegou para ficar por 21 anos. Os militares odiavam Juscelino e seus amigos.

“No Brasil dos generais, quem quisesse crescer tinha de ter uma relação de dependência absoluta com o setor público”, lembra um alto executivo do grupo. “Norberto entendeu essa lei”, completa sobre a estratégia do fundador. Durante o governo de Castelo Branco, ele teceu a partir da Bahia uma ampla rede de acessos e simpatias entre os militares da linha dura. Acertou na mosca. Esta corrente chega ao poder com a unção de Costa e Silva à Presidência, no final de 1967, e a companhia zarpa para o sucesso.

Logo em 1969, afinado com o czar da economia Delfim Netto, Norberto arrebata a construção da sede da Petrobras, no Rio. Em 1972, com Emílio Médici no Planalto, vence a concorrência para erguer a primeira usina nuclear brasileira, em Angra dos Reis. No ano seguinte, passa a fazer o Aeroporto Internacional do Galeão. Pouco depois, sob a gestão de Ernesto Geisel, levanta o monumental edifício-sede do BNDES, de onde obtinha empréstimos com juros pré-fixados e carência. Com a inflação, reajustava os preços de seus contratos e pagava suas dívidas com tranquilidade. A maior obra física do regime, a Hidrelétrica de Itaipu, foi feita pela companhia. Por determinação de Geisel, a Odebrecht comprou em 1978 a participação da Camargo Corrêa no Polo Petroquímico da Bahia e se diversificou. Hoje, o grupo é o principal acionista da petroquímica Braskem.

O faturamento de US$ 14 milhões da Construtora em 1971 duplicou no ano seguinte, decuplicou em 1973 e alcançou o pico de US$ 902 milhões em 1982, quando tocava 853 obras no País. A partir de 1978, Emílio Odebrecht, filho do fundador, direcionou a empresa ao exterior, usando o know-how desenvolvido no Brasil para vencer duras concorrências. Em 2003, a Odebrecht tocou 1.305 obras pelo mundo, tornando-se a 31ª em faturamento fora de seu país de origem, com US$ 1,6 bilhão. A empresa que pegou o vendaval da ditadura aproveitou a brisa da democracia para tornar-se a maior multinacional brasileira. Aí veio o mensalão, o petrolão, a lava jato et caterva. Deu no que deu.

Um enclave industrial no coração da Amazônia

Arruamento do Distrito Industrial no bairro do Japiim

A Zona Franca de Manaus (ZFM) foi idealizada como projeto geopolítico no começo da década de 50, depois que o deputado federal Francisco Pereira da Silva idealizou a criação do Porto Franco de Manaus e encaminhou à Câmara Federal o Projeto nº 1.310, que, após receber emendas, foi aprovado em 23 de outubro de 1951. Como o Brasil até hoje funciona na base do improviso, somente em 6 de junho de 1957 (seis anos depois!), o presidente Juscelino Kubitschek sancionou a Lei nº 3.173 que criava, em lugar do Porto Franco, a Zona Franca de Manaus, regulamentada posteriormente pelo Decreto nº 47.757, de 2 de fevereiro de 1960.

Naquela época, as atividades econômicas da região amazônica se concentravam em Belém, capital do Pará, até então a mais importante cidade da Amazônia. Abrigando mais gente e, consequentemente, maior mercado consumidor, melhor infraestrutura econômica, com um porto praticamente no oceano Atlântico, e tendo ligação terrestre com o restante do país através da rodovia Belém-Brasília, a capital paraense constituía o principal centro de atração para os investimentos regionais. A força centrípeta exercida pela capital do Pará esvaziava o lado ocidental da Amazônia, onde a cidade de Manaus ocupa o centro geográfico.

Com uma população inferior a 200 mil pessoas, a capital amazonense definhava em termos urbanos, econômicos e sociais. Possuindo um ensino superior incipiente, sofrendo escassez de energia elétrica, com um mercado reduzido e de baixo poder aquisitivo, sistemas de transporte e comunicação precários, Manaus oferecia um cenário de fragilidade econômica e sem a menor perspectiva de mudanças. Para mostrar o grau de hegemonia da economia do Pará, basta citar que em 1964, segundo dados da extinta Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), 97,6% dos investimentos por meio de seus incentivos fiscais na região amazônica eram feitos no Pará. O Amazonas ficou, naquele ano, com apenas 2,4% dos investimentos. Enquanto os incentivos do governo federal permanecessem iguais para toda a Amazônia, a preferência pelo Pará seria, evidentemente, natural e racional.

Manaus era um mero entreposto comercial que ligava a economia extrativista praticada no interior do Estado com aquela parte do mundo que ainda consumia produtos exóticos coletados da floresta, como madeira em tora, borracha, sorva, castanha, pau rosa, cumaru, breu, resinas, sementes oleaginosas, essências aromáticas e animais nativos, como quelônios, jacarés, peixes e seus subprodutos (couros e peles silvestres, por exemplo). Comerciantes e mascates de Manaus procuravam o interior do Estado em embarcações, os chamados regatões, para suprir as necessidades das populações. Dispersas nas terras ao longo dos rios, esses moradores ribeirinhos, que correspondiam a 60% da população do Estado, se dedicavam a atividades extrativistas.

Os comerciantes itinerantes forneciam alimentos, tecidos, roupas, remédios e ferramentas, e, em troca, adquiriam os produtos coletados da floresta, em uma típica operação de escambo, sem a presença de moeda – uma relação econômica de característica feudal que mantinha o produtor no nível de subsistência, escravizado aos interesses de intermediários e donos de seringais. Por conta disso, a Amazônia Ocidental constituía uma imensa área de baixíssima densidade demográfica e econômica, muitas vezes, sem ter a presença física de brasileiros, abrigando enormes e pouco explorados recursos naturais. Com tais características, a região estaria, segundo a versão dos militares pós-golpe de 64, despertando a cobiça internacional.

Esse era o discurso, por exemplo, do historiador Arthur Cezar Ferreira Reis, o primeiro governador amazonense do período militar. Essa hipótese era reforçada com a chegada dos movimentos ambientalistas, que se desenvolveriam no mundo de forma generalizada – principalmente nos países mais ricos. O Exército tinha vários estudos e ensaios estratégicos citando a problemática amazônica, enfatizando principalmente a parte ocidental da região até as linhas de fronteira internacional. Esses fatos levaram o governo federal a iniciar a elaboração de um projeto de inspiração geopolítica para mudar o quadro existente.

Pressões da classe empresarial, afinidade confessa do presidente da República, Humberto de Alencar Castelo Branco, com o Amazonas, onde ele servira como oficial do Exército e firmara laços de amizade com o professor Arthur Cezar Ferreira Reis, pressões da Associação Comercial do Amazonas e do engenheiro amazonense Arthur Amorim, chefe de Gabinete do ministro do Planejamento Roberto Campos, entre muitas outras coincidências, conspiraram para implantar o projeto de Zona Franca de Manaus (ZFM), criada pelo Decreto-Lei nº 288/67, em 28 de fevereiro de 1967.

Para pôr o projeto em prática, houve um pacto tripartite celebrado entre o governo federal, o governo do Amazonas e a prefeitura de Manaus, em que cada participante ofereceu uma parcela de contribuição ao conjunto de incentivos destinado aos projetos que se instalassem na ZFM. Para atrair investimentos, foram criados incentivos no âmbito dos impostos indiretos que impactavam os custos das empresas, como redução de Imposto de Importação (II), isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), restituição de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e isenção de Imposto sobre Serviço (ISS). A novidade em relação aos incentivos feitos anteriormente na região é que não havia nenhum subsídio ou empréstimo de capital pelos bancos oficiais, como ocorria na Sudam e na Sudene. Mesmo assim, os novos incentivos compensavam as desvantagens de localização da ZFM e a ausência de mercado local.

Visando implementar o polo industrial da ZFM, a Lei Estadual nº 63.105, de 15 de agosto de 1968, declarou de utilidade pública, para fins de desapropriação, uma extensão de terras que seriam destinadas à implantação do Distrito Industrial, abrangendo uma área de 16 km² destinada à construção de indústrias que se encaminhavam para Manaus. A escolha da área ao leste da cidade obedeceu às circunstâncias da chamada “ocupação consciente do sítio urbano de Manaus”, combinando-se, entre outros fatores, ampla área contínua desabitada, contiguidade com a periferia urbana, indústrias sem chaminé – pois os ventos sopram no sentido leste-oeste, do Distrito Industrial para a área urbana –, possibilidade futura de um porto na Ceasa e proximidade do aeroporto de Ponta Pelada (atual Base Aérea de Manaus).

Os primeiros momentos da nova ZFM foram marcados por perplexidade e euforia. Esse efeito pode ser evidenciado por publicações que demonstram o impacto que o decreto-lei gerou na, até então, decadente capital amazonense. Publicado no matutino O Jornal, em letras garrafais, na seção de classificados, um anúncio de 1967 resumia o dilema: “Precisa-se de balconistas” (…). Até então, não se ouvia falar em firmas com carência de empregados. As vagas eram procuradas e não oferecidas. As lojas de tecidos costumavam ter os seus funcionários na porta, pegando clientes no laço, e o espaço social era insuficiente para absorver a mão-de-obra que sobrava nas esquinas. De repente, tudo mudou.

Em 1967, aquele classificado foi um sucesso. Anunciou a abertura de oportunidades de trabalho e o fim da estagnação econômica. Porque, logo depois, começaram a chegar os novos empresários do comércio, que acabariam por transformar a capital da selva num efervescente centro mercantil. Eles se instalaram nos sobradões, nas avenidas, nos becos e onde quer que fosse possível montar um comércio de artigos importados. Surgiram as grandes lojas de departamentos e suas vitrinas mágicas: a excitação nas compras convertia-se no maior apelo turístico da Zona Franca de Manaus, fazendo desembarcar em seu aeroporto e no porto flutuante milhares de turistas que, até então, lotavam suas malas com compras no exterior.

No centro da cidade as famílias foram retirando as cadeiras das calçadas para dar lugar à expansão vertiginosa e explosiva do comércio de novidades. Despertados pelo “boom”, os negociantes tradicionais abandonavam o anacronismo para modernizar suas instalações. Nos supermercados, produtos como a água mineral Vichy, da França, estimulavam a sede de consumo. Nascia a rede hoteleira, a prestação de serviços, que iria posicionar a capital do Amazonas entre as cidades com o menor índice de desemprego no país.

Na realidade, Manaus ainda não tinha sequer empresários detentores de expertise para trabalhar com o comércio exterior. O que se sabia fazer na região era o extrativismo puro e simples, desde a época dos chamados “coronéis da borracha”, que acendiam seus charutos com papel-moeda de libras esterlinas. Ou, como destacou o economista Serafim Corrêa no livro “Zona Franca de Manaus: História, Mitos e Realidade”, era uma plêiade de empresários toscos e iletrados em que “guia de importação para eles era um palavrão”.

O comércio de importados só teve o sucesso após 1968, com a chegada na cidade de empresários estrangeiros e brasileiros que já tinham experiência na área, seja em São Paulo ou em outras áreas de livre comércio. A partir de então, as mercadorias tinham três principais perfis de consumidores: os consumidores locais, os turistas de compras – brasileiros atraídos pela possibilidade de comprar produtos importados de até 100 dólares, algo inviável no restante do país em um cenário de economia fechada, e lojas brasileiras de importados que compravam de Manaus, pagando os tributos federais.

A primeira leva de empreendedores a se instalar na cidade, sobretudo no setor comercial, era oriunda do chamado “capitalismo pária ou marginal”, ou seja, era formada basicamente por empresários que se beneficiavam, ou especulavam, com os incentivos à importação e que foram recrutados, em parte, entre grupos caracteristicamente “periféricos” no contexto do comércio internacional (certas castas de indianos, chineses, coreanos, levantinos de origem arábica ou judaica, filipinos, etc.), cujas relações de solidariedade étnica ou familiar se traduziam em grupos fechados operando em um determinado nicho do mercado.

Num segundo momento, deu-se a entrada em cena do “empresariado preposto”, isto é, com a presença, sobretudo no setor industrial, de empresários que de fato eram simples prepostos ou administradores de empresas cujas matrizes nacionais se localizavam fora da ZFM, mas que estavam em comunicação contínua com as filiais locais, deixando, portanto, margem reduzida, ou mesmo nula, aos prepostos e administradores para que tomassem decisões e assumissem riscos de caráter realmente empresarial. A população e a mídia local passaram a se referir a esses empresários de “paulistas”, numa alusão aos antigos bandeirantes. “Paulistas” no sentido muito amplo de pessoas ligadas a firmas sediadas sobretudo em São Paulo, de capital nacional ou multinacional. Havia “paulistas” gaúchos, mineiros, pernambucanos, cariocas, etc. E foram surgindo as indústrias eletroeletrônicas: Sharp do Brasil, Semp-Toshiba, Evadim-Mitsubishi, CCE da Amazônia, Philips da Amazônia, Colorado-Telefunken, Philco da Amazônia, Dismac, Pliacel-Sanyo, C-Itoh, entre outras.

Nos primeiros anos da década de 1970, durante o famoso “milagre econômico” alardeado pelo ministro Delfim Neto, a Zona Franca de Manaus já representava parcela significativa na produção de eletroeletrônicos dentro do país. Os investimentos, majoritariamente japoneses, realizados por meio de joint ventures com empresas brasileiras ou por concessão de uso de marca, davam respaldo técnico para que a falta de tradição industrial da Amazônia fosse neutralizada e os produtos ali produzidos fossem bem aceitos no território nacional. Entretanto, apesar de suas importações representarem apenas 2% do total nacional, a ZFM já enfrentava críticas de outras regiões por não colaborar com o esforço nacional em prol do superávit da balança comercial.

Dessa maneira, em 1973, em meio ao primeiro choque do petróleo, a Zona Franca de Manaus ainda tinha um viés fortemente comercial. Seu pilar industrial, apesar de mais desenvolvido que na década anterior, precisava tornar-se mais sólido. Além disso, as importações cresciam mês a mês em Manaus, o que contribuía negativamente para o aumento das reservas cambiais brasileiras. Com isso em mente, o Governo Federal lançou o Decreto-Lei nº 1435, de 16 de dezembro de 1975, que dificultava as importações para todo o país e impunha limites para as importações feitas através da ZFM. Um dos objetivos desse decreto era transformar Manaus em um grande polo de substituição de importações definitivamente interligado ao Brasil.

No livro já citado, Serafim Corrêa explica os objetivos das medidas desse decreto em relação à ZFM: 1) Limitar as importações do comércio de Manaus através de quotas de importação e da proibição da remessa a qualquer título, mesmo pagando os impostos de mercadorias importadas com os favores do Decreto-lei nº 288/67 para o restante do Brasil, permitindo a saída, apenas, através de bagagem acompanhada pelos turistas que aqui vinham para comprar produtos importados ante a proibição de importar no resto do Brasil e dentro do limite da quota de saída (US$100,00, à época); 2) Fazer surgir um polo industrial de substituição de importações através de: a) índice mínimo de nacionalização (obrigava a comprar mais componentes do restante do Brasil, em especial de São Paulo), b) quotas de importação (limitava as importações àquilo que o Brasil ainda não produzia) e c) fórmula de cálculo para a redução do imposto de importação devido a qual seria maior na razão direta do índice de nacionalização; 3) Criar, fora de Manaus, fábricas de componentes para vender exclusivamente para a Zona Franca de Manaus, fazendo surgir aquilo que convencionou chamar de Zona Franca de São Paulo; 4) Criar condições, através da geração do crédito do IPI, para o surgimento de estabelecimentos agroindustriais que produzissem para indústrias em qualquer ponto do território nacional.

A expertise em malandragem dos grandes espertalhões

O Parque Industrial da ZFM

Considerando o verdadeiro labirinto de leis, decretos-leis, portarias, resoluções, etc., que regulamentava a concessão de incentivos aos investimentos da ZFM, pode-se imediatamente concluir que não era pequeno o poder de conceder e de negar, de promover e atrasar, de engavetar e agilizar essas concessões, concentrado nas mãos dos altos dirigentes da Suframa. E quando foi instituído o regime de quotas de importação a serem repartidas entre as empresas industriais e comerciais com registro na ZFM, a autarquia se transformou em um verdadeiro balcão de negócios para quem tinha intimidade com os detentores do poder.

Para o superintendente da Suframa se transformar na segunda pessoa mais importante do Estado, abaixo apenas do governador, foi conta de multiplicar. É verdade que havia critérios objetivos para a distribuição das cotas, expressos em várias portarias sobre o assunto, mas apesar desses critérios ou mesmo por causa deles (pois nem sempre estavam redigidos de maneira uniforme), o superintendente da autarquia, para dizer com simplicidade, tinha a última palavra a respeito.

O quarto superintendente da Suframa foi Aloísio Campelo, que tomou posse em janeiro de 1975. Na sua gestão houve incremento do setor industrial, com o primeiro esboço de uma política para o setor. A Suframa firma convênios com o GEICOM (Grupo Executivo Interministerial de Componentes e Materiais), INMETRO (Instituto Nacional de Normalização e Metrologia e Qualidade Industrial) e o CTA (Centro Técnico Aeroespacial da Aeronáutica) para suporte técnico na definição de políticas e no acompanhamento dos projetos industriais em implantação. Começam a formar-se os primeiros polos industriais: relojoeiro, ótico, eletroeletrônico e de veículos de duas rodas. Nesse período houve também o primeiro contingenciamento das importações para a indústria e o comércio, determinado pelo Governo Federal, e a exigência de índices mínimos de nacionalização para os produtos fabricados na ZFM. Na sua administração, a Suframa recebeu do Estado a doação da área do Distrito Agropecuário e delineou as primeiras diretrizes para os projetos agropecuários. Ficou no cargo até 15 de março de 1979.

Foi durante a gestão de Aloisio Campelo que começaram as distorções envolvendo as cotas de importação, que deram origem a alguns milionários da noite para o dia. Por exemplo, o Governo Federal autorizava a ZFM importar US$ 600 milhões. Desse montante, US$ 500 milhões iam para o setor industrial e US$ 100 milhões para o comércio. As 10 maiores indústrias, porque possuíam um grande número de funcionários, eram aquinhoadas a partir desses números. Dessa forma, a Sharp do Brasil recebia US$ 32 milhões, Moto Honda da Amazônia, US$ 30 milhões, Evadim-Mitsubishi, US$ 25 milhões, Companhia Amazonense de Produtos Eletrônicos (Cape), US$ 20 milhões, C.C.E. da Amazônia, US$ 20 milhões, Semp Toshiba, US$ 17 milhões, Gradiente, US$ 17 milhões, Sanyo da Amazônia, US$ 14 milhões, Dismac, US$ 13 milhões, Philco da Amazônia, US$ 12 milhões, Philips da Amazônia, US$ 10 milhões e assim por diante. Aí começavam as cotas um pouco menores para as demais empresas.

No setor comercial, a divisão era parecida, com cotas de 1 a 3 milhões de dólares para as 15 maiores empregadoras (Amacom, Lundgren, Apolo, Benchimol, Importadora Oliveira, etc.), num total de US$ 30 milhões. O rolo estava nas duas centenas de empresas menores que recebiam cotas de US$ 50 mil a US$ 900 mil. Nesse contingente, havia as empresas sérias que recebiam de US$ 600 mil a US$ 900 mil – Casa Hindu, Isaac Benchimol, Importadora Jimmy, Lojas Populares, Belmodas, Importadora Belmiro, Lojas Americanas, Orient Internacional, Bilfron, Cianorte, Modiesel, G. Tarantino, Aron Hakimi, Comercial Leão, Top Internacional, Toby Internacional, S. Monteiro, etc. –, mas também havia algumas empresas que só existiam na Junta Comercial do Amazonas (Jucea). Essas empresas de “gaveta” conseguiam cotas de até US$ 50 mil e “vendiam” aos interessados, da indústria ou do comércio, pelo valor de face, ou seja, embolsavam US$ 50 mil dólares, cash, sem enfiarem um único prego numa barra de sabão. Como a Suframa não tinha gente suficiente para fiscalizar, virou uma farra do boi. Um político brasileiro muito conhecido elevou essa expertise em esperteza à categoria de arte. É interessante acompanhar sua história.

Filho de um tintureiro semianalfabeto e de uma dona-de-casa com o primeiro ano primário, Gilberto Miranda nasceu em São José dos Campos (SP), em 1946. Garotão bonito, físico de atleta, ele chegou a Brasília em 1967 para tentar a vida. Arrumou emprego de professor de Natação em uma escola pública de bom nome, Centro Integrado de Ensino Médio (Ciem), ligado à Universidade de Brasília (UnB). Os adolescentes Fernando Collor de Mello e Paulo Octávio estudaram lá e foram seus alunos. Entrou para uma faculdade particular, a única na época, o Centro Universitário de Brasília (Ceub), e conseguiu o diploma de bacharel em Direito. Em outro emprego, professor de Natação do Iate Clube, conheceu um sujeito que mais tarde mudaria sua vida, o futuro superintendente da Suframa Aloísio Campelo.

Praticante de artes marciais, Gilberto Miranda dava aulas de Natação durante o dia e trabalhava à noite como leão-de-chácara do restaurante Gaf, no Centro Comercial Gilberto Salomão, que se transformara em um badalado reduto de políticos, socialites e endinheirados. Em virtude de uma queda de cavalo, o então Chefe do SNI, general João Figueiredo, sofria de dores intermináveis nas costas. No restaurante Gaf, ele ficou sabendo que o garboso leão-de-chácara também era um massagista de mão cheia. Gilberto começou a cuidar das dores lombares do general com técnicas de shiatsu, dando início a uma grande amizade.

Em 1973, Gilberto sacou sua carteirinha da OAB e anunciou que iria tentar a sorte grande no Rio ou São Paulo. “Vou arrumar um baú”, informou aos amigos, que caíram na gargalhada. Entenda-se por baú isso mesmo que vocês estão pensando: o mais do que manjado golpe do baú. Chegou o bacharel primeiro ao Rio de Janeiro. Não deu certo. Mudou-se para São Paulo, onde o ajudou um antigo e rico amigo de piscinas olímpicas. Vivia ele de procurar no Diário Oficial empresários autuados pelo governo, INPS, Receita Federal, esses probleminhas menores. Detectada a presa, então se oferecia para resolver o assunto em Brasília, em contrato de risco.

Certo dia fechou um acerto com a Gentek. A empresa tinha mandado vir do Japão uma partida de contrabando de máquinas de calcular e os caixotes estavam detidos no depósito da Suframa, em Manaus. Gilberto Miranda lembrou-se de que conhecia o chefão do órgão, o supracitado Aloísio Campelo, e foi lá tentar liberar a muamba, na maior cara-de-pau. Doutor Campelo gostava do rapaz e deu o toque: “Olha, quem fizer fábrica aqui em Manaus vai ficar rico”. Com a frase na cabeça, Giba voltou para São Paulo com todo o contrabando legalizado sob o eufemismo de “mercadoria importada”.

Logo depois, surgiu em sua vida um negociante, Mário Lander, representante no Brasil de uma indústria sueca de calculadoras, a Facit. O hoje digníssimo empresário procurou-o para que apresentasse um projetozinho à Suframa para montar uma fábrica de calculadoras maquiadas. Era aquele tipo de empresa que queria importar tudo mais ou menos pronto, contratar uns peões para apertar uns parafusos e pregar a etiqueta “Made in ZFM”. “Sabe, fiquei sabendo que o cara lá é seu amigo…”, insinuou Lander. Gilberto Miranda topou o desafio, com uma exigência. Não queria pagamento em espécie alguma. “Quero ser sócio”. Hoje ele conta: “Eu não tinha um puto no bolso. O cara foi embora e três dias depois voltou, aceitando o negócio”.

Foi isso que Gilberto Miranda fez a vida inteira. É disso que vive até hoje. Detecta indústria que estão a fim de montar fábricas em Manaus e consegue a liberação dos projetos em troca de participação acionária. Conseguiu levar, segundo sua própria contabilidade, cerca de 250 empresas para a Zona Franca e aprovou uns 200 projetos. Vende as ações quando estão valorizadas e gasta a grana comprando bens de neo-pobres. Já foi sócio de Dílson Funaro, Mathias Machline e Mário Amato, entre outros.

Retornemos àquele início de vida. O general Figueiredo foi responsável por introduzir seu novo massagista particular no mundo empresarial paulista. Em 1974, outro fato relevante surgiu para alavancar nosso herói emergente: apareceu o “baú”. Ele conheceu a socialite Ana Alicia Scarpa, filha de Don Nicolau Scarpa e prima do playboy Chiquinho Scarpa. Casou-se com a moça rapidinho e tratou de fazer de cara seus herdeiros. Nasceram duas meninas.

Nessa mesma época, ele também conheceu o jornalista e advogado Orestes Quércia, que acabara de deixar a Prefeitura de Campinas. Os dois montaram um escritório de advocacia na Avenida 9 de Julho, em São Paulo. Quando o general Figueiredo assumiu a presidência, em 15 de março de 1979, a carreira de lobista de Gilberto Miranda começou a deslanchar. Seu escritório de advocacia foi encarregado de fazer a renegociação das dívidas que os grandes conglomerados industriais do País tinham com o extinto INPS.

Com carta branca para estabelecer novos prazos para pagamento parcelado das dívidas (50, 100, 150 ou 200 anos, com juros de pai pra filho), aquilo foi uma moleza semelhante a pescar em balde. Quando as renegociações terminaram, Miranda era um novo milionário. Há 40 anos, possuía um Passat e um patrimônio de US$ 10 mil. Foi quando abriu sua primeira empresa em Manaus. De lá para cá, sua vida mudou muito. O senador declara possuir uma ilha em Ilhabela (5 milhões), uma casa de campo (5 milhões), duas casas no Jardim Europa (3,5 e 2 milhões), um jatinho Lear Jet 36 (2 milhões), quatro fazendas em São Paulo (preços incalculáveis), oito carros importados (1 milhão), parte menor de um patrimônio total de R$ 1 bilhão e faturamento anual de 600 milhões em cerca de 20 empresas.

Ainda nos anos 80, Gilberto Miranda começou a se interessar pela política local do Amazonas. Em 1986, ele foi primeiro suplente do candidato ao senado Carlos Alberto Di Carli, tendo investido R$ 2 milhões na campanha. Depois de eleito, Di Carli se licenciou durante 120 dias para que Gilberto Miranda assumisse o senado pela primeira vez.

Em 1990, quando Gilberto Mestrinho disputou o governo do Estado pela terceira vez, Gilberto Miranda foi escalado como primeiro suplente do ex-governador Amazonino Mendes, candidato ao Senado. Investiu R$ 4 milhões na campanha. Quando Amazonino renunciou ao mandato, em 1992, para disputar a Prefeitura de Manaus, Gilberto Miranda assumiu a vaga e seis anos de mandato.

Em 1996, o ex-massagista era senador do PMDB e contavam com seu voto para eleger o peemedebista Íris Rezende presidente do Senado. Rezende disputava com Antonio Carlos Magalhães, do PFL. De repente, sem que até hoje se saiba o porquê, Miranda bandeou-se para o PFL. Garantiu a vitória de ACM e caiu-lhe nas graças, até a morte do babalorixá baiano. O senador sem voto foi relator do orçamento da união, do polêmico projeto Sivam e do novo Código Brasileiro de Trânsito. Teve atuação destacada na CPI dos Precatórios. Foi dele o projeto que propôs a extinção dos juízes classistas e o que propõe a legalização dos jogos de azar, dois entre dezenas dos que apresentou.

Em 1998, Gilberto Miranda foi o segundo suplente do candidato a senador Gilberto Mestrinho (o primeiro era o ex-deputado federal João Thomé, filho de Mestrinho). O empresário investiu R$ 5 milhões na campanha e por muito pouco o candidato petista Marcos Barros, ex-reitor da Ufam, não conquistou a vaga. O derramamento de grana no interior para reverter o quadro (Marcos Barros havia colocado uma diferença de quase 100 mil votos em Manaus) até hoje ainda tira muita gente do sério.

Em novembro de 2004, Gilberto Miranda assumiu a cadeira de senador pelo Amazonas, em lugar do titular Gilberto Mestrinho (PMDB), que se licenciou por motivo de saúde até o dia 31 de março de 2005. Miranda ocupou o lugar de Mestrinho porque o primeiro suplente, João Thomé Mestrinho, também se licenciou por motivos particulares. Aquela foi a terceira vez que Miranda assumiu uma cadeira no Senado sem ter tido um único voto.

De quase tudo em que o senador sem votos se meteu surgiram denúncias de interesses ocultos. No caso Sivam, Gilberto Miranda foi citado no diálogo grampeado entre o embaixador Júlio César Ferreira Gomes e o empresário José Affonso, dono da Líder e representante da Raytheon no Brasil. Ambos reclamavam que o senador, alegando irregularidades, dificultava as coisas para a empresa americana. “Você já pagou para este cara?”, perguntou, na conversa gravada, o embaixador a José Affonso. O “cara” era Miranda, que negou tudo.

No caso dos precatórios, o senador foi citado como defensor dos interesses de Paulo Maluf e Celso Pitta, ex-prefeitos de São Paulo. Em troca, teria direito a ingerências na prefeitura na gestão Pitta. Quando rompeu com o marido, Nicea Pitta citou Miranda. “Ele pressionava o Celso para que a prefeitura pagasse as dívidas da OAS, construtora do genro de Antonio Carlos Magalhães”, manteve Nicea até morrer.

Um dos últimos imbróglios envolvendo Miranda foi o chamado dossiê Cayman – papelada falsificada sobre suposta empresa e depósitos em paraísos fiscais que seria uma sociedade entre os tucanos Sérgio Motta e Mario Covas, além do ministro José Serra e do presidente Fernando Henrique. O dossiê começou a circular, clandestino, no fim da campanha eleitoral de 1998. Só veio à luz depois da eleição de Fernando Henrique. As primeiras citações a Miranda registram um suposto encontro com o advogado Marcio Tomaz Bastos, representante do PT (e ex-Ministro da Justiça do presidente Lula), quando teria exibido o dossiê. O advogado teria convencido a direção do partido a não usar a papelada e teria prometido segredo sobre o encontro com Miranda, que negou qualquer envolvimento.

Em 2007, Gilberto Miranda se casou com a estilista Caroline Andraus Lane – sócia da grife de moda praia Beach Couture –, numa festa de arromba. Os padrinhos eram ilustres personagens do cenário político nacional, como o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, o ex-presidente José Sarney e sua filha Roseana Sarney, acompanhada pelo marido, Jorge Murad. Entre os 300 exclusivíssimos convidados, o publicitário e apresentador Roberto Justus e a atriz Ticiane Pinheiro, a estilista Cris Barros, a modelo Mariana Weickert, o publicitário Nizan Guanaes e a empresária Donata Meirelles, o cantor Paulo Ricardo e a arquiteta Raquel Silveira e Marina Mantega, filha do ministro da fazenda Guido Mantega. Naquele mesmo ano, a Fundação José Sarney recebeu R$ 300 mil de uma empresa de fachada, a KKW do Brasil, que representa duas “offshores” (firmas no exterior), com sedes na Inglaterra e no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas.

Apesar de ter capital social de R$ 80 milhões (cifra de uma empreiteira de grande porte), a KKW não tem negócios visíveis, site ou sede própria. Seus endereços e telefones correspondem aos da casa e do escritório de Gilberto Miranda em São Paulo, onde funcionam outras firmas atribuídas ao ex-senador, igualmente registradas (integral ou parcialmente) em nome de “offshores”. As “offshores”, em especial as que têm sede em paraísos fiscais, são costumeiramente usadas para repatriar dinheiro que deixou o país de forma ilegal, em regra via doleiros. Resumo da ópera: às vezes, ser um simples massagista pode transformar alguém em bilionário da noite para o dia. Basta que ele obtenha os contatos certos na hora certa. Comecem a aprender shiatsu, homeboys!

A abertura comercial do país e a ZFM

A atual Feira dos Importados em Brasília (DF)

O quinto superintendente da Suframa foi o economista Ruy Lins, nomeado em 15 de março de 1979. Ele prosseguiu o trabalho técnico iniciado por Aloísio Campello, iniciou a expansão do Distrito Industrial e aumentou a presença da Suframa nos outros Estados da Amazônia Ocidental – dois deles, à época, ainda territórios federais. Na sua gestão a Suframa construiu o Campus da Universidade do Acre, implantou os distritos industriais de Rio Branco (AC) e Boa Vista (RR), construiu o mini campus da Universidade do Amazonas, criou a Fundação Centro de Análise de Produção Industrial (Fucapi), como laboratório de aplicação, estimulou a criação do Centro das Indústrias e da Associação dos Exportadores da ZFM e instituiu o Fundo Comunitário das Indústrias da Zona Franca de Manaus (Funcomiz), que recolhia um percentual do lucro das empresas para aplicação em programas de saúde pública, educação e assistência ao menor.

Coronel do Exército, Joaquim Pessoa Igrejas Lopes foi nomeado em 21 de junho de 1983. Em sua administração deu ênfase ao setor agropecuário, com a criação da Fundação Centro de Apoio ao Distrito Agropecuário (Fucada) e uma Fazenda Modelo naquele distrito, onde as experiências bem-sucedidas eram repassadas à iniciativa privada. Implantou a Fucapi e transformou a Exposição Permanente no Centro Comercial da Indústria da Zona Franca de Manaus (Cecomiz), hoje aberto ao comércio em geral. As ações do Funcomiz passaram a abranger também o esporte e a cultura regional, com ênfase na edição de livros de autores amazonenses. Nessa época o Conselho aprovou a Resolução Nº 400/84, obrigando as empresas a veicularem em toda a publicidade impressa e de vídeo, a legenda “Produzido na Zona Franca de Manaus”, estabelecendo ainda que o lançamento de novos produtos deveria ser feito, em caráter nacional, em Manaus. Para isso, foi reservado em Salão, no Cecomiz, onde hoje funciona a Receita Federal. Deixou o cargo em 04 de abril de 1985.

Formado em Contabilidade e amigo de infância do ex-governador Gilberto Mestrinho, Roberto Cohen era o secretário de Indústria e Comércio do governo do Amazonas quando foi nomeado, em 4 de abril de 1985, para assumir a Suframa. Colocou como objetivo de sua administração a implantação de um Polo de Informática e o fortalecimento do setor de componentes na indústria da Zona Franca de Manaus e, como uma das medidas neste sentido, assinou convênio com a Fundação Centro de Análise de Produção Industrial (Fucapi) – então com dois anos de existência – para implantação do primeiro curso de Processamento de Dados em nível técnico da região, e estimulou a Universidade Federal do Amazonas (Ufam) a criar o curso de bacharelado na mesma área.

Além da questão da Informática, a gestão de Cohen fez investimentos na área de turismo, para consolidar a capital amazonense como um polo de compras de importados, e acabou com a contribuição mensal obrigatória ao Fundo Comunitário das Indústrias da Zona Franca (Funcomiz). As medidas econômicas nacionais da época, com mudanças na moeda e no câmbio, associados a operações envolvendo as cotas de importação na ZFM, levaram o governo a realizar uma intervenção na Suframa, motivo pelo qual Cohen entregou o cargo de superintendente à Régis Guimarães em 1º de abril de 1986. Foi durante a gestão de Cohen que explodiu o conhecido “escândalo do colarinho verde”, uma maracutaia envolvendo falsificação de guias de importação que resultou num prejuízo de US$ 117 milhões para os cofres públicos e novos arranhões na credibilidade da ZFM.

Régis Ribeiro Guimarães era secretário-geral do Ministério do Interior quando assumiu como interventor, em 1º de abril de 1986. A intervenção, prevista para durar até 12 meses, foi rápida e ele permaneceu na função até 03 de junho de 1986, quando foi concluída auditoria interna realizada na Autarquia. Entre as decisões tomadas nos dois meses em que esteve à frente da Suframa destacam-se a suspensão de todos os cadastros antigos e o recadastramento de firmas da indústria e do comércio e a elaboração de novos critérios para a distribuição das quotas de importação na Zona Franca de Manaus. O período de Régis como interventor coincide com a publicação do Decreto nº 92.560 (de 16 de abril de 1986) que prorrogou a vigência da Zona Franca de Manaus por 10 anos, estabelecendo o ano de 2007 como prazo final para o modelo – que encerraria em 1997.

A posse de Delile Guerra de Macedo, ex-presidente do Banco da Amazônia (Basa), como superintendente marcou o fim da intervenção na Suframa. Anunciado pelo ministro do interior, Ronaldo Costa Couto, no dia 2 de junho de 1986, tomou posse no dia 5, em Brasília, viajando em seguida para Manaus. Reestruturou a Autarquia, criou um Plano de Cargos e Salários para os Servidores, reviu normas e procedimentos e desenvolveu um intenso trabalho de divulgação no país e exterior e na atração de novas indústrias para a Zona Franca de Manaus. Sua administração também ficou marcada pela atuação forte na informatização dos sistemas de informação e controle da Suframa, o que permitiu o recadastramento de todas as empresas importadoras estabelecidas no modelo. Projetou excelente imagem pública da Suframa e da Zona Franca de Manaus, promovendo eventos como seminários para discutir os problemas e apontar soluções e feiras em outros Estados, mostrando ao Brasil os produtos fabricados na ZFM. Ficou no cargo até 04 de agosto de 1987, quando pediu afastamento ao então presidente da República, José Sarney, e retornou à presidência do Basa.

O bacharel em Direito, com pós-graduação em Economia, Jadyr Carvalhedo Magalhães era fiscal do Tesouro Nacional quando foi nomeado para a Suframa em 4 de agosto de 1987. Foi durante sua gestão que foi promulgada a Constituição Federal que garantiu os incentivos do modelo Zona Franca até o ano de 2013. Jadyr Magalhães prosseguiu o trabalho de divulgação da ZFM no país e exterior, organizando missões empresariais em busca de novos investidores. Nesse período foi criada a Área de Livre Comércio (ALC) de Tabatinga (AM) e realizados, em Manaus, eventos de grande porte o I Seminário Internacional de Turismo e o I Encontro de Zonas Francas Latino-Americanas e do Caribe, quando foi criada a Associação das Zonas Francas Latino-Americanas e do Caribe (AZOLCA), que reuniu cerca de 55 representantes de áreas de livre comércio e zonas francas localizadas em várias partes do mundo. De 1987 até 1989 foram aprovados mais de 450 projetos industriais pela Suframa e os primeiros enquadrados como polo de informática – que só teve autorização concedida pela Procuradoria Geral da República em 1988. Com a eleição de Fernando Collor para a Presidência do Brasil e a chegada de uma nova equipe econômica no governo federal, Jadyr deixou o cargo de superintendente em 17 de abril de 1990.

Leopoldo Carpinteiro Peres Sobrinho foi nomeado em 17 de abril de 1990, encontrando a ZFM em fase de indefinições. Os planos econômicos Collor I e Collor II e as medidas de abertura da economia do país ao mercado externo, inspirada no modelo neoliberal, afetaram principalmente o comércio de importados, até então forte atrativo de Manaus para os turistas domésticos consumidores, com o surgimento de centenas de “feiras de importados” em todas as capitais brasileiras. No período em que esteve à frente da Suframa, Peres enfrentou forte pressão da União para que a Zona Franca reforçasse as exportações, enquanto os empresários locais exigiam fim do contingenciamento das importações.

Foi na gestão de Leopoldo Peres que Tabatinga (AM) ganhou um escritório da Suframa, para representar a Autarquia na Área de Livre Comércio recém-criada na cidade fronteiriça. Também foi em sua gestão que foi assinado convênio com a Prefeitura de Manaus para o projeto urbanístico da nova Praça Francisco Pereira da Silva, conhecida como “Bola da Suframa”, no Distrito Industrial. Apresentou ainda ao Ministério da Economia estudos para substituir os índices de nacionalização dos produtos fabricados na ZFM pelo valor agregado da produção e deixou estudos mostrando a importância para o modelo de desenvolvimento de se asfaltar a BR-174, que liga a capital amazonense à capital de Roraima, o que permitiria escoar a produção local para a Venezuela e o Caribe. Permaneceu no cargo até 12 de março de 1991.

Alfredo Pereira do Nascimento foi nomeado em 12 de março de 1991 e permaneceu no cargo até 1º de agosto de 1992. Nesse período, foram criadas as Áreas de Livre Comércio (ALC) de Guajará-Mirim, no estado de Rondônia, de Macapá-Santana, no estado do Amapá, e também as de Pacaraima-Bonfim, em Roraima, o que levou a Suframa a realizar uma série de encontros e reuniões nestas localidades para a implementação efetiva das ALCs. No âmbito industrial, os índices de nacionalização deixaram de ser exigidos pelo Governo Federal, que os substituiu pela prática do Processo Produtivo Básico (PPB). Na gestão de Nascimento foi feita a adequação da ZFM à abertura do mercado brasileiro ao produto estrangeiro, pela Lei nº 8.387, de 30 de dezembro de 1991. Também em sua gestão iniciaram as discussões sobre o tratamento ao modelo Zona Franca no âmbito do Mercado Comum do Sul (Mercosul), criado com o “Tratado de Assunção”, de 1991. Entregou o cargo ao seu superintendente adjunto de Planejamento, Manuel Rodrigues.

Desde a sua implantação, conforme já foi visto, a ZFM passou por diversas fases, a saber: de 1967 a 1975, com predomínio da indústria de montagem, 138 projetos industriais foram aprovados pela Suframa, envolvendo a criação de 26 mil empregos diretos. De 1975 a 1991, é marcado pelo índice de nacionalização, quando a contrapartida dos incentivos fiscais passou a ser a nacionalização de insumos, o que trouxe maior valor agregado ao Polo Industrial de Manaus (PIM). Em 1990, o Polo Industrial de Manaus já empregava 77 mil trabalhadores diretos. A partir de 1991, o Processo Produtivo Básico (PPB) passou a ser a contrapartida principal dos incentivos fiscais. Foi quando Fernando Collor ganhou a primeira eleição direta presidencial pós-regime militar.

A bancarrota de algumas empresas gigantes do PIM

Instalações da Sharp do Brasil em meados dos anos 70

A abertura comercial brasileira ocorrida no governo Collor e continuada durante o governo de FHC, foi um período de extrema relevância na história econômica do país, pois representou a ruptura do protecionismo tarifário feito pelo governo para com a indústria nacional, proteção esta herdada do modelo de industrialização baseado na substituição das importações. A diminuição das tarifas de importação, a abolição dos regimes especiais para produtos importados e a unificação de tributos incidentes sobre as compras externas, entre outras medidas, fizeram com que as empresas nacionais sofressem uma dura concorrência das firmas e dos produtos importados, levando à falência muitas firmas locais, pois estas não eram nem um pouco competitivas se comparadas às estrangeiras.

A abertura foi acompanhada de um processo de privatização, que é a venda de empresas ou instituições do setor público. Neste período, a venda de empresas estatais, foi de proporções sem precedentes na história, foi o maior programa de privatizações do mundo, totalizando US$ 105,9 bi ao final do processo. Todo o processo de abertura comercial foi feito com base nos ideais do Consenso de Washington, que foi uma reunião realizada em novembro de 1989 em Washington, com representantes dos EUA, do FMI, do Banco Mundial e do BID. O principal objetivo deste encontro era procurar explicações, e possíveis saídas para a crise pela qual a América Latina vinha passando desde o final da década de 70 e durante a década de 1980. A conclusão? Ou a América Latina entregava os anéis ou perdia os dedos.

Infelizmente, todo esse processo se deu acompanhado de um grande número de falências de empresas nacionais, grande número de aquisições de empresas nacionais por parte das estrangeiras e observou-se também uma queda nos níveis de emprego graças à política de contenção de gastos e modernização dos parques produtivos das empresas domésticas. Evidentemente, o aumento das importações, favorecido pela abertura comercial e pela política cambial, fez com que houvesse uma redução significativa do número de pessoas ocupadas na maioria dos setores, além de exportar empregos e evitar que vagas fossem criadas dentro do país. Na ZFM, setores inteiros foram dizimados pela concorrência predatória, como o de lapidação de joias, fabricação de relógios e fabricação de óculos, entre outros.

Poucos empresários se movimentaram com tanta desenvoltura no regime militar como o gaúcho Matias Machline. Nascido em Bagé, no interior do Rio Grande do Sul, em 1933, Matias Machline era um desses fenômenos do capitalismo, um homem que surgiu do nada e construiu um dos maiores impérios industriais do país. Filho de um casal que fugiu da Rússia para a Argentina pouco antes da revolução bolchevique, em 1917, Machline começou a vida como vendedor de máquinas de escrever em Porto Alegre. Em apenas três décadas, construiu tijolo por tijolo um negócio que faturava 980 milhões de dólares por ano. O grupo Sharp, que incluía a Sid Informática e o Digibanco, fabricava mais de 100 produtos, de televisores e computadores a centrais telefônicas. Foi uma das empresas que mais vendeu televisores, videocassetes e fornos de microondas no país.

Sua ascensão teve início em 1965, um ano após os generais se instalarem no Palácio do Planalto, quando obteve dos japoneses a autorização para revender com exclusividade calculadoras da marca Sharp aqui no Brasil. Seu declínio começou em 1990, ano em que o primeiro governo eleito democraticamente desde 1964 assumiu o comando do país e promoveu a abertura de mercado. A partir dali a Sharp mergulhou em uma longa agonia, agravada em 1994, com a morte do próprio Machline, em um acidente de helicóptero nos Estados Unidos. Sete anos depois, com a operação paralisada e vergada por dívidas de US$ 350 milhões, o grupo teve sua falência decretada. Era o fim de um império que, no auge, abrigou cerca de 30 empresas e registrou receitas à beira do US$ 1 bilhão. O motor desse crescimento reunia, além do faro comercial de Machline, uma excelente rede de amizades com os ocupantes do poder e a capacidade de aproveitar o ambiente econômico daquele momento, formado por abundantes recursos financeiros oficiais e um mercado fechado à competição internacional.

Até 1969, Machline era um importador de máquinas de calcular à frente da desconhecida Cimpro. Naquele ano, com o domínio da marca Sharp, ele iniciou a trajetória de industrial que o levaria à liderança nas vendas de calculadoras, televisores, videocassetes e até microcomputadores. O grande salto aconteceu em 1972, quando se tornou um dos pioneiros na fabricação de eletroeletrônicos na Zona Franca de Manaus, com a implantação de uma pioneira fábrica de calculadoras na Av. Constantino Nery. Para a empreitada, ele contou com o apoio (e dinheiro) do então ministro das Comunicações Higino Corsetti. As portas do governo federal foram abertas graças à amizade com o general João Baptista Figueiredo, um dos mais próximos colaboradores do presidente Emílio Garrastazu Médici. O próprio Médici ficou encantado com a conversa daquele jovem empresário e suas promessas de desenvolver uma indústria eletroeletrônica nacional para a população assistir à Copa do Mundo de Futebol numa televisão a cores.

O relacionamento entre Figueiredo e Machline também ajudou a colocar de pé a Lei de Informática, em 1982, quando o general já ocupava a Presidência da República. Com a reserva do setor para as empresas nacionais, a Sid Informática, de Machline, se transformou em uma das líderes na fabricação de microcomputadores – e num dos primeiros empregos de Jonnhy, um dos filhos de Figueiredo. No governo seguinte, Machline continuou circulando à vontade pelos corredores do Brasília. Um de seus principais amigos, José Sarney, ocupava a Presidência e o grupo Sharp arriscou-se por outros caminhos, como a TV por assinatura, em associação com o Grupo Abril. O negócio não prosperou e ajudou ao Grupo Machline entrar na trajetória de problemas que o levou à bancarrota dez anos depois.

Um dos segredos de Machline era atrair os sócios certos na hora certa. “Quem não sabe investir não chega a lugar algum no mundo dos negócios”, costumava dizer. Em 1969, buscou no Japão a concessão para fabricar as calculadoras Sharp na ZFM. Em 1972, pressentiu que a televisão em cores se transformaria no principal sonho de consumo do brasileiro e associou-se novamente aos japoneses num empreendimento pioneiro: a construção da primeira fábrica de televisores em Manaus. Para tocar a empresa, convidou o ex-governador Danilo Areosa, que assumiu a vice-presidência da Sharp. Dez anos mais tarde, Machline achou que era hora de ingressar na produção microeletrônica e de bens de informática e criou a Sid Informática, que tinha como sócia a IBM americana, gigante mundial do setor. Sua última grande tacada foi na área de telecomunicações: em 1991 associou-se à americana AT&T, dona de um faturamento de 67 bilhões de dólares, para fabricar equipamentos de telefonia móvel.

O crescimento meteórico do grupo também teve seu preço. Grande, pesada e difícil de conduzir, a Sharp enfrentou turbulências durante a recessão e a caótica abertura econômica desencadeada pelo governo Collor. No final de 1993, a empresa acumulava uma dívida de cerca de 170 milhões de dólares. O número de empregados baixou de 13 mil para 6 mil. Na mesma época, Machline enfrentou um segundo problema: uma briga judicial com a ex-mulher, Carmem Thereza, e o mais velho de seus quatro filhos, José Maurício, pelo comando dos negócios. O empresário chegou a transferir a presidência do grupo para um executivo profissional, Mauro Marques, encarregado de conduzir um acordo com os bancos para renegociar a dívida do grupo, mas depois voltou atrás.

“Minha cadeira, só eu ocupo”, explicou ao reassumir o cargo em fevereiro de 1994. Desde então, desfechou um ajuste rigoroso na organização, que incluía reduzir de 44 para 15 o número de empresas do grupo e fechar unidades na Argentina. No dia 8 de agosto, quatro dias antes do acidente de helicóptero que lhe custou a vida, Machline comemorava o primeiro bom resultado desse esforço: depois de quatro anos de prejuízos, o grupo tinha voltado a dar lucro no primeiro semestre. Criador de cavalos puros-sangues, influente na política e nos negócios, Machline era amigo pessoal dos ex-presidentes João Figueiredo e José Sarney. No governo Sarney foi o principal interlocutor do presidente com o empresariado paulista e uma das poucas pessoas que eram recebidas no Planalto sem hora marcada.

Matias Machline deu início à profissionalização do grupo, mas não conseguiu concluir seu projeto. Morreu em agosto de 1994, aos 61 anos, em um acidente de helicóptero junto com a segunda mulher, Marina Araújo. O helicóptero fora alugado da empresa Island Helicopters, pelo dono da Sharp para retornar de Nova Jersey para Nova York, onde estava hospedado no Plaza Hotel. Machline e Marina haviam embarcado em Nova York para passar o fim-de-semana em Atlantic City. O empresário estava nos EUA para reuniões na multinacional AT&T, com a qual mantinha uma sociedade. Na semana seguinte, iria ao Japão, para negócios com a Sharp, sua sócia no Brasil desde 1969. Machline deixou quatro filhos, José Maurício, Carlos Alberto, Sérgio e Paulo, todos com sua primeira mulher, Carmen Teresa Machline.

Uma das pioneiras do mercado de áudio, a Gradiente foi fundada pelos engenheiros Nelson Bastos e Alberto Salvatore, em outubro de 1964, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, e já mostrava um grande potencial quando lançou em 1965 um dos primeiros amplificadores valvulados do Brasil. Em 1970, quando ainda era uma pequena fabricante de eletrônicos, a Gradiente foi comprada pelo empresário Émile Staub. Logo em seguida, quem assume o comando é o filho dele, Eugênio Staub. Em 1972, a Gradiente dá início às ações que seriam bem comuns dali pra frente: comprar e se aliar a outras marcas. Foi nesse ano que a empresa inaugurou sua fábrica na ZFM.

A expansão andava a todo vapor e, em 1975 ela abre uma subsidiária no México, que manteve por 13 anos. Em 1979, mirando o mercado externo, a Gradiente vai às compras e adquire duas marcas. A primeira é a tradicional marca inglesa Garrard, especializada em toca-discos e aparelhos de som. Mas a aquisição deu errado. Em 1982, a Gradiente fechou a planta da Garrard na Inglaterra em virtude dos altos custos e passou a produzir tudo no Brasil. Em 1997, ela revendeu a marca para a também inglesa Loricraft Audio, em um negócio que fez a Gradiente perder 18 milhões de dólares. A segunda é a Polyvox, que tinha Alberto Salvatore como um dos fundadores e era concorrente direta da empresa. Como nova dona, ela fez sistemas 3 em 1 e radio gravadores. Mas claro que o principal produto dela foi mesmo o console Atari 2600, licenciado pela Warner em 1983. O mercado de games no Brasil ainda era bem jovem, e trazer o Atari foi um ótimo acerto. O país já estava cheio de clones de outras marcas e Ataris importados, mas o selo de original transformou o console em sensação. Foi o primeiro console de muitos brasileiros.

Em 1989 a Gradiente comprou a Telefunken entrando no mercado de televisores. A compra da Philco, em 2005, marcou o ápice da derrocada e levou a empresa, que chegou a faturar mais de R$ 1,4 bilhão/ano a um prejuízo de R$ 224 milhões em 2007. O negócio é considerado pelo fundador Eugênio Staub como a principal causa da falência da empresa. Em 2007 vendeu a licença de uso da marca para a Britânia, por R$ 22 milhões.

No mesmo ano, quando a Gradiente se retirou do mercado de eletrônicos no Brasil, por conta de uma série de dificuldades financeiras, por má gestão operacional e governança, deixou uma dívida de R$ 442,8 milhões, com 250 credores. A empresa abandonou 497 trabalhadores sem pagar a rescisão contratual e os direitos trabalhistas, forçando os empregados a entrarem com ações na justiça do trabalho para receber seus direitos junto à Gradiente, que recorreu a um lote de televisores embargado pela Justiça para pagar dívidas trabalhistas aos seus funcionários.

Uma das líderes mundiais do mercado eletroeletrônico, a Philco nasceu oficialmente nos Estados Unidos em 1892 com o nome de Spencer Company, tendo Thomas Spencer como um de seus fundadores. Já no mesmo ano ela mudou de nome pela primeira vez, se tornando a Helios Electric Company. A marca começou fabricando lâmpadas de arco de carbono e quase faliu já no começo da vida porque esse produto ficou obsoleto. Depois de cinco anos de penúria financeira, outro sócio fundador, Frank Marr, conseguiu liquidar as dívidas e recomeçar praticamente do zero.

Em 1906, a Helios entrou no setor de baterias para carros, caminhões e veículos de passeio e passou a se chamar Philadelphia Storage Battery Company, ou simplesmente Philco. Mas o produto que fez mesmo a marca entrar para história foi o rádio. Ela começou a fabricar seus primeiros modelos em 1928, bastando apenas dois anos para virar líder de mercado nos Estados Unidos. A partir de 1948, ela entra no mercado de televisores e também alcança a posição de líder do mercado.

Em 1955, vem um avanço técnico que revolucionou a fabricação dos seus eletrônicos: os transistores de barreira superficial, que eram mais rápidos e poderosos que os anteriores, para serem usados nos circuitos de frequência mais elevada. Os resultados vieram na sequência. Para começar, ela produz o primeiro radio automotivo de transistores produzido comercialmente em parceria com a Chrysler.

Em 1957, ela faz computadores transistorizados para uso em aeronaves e inicia uma importante parceria com a Marinha dos EUA. Os computadores da marca até que tinham boa qualidade, mas não conseguiram desbancar a IBM nesse mercado e a empresa reduziu consideravelmente os investimentos nos produtos. Nesse mesmo ano, a Philco entra no mercado de lavadoras e secadoras.

No começo da década de 60, a Philco fecha um contrato com a NASA para ser a responsável pela rede do Programa Mercury, o primeiro de exploração espacial tripulada do país. Ela ainda cuidou de design e instalação de central controladora de missão em um dos prédios do Johnson Space Center, no Texas, tendo a estrutura aproveitada até 1998 em missões como Gemini, Apollo e no Space Shuttle, o ônibus espacial.

No Brasil, a Philco chegou oficialmente em 1934, e o rádio Philco 89, conhecido como “capelinha” se tornou um caso de um sucesso. Já em 1948 ela abre a primeira fábrica brazuca, no Rio de Janeiro, produzindo alguns dos primeiros rádios nacionais. A fábrica depois foi pra São Paulo, para o bairro de Interlagos, e depois abriu uma segunda planta na região do Tatuapé. Líder do mercado de rádio e de tevês P&B, a Philco foi adquirida pela Ford, passando a se chamar Philco-Ford.

Em 1974, a Philco inaugura sua fábrica no Distrito Industrial para produzir tevês a cores e P&B. Era uma empresa pequena, com pouco mais de 1 mil funcionários. Nos anos 80, a Philco faz um acordo com a japonesa Hitachi e passa a fabricar produtos como câmeras e videocassetes sob o nome Philco-Hitachi. Se transforma numa das grandes empresas do PIM, com quase 3 mil funcionários. Isso dura até 1992, quando a Itautec compra a Philco. Os burocratas da Itautec, oriundos do setor financeiro, rompem a parceria com a Hitachi e operam uma “reengenharia” estapafúrdia, que dá com os burros n’água. A Philco, que disputava a liderança do mercado com a holandesa Philips, começa a degringolar.

Em 2005, a Itautec começa a se desfazer do setor de rádio, TV e eletro, e coloca a Philco no mercado. Quem compra é a Gradiente, que pagou uma bolada para levar a marca e virar uma das maiores marcas totalmente brasileiras no setor de tecnologia. Só que as finanças da Gradiente já não eram boas naquela época, e ficaram ainda piores com outra grande marca para administrar.

Em 2007, tecnicamente quebrada, a Gradiente vende a Philco por 22 milhões de reais para um grupo de investidores chineses, cerca de metade do valor pelo qual ela comprou. O grupo então licencia o uso da marca para a empresa Britânia. É ela quem aproveita as décadas de experiência e de mercado da companhia em som e imagem, além de eletrodomésticos. A Britânia ainda lançou tablets, como o PH7G, o 10.1B-B111A e o 9B-P711A. Pois é, dar nome para os modelos não era muito o forte da empresa. Atualmente, a Britânia fabrica artefatos de material plástico e periféricos para equipamentos de informática.

Outras grandes empresas que desapareceram do mercado após a abertura “collorida” às importações: Alfema, Troll, Springer, Telefunken, C-Itoh, Dismac, Basf, Icel, Watt, Abril Vídeo, Videolar, Sony Music, Sanyo, Panasonic, Semp-Toshiba, Evadin-Mitsubishi, Tojo, Medave, Transfortek, Verbatim, IALO-IAOL, Drohaoser, Beta, CCE, Facit e Hpust, entre outras.

De Paris das Selvas a uma nova Babilônia

Palafitas urbanas na periferia de Manaus

Segundo um estudo do MapBiomas, Manaus foi a capital do país que mais registrou crescimento de favelas em 37 anos. A capital amazonense possui um território ocupado por favela equivalente a 10 mil campos de futebol. De acordo com o levantamento, feito a partir da análise de imagens de satélite captadas entre 1985 e 2021, atrás de Manaus (9.549 hectares) aparecem São Paulo (5.579 hectares), Belém (5.450 hectares), Rio de Janeiro (5.038 hectares) e Salvador (4.793 hectares) no ranking das cinco capitais que registraram os maiores crescimentos de ocupações irregulares.

“O crescimento das favelas tem um comportamento parecido com o das áreas urbanizadas, mas na década de 90 as áreas informais aceleraram o avanço. A expansão da urbanização tem impactos no consumo dos recursos naturais, na qualidade de vida e, de uma maneira geral, na sustentabilidade urbana, mas quando falamos das favelas, além disso, há uma chance muito grande do aumento de ocupação de áreas de risco por populações mais vulneráveis”, explica Julio Cesar Predrassoli, um dos coordenadores do mapeamento de Áreas Urbanizadas do MapBiomas.

De forma geral, a Amazônia lidera o percentual de crescimento das ocupações informais do território: 29,3% do crescimento urbano nesse bioma foi em áreas informais. A região norte possui 13 das 20 cidades com maior proporção de crescimento, com Belém entre as cinco primeiras da lista. As imagens de satélite permitiram identificar que a ocupação urbana como um todo em áreas de risco aumentou três vezes entre 1985 e 2021. Em áreas informais esse avanço foi ainda maior: 3,4 vezes. De cada 100 hectares de favela, 15 foram construídos em áreas de risco.

Em 1970, quando o Polo Industrial de Manaus começou a ser implantado, a capital amazonense possuía 473 mil habitantes. Atingiu 922 mil habitantes em 1980, um crescimento de 104,5%. Como medida para desvirtuar as grandes ocupações irregulares de lotes em Manaus, o governo passou a criar loteamentos de terra regulares voltados para os migrantes que chegavam à cidade. Bairros como Cidade Nova, São José Operário e Armando Mendes surgiram desta iniciativa. Neste período, acentuaram-se as degradações ambientais, principalmente nas zonas leste e norte, uma vez que essas regiões da cidade sofreram os maiores impactos ambientais, poluição de rios e perda de biodiversidade e mata nativa nos últimos anos.

Em 1991, o município ultrapassou a marca de 1 milhão de habitantes, e, em 2014, ultrapassou os 2 milhões, dobrando a população em 23 anos. Manaus configura-se atualmente na 26ª cidade mais populosa da América e na sétima mais populosa do Brasil, abrigando pouco mais da metade da população do Amazonas. É evidente que as empresas sediadas no Distrito Industrial nada tiveram a ver com esse descalabro. Elas entregaram o que prometeram: bons empregos, salários decentes, fardamento, transporte e alimentação gratuitos, assistência médica e odontológica, tanto no ambiente de trabalho quanto em redes particulares, por meio de assistência de saúde em grupo, e investimentos em treinamento dos funcionários e capacitação tecnológica.

Ocorre que o poder público foi incapaz de ter esse mesmo dinamismo na ampliação da infraestrutura urbana e na oferta de serviços essenciais à população, deixando os operários do Distrito Industrial praticamente entregues à própria sorte. As sucessivas levas migratórias de gente vinda dos munícipios do interior ou dos estados vizinhos (Pará, Maranhão e Ceará, principalmente) para trabalhar na cidade praticamente colapsaram a cidade, já que não havia como acomodar tanta gente em condições razoáveis. Mal comparando, era como se a cada ano o prefeito tivesse que fazer em Manaus uma nova cidade do tamanho de Parintins. Evidentemente, isso era uma façanha impossível de ser realizada. E esse foi o marco zero para o início do faroeste caboclo que transformaria a antiga Paris das Selvas em uma Nova Babilônia.

A contradição estava na cara de quem quisesse ver: durante o dia, os trabalhadores desfrutavam das benesses de unidades fabris do Primeiro Mundo – ambiente climatizado, iluminação adequada, restaurantes funcionais, áreas de lazer –, mas no final do expediente, quando retornavam às suas residências, tinham que se defrontar com casebres mal ajambrados, ruas de terra sem iluminação pública, ausência quase permanente de energia elétrica e água potável, falta de policiamento ostensivo, falta de postos médicos, falta de escolas, falta de praças, falta de igrejas, ausência de áreas de lazer, ambientes cada vez mais insalubres por conta dos milhares de piuns, carapanãs e muriçocas, enfim, um verdadeiro inferno de Dante. O chamado “cinturão da pobreza” começava a se expandir na periferia da cidade sem que o poder público se dignasse a instituir uma política habitacional voltada para as classes menos favorecidas.

Além disso, o déficit habitacional avançou na mesma proporção que as ocupações irregulares, que tomaram conta de áreas verdes e de risco, agravando outros problemas da cidade, como mobilidade urbana e saneamento deficiente. Como medida para desvirtuar as grandes ocupações irregulares de áreas verdes, o governo passou a criar loteamentos de terra regulares voltados para os migrantes que chegavam à cidade. Bairros como Cidade Nova, São José Operário e Armando Mendes surgiram desta iniciativa. Neste período, acentuaram-se as degradações ambientais, principalmente nas zonas leste e norte, uma vez que essas regiões da cidade sofreram os maiores impactos ambientais, poluição de rios e perda de biodiversidade e mata nativa nos últimos anos. E a luta dos sem-teto começou a entrar na ordem do dia.

Até os anos 70, a cidade era cortada por mais de três centenas de igarapés límpidos e aprazíveis. Ninguém precisava sair da zona urbana da cidade para praticar natação. Os “banhos”, nome popular dos balneários, particulares ou não, existentes no curso dos igarapés, eram quase uma instituição regional. Um estudo recente realizado pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), entretanto, constatou que os córregos de Manaus poderão desaparecer devido à poluição crescente, advinda da irregularidade do sistema de esgoto dos domicílios da cidade e do processo de recuperação dos córregos. Partes dos rios Negro e Solimões também se encontram em estado de poluição. A degradação dos igarapés de Manaus e o déficit de saneamento básico e ambiental são problemas com o reflexo direto na saúde de seus habitantes. O problema da poluição, falta de tratamento e de distribuição da água também é agravado pela ocupação irregular das áreas de mananciais, ocasionada pela expansão urbana.

Para entender como chegamos a isso é preciso retornar um pouco ao passado. Quem conta é o escritor e jornalista Sebastião Nery, no livro “Folclore Político – 1950 histórias” (Geração Editorial):

Artur Cezar Ferreira Reis, professor e amazonólogo, sempre viveu no Rio de Janeiro. Filho de Vicente Reis, fundador do Jornal do Comércio, foi estudar no Rio e lá ficou pesquisando de longe a floresta, virgem de sua presença.

Estava em Genebra, em 1964, numa comissão internacional a serviço do governo brasileiro, recebeu um telegrama chamando-o de volta. Pegou o avião, desceu no Galeão. Os jornalistas não entenderam a cara displicente.

– Como é, professor? Como é que vai ser o governo?

– Que governo?

– Ora, professor, não brinque. Será que o senhor ainda não sabe? O senhor foi eleito governador do Amazonas.

– Eu? Por quem?

– Pela Assembleia.

Artur César coçou os olhos, pôs a pasta no chão e esfregou as mãos, nervoso:

– Ninguém avisa mais nada pra gente…

A Cidade Flutuante dos anos 60

Pois foi desse jeito, digamos assim, meio rocambolesco, que o governo do Amazonas caiu no colo do historiador e advogado Artur Cezar Ferreira Reis, amazonense de Manaus, no dia 27 de junho de 1964, logo após a cassação do então governador Plínio Coelho (PTB) pelos militares que haviam deposto o presidente Jango. Para se ambientar com a região, Artur Reis desceu do avião em Belém do Pará e embarcou no navio Augusto Montenegro, subindo o rio Amazonas até Manaus. Era uma viagem, digamos assim, de reconhecimento da hileia que ele só conhecia de livros. Quando o navio subia o Rio Negro, rumo ao Porto Flutuante, o historiador pirou o cabeção ao se deparar com a Cidade Flutuante, de cuja existência ele sequer desconfiava. Mas vamos dar um break nessa história.

No começo daquele mesmo ano, numa manhã chuvosa, os produtores franceses do filme “O homem do rio”, estrelado por Jean-Paul Belmondo, tinham desembarcado em Manaus para fazer a pré-produção e escolher as locações. Não podiam ter encontrado melhor lugar para se hospedarem, senão o Hotel Amazonas, o único da região com ar condicionado. Ele ficava situado estrategicamente entre o Porto Flutuante, o Mercado Municipal e o lugar inusitado que eles não imaginavam existir por ali, a Cidade Flutuante. Aquela paisagem, numa arquitetura dançante, impressionou-os. E ficaram mais impressionados ainda quando um dia se viram no olho do furacão.

Eles estavam passeando pelas vielas daquela imensa favela aquática, quando ouviram gritos populares de “não deixa o assassino fugir”, em meio a uma algazarra infernal. Os produtores franceses ficaram bestas ao presenciarem um suposto criminoso fugir através de um buraco que, evidentemente, só podia levá-lo às águas do rio. O sujeito, nadando por debaixo da Cidade Flutuante, conseguiu escapar de bubuia e escafedeu-se. O intérprete traduziu aos gringos o que havia dito o delegado Almir Omar: “Esse meliante escapou por debaixo desse labirinto, mas não vai ser por muito tempo. Peixe que é peixe sempre é obrigado a vir buscar oxigênio fora d’água”.

Ao notar que os gringos estavam interessados na sua opinião, o delegado aproveitou para exibir sua sabedoria regional: “A vida do homem nessa região é uma realidade anfíbia, daí esse pessoal não se intimidar com a fúria do sobe e desce das águas. Eles vão construindo suas casas palafitas, e não só elas, mas toda e qualquer atividade: lojas, postos de gasolina, quitandas, botecos que, estruturados sobre toras e ancorados em pontos que facilitem o comércio, funcionam em tempo de cheia ou vazante. Aqui é a Manaus que nunca dorme”. Essa última frase soou como canto de sereia aos ouvidos dos produtores. Haviam achado a sua locação.

No filme “O Homem do Rio”, o ator francês Jean Paul Belmondo movimenta-se sem inibição de qualquer natureza. Em questão de segundos ele sai de Paris, entra no avião, desembarca no Rio de Janeiro, pula sobre a floresta amazônica, desafia seus desafetos entre as vielas da Cidade Flutuante, equilibra-se nos andaimes dos monumentais prédios em construção de Brasília, e tudo isso dentro de uma narrativa fragmentada, com enquadramentos e montagens desconcertantes. O cineasta amazonense Aurélio Michiles atualmente trabalha no documentário “O quintal da minha casa”, onde pretende mostrar essa passagem dos produtores franceses por Manaus e o que aconteceu depois com a cidade.

Mas voltando ao primeiro governador do Amazonas durante o regime militar. Desconcertado com o que viu e achou esquisito (“Narciso acha feio o que não é espelho”), Artur Reis, inspirado no governador carioca Carlos Lacerda, resolveu “remover” a favela que “dava um aspecto horroroso à bela frente da cidade”. Para quem não está lembrado, durante seus quatro anos de mandato, entre 1960 e 64, o governador Carlos Lacerda defendeu uma reformulação completa da política habitacional no Estado do Rio. Seu objetivo era levar os pobres para a periferia, nos mesmos moldes do que acontecia nas principais cidades da Europa e Estados Unidos. Foi durante seu governo que foram construídas a Vila Kennedy, em Senador Camará, a Vila Aliança, em Bangu, e a Vila Esperança, em Vigário Geral, além da Cidade de Deus, em Jacarepaguá, que sozinha recebeu moradores de 63 favelas extintas. A criação dos conjuntos habitacionais fazia parte do Plano de Habitação Popular, amplamente financiado pelo governo americano através da Aliança para o Progresso.

O amazonense Artur Reis usou da mesma receita. Depois de construir as Cohab-AMs da Raiz, de Flores e do Parque Dez, usou da força policial para remover os moradores da Cidade Flutuante para esses novos conjuntos residenciais, localizados lá no caixa-prego. Os recalcitrantes tiveram suas “casas flutuantes” incendiadas. Na sequência, também a ferro e fogo, Artur Reis começou a expulsar os moradores de palafitas dos leitos dos igarapés, removendo-os para a periferia da cidade (Compensa, Alvorada, Japiim) e obrigando-os a se manterem afastados 30 metros dos cursos d’água, tal como preconiza o Código de Postura do município. Quem desobedecesse, teria o barraco incendiado.

Essa medida antipopular, mas “ambientalmente correta”, foi colocada em prática, com maior ou menor rigor, pelos governadores que o sucederam (Danilo Areosa, coronel Walter Andrade, Henoch Reis e José Lindoso), o que possibilitou que a maioria dos igarapés da cidade continuasse servindo como “balneários públicos” até o início dos anos 80. Os governantes não precisavam prestar contas a ninguém nem angariar simpatia popular, já que eram nomeados pelos “donos do poder”. Simples, assim.

Mas em 1982, o país começou a se “redemocratizar” e ocorreram as primeiras eleições diretas para governadores. Foi quando “o populismo que não ousa dizer seu nome” entrou em cena. As invasões passaram a ser toleradas – afinal de contas, os invasores possuíam título de eleitor – e até incentivadas. O reordenamento territorial da cidade foi pras cucuias. A saúde dos cursos d’água, também. Os primeiros a se transformarem em esgoto a céu aberto foram os igarapés da bacia de Educandos e Cachoeirinha (Igarapé de Manaus, Igarapé da Cachoeirinha, Mestre Chico, Quarenta, Crespo, Granja, etc). Depois os da bacia do Mindu, incluindo o famoso balneário Parque Dez de Novembro, implantado pelo prefeito Antonio Maia nos anos 50, e os da bacia de São Jorge e São Raimundo, incluindo os igarapés do Franco, da Alvorada e dos Franceses. Finalmente, a bacia do Tarumã e da Ponte da Bolívia, localizados praticamente fora do perímetro urbano da cidade.

Em menos de 10 anos, os novos “forasteiros” haviam transformado os igarapés de águas límpidas e transparentes em pocilgas nauseabundas e focos permanentes de transmissão de doenças de veiculação hídrica (dengue, malária, hepatite, etc.), porque não tinham mesmo para onde ir. Sim, quando há uma expansão urbana, o crescimento desordenado tem uma relação direta com a perda da qualidade da água. Qualquer um que não seja um batráquio de pijamas sabe disso. Só os nossos governantes não sabiam. Mas, a essa altura do campeonato, com 99% dos igarapés que cortam Manaus totalmente poluídos, adianta chorar pelo leite derramado? Acredito que não. Se parássemos hoje de jogar esgotos domésticos nos igarapés, seriam necessários mais de 40 anos para que eles se recuperassem. Só que isso nunca vai acontecer. “Tó pra vocês, chupins desmemoriados!” (Decius dixit).

A luta da irmã Helena Augusta Walcott

Irmã Helena, a mãe dos sem teto

Em artigo publicado no livro “Vidas que falam”, de José Ricardo Wendling e Cristiane Oliveira, publicado em 2018, o escritor, tecnólogo em Gestão Pública e educador popular Ronald Seixas fez um emocionante relato sobre a vida da irmã Helena Augusta Walcott, intitulado “Irmã Helena Augusta: a mãe dos sem-teto”, que merece ser transcrito na íntegra:

Ela foi líder e coordenadora do Movimento dos Sem-Teto nos anos 70, 80 e 90, pelo qual transformou as terras improdutivas de grandes latifúndios em bairros e garantiu moradia digna para a população pobre em Manaus, tornando-se conhecida por muitos como a “lenda viva das ocupações de terras no Amazonas”.

Nascida em Guajará-Mirim (RO), no dia 15 de junho de 1934, Helena Augusta é a oitava filha de 9 irmãos e viveu até os 15 anos na Bolívia. Seus pais, Lorenzo Walcott e Clarisa Knights Walcott, são de Barbados, no Caribe. Ela iniciou sua carreira profissional como professora em 1951 e formou-se como assistente social. Aos 24 anos, entrou para o convento, no segundo ano fez os votos, e desde então é freira religiosa consagrada pela Congregação das Adoradoras do Sangue de Cristo. Como professora nas escolas de sua congregação, dedicou atenção para que as crianças mais pobres estudassem. Dedicou parte de sua vida na missão com os marginalizados, pela falta de moradia em Manaus. Iniciou ajudando os presos da delegacia no bairro Santo Antônio. Logo, foi lutar com as famílias pela conquista de moradia na ocupação do bairro da Compensa, nos anos 1970, antes mesmo da criação do Movimento dos Sem Terra (MST) no Brasil. Quando ela foi morar na periferia, assumiu liderança na Comissão Intercomunitária de Defesa da Compensa.

A necessidade de ajudar o povo excluído do direito à moradia impôs sua continuidade na luta que ela nem tinha noção da dimensão que a mesma iria se tornar para a cidade. Após essa experiência, fundou mais de 15 bairros, principalmente nas zonas norte e leste de Manaus. Mas suas lutas iam para além dos assentamentos. Em muitas ocasiões de despejos, Helena Augusta acompanhou as famílias nos abrigos improvisados pelos órgãos públicos, como foi o caso de várias famílias que foram abrigadas no prédio do CSU do Alvorada. Sua ousadia e coragem tranquilizavam o sofrimento de um povo que não tinha onde morar. Isso na vida de muitas famílias era a única segurança e esperança.

Ela pautava a importância do seu trabalho e disciplinava o povo a se engajar na organização das ocupações. E, assim, formou uma equipe com mais de 50 líderes, em várias ocupações, que se autoajudavam, como forma de demonstrar amor ao próximo e gratidão por terem conquistado sua terra. Tudo era muito bem preparado. As áreas eram estudadas com detalhes, não poderia haver falhas na ocupação. As estratégias eram discutidas com as famílias. A meta mínima era iniciar com 400 famílias, todas prontas para montar o acampamento. Todos se autoajudavam na limpeza da área, na construção dos barracos e na alimentação nos acampamentos. A “união na luta” era seguida fielmente por todos até a liberação da área.

A vidas nas ocupações era organizada de acordo com as diretrizes das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), com encontros animados, cantos litúrgicos e populares (“Pai nosso dos pobres marginalizados… A luta vai ser tão difícil, na lei ou na marra nós vamos ganhar… O povo de Deus no deserto andava…). as famílias uniam-se em torno de rezas e reflexões bíblicas, iluminando sua caminhada na busca da terra prometida. Inclusive, aí está o sentido para a origem dos nomes de alguns bairros criados por aquele movimento.

A liderança de irmã Helena no comando das ocupações desafiou muitos poderosos e autoridades da época, visto que, como hoje, em Manaus não havia uma política pública de habitação para a população. Os conflitos fundiários deixavam o alto clero da Arquidiocese de Manaus inseguro, apreensivo e muito preocupado com o sofrimento e a segurança do povo e com a vida da missionária, que foi presa por mais de três vezes e andava jurada de morte. Ela liderou as ocupações movida por ideias cristã, muito coerentes com práticas de justiça social aos mais pobres e marginalizados.

Nas ocupações, Helena Augusta era identificada de longe, caminhava livremente a qualquer hora, sempre protegida e rodeada por muitas pessoas. Nos dias ensolarados, ela usava um chapéu de palha amarelo e, nos dias de chuva, calçava sua bota de agricultor, símbolo muito peculiar. Outro método que marcou as ocupações foi a utilização de apito como instrumento de comunicação e mobilização das pessoas. Semelhante aos guardas de trânsito ou aos árbitros de futebol, a irmã codificou um apito e repassou o significado ao seu povo. Reforçava o significado específico de cada sopro nas reuniões.

Um era para chamar todos para a reunião geral, outro era para chamar somente seus auxiliares, aqueles que coordenavam algum trabalho. Cada apito era específico para um momento diferenciado e todos seguiam fielmente, até algumas crianças entendiam o significado dos sopros. Porém, o sopro mais conhecido era aquele avisando quando a polícia e as máquinas chegavam na ocupação para reintegrar a posse da terra ocupada. Muitos o conheciam como “Apito do Quebra-quebra”. Esse, sim, unia o povo da ocupação.

Para receber os lotes, as famílias passavam por uma série de reuniões coordenadas por essa religiosa. Antes, porém, a equipe de líderes fazia visitas à família, para considerar as informações prestadas e se eles precisavam realmente da terra. Era um filtro inicial que inviabilizou muitos oportunistas de se aproveitarem. Após essa etapa, a família era cadastrada e recebia a ficha para participar das reuniões, na qual era orientada para ocupar a terra.

Helena Augusta, com seriedade, proibia a venda de lotes e, de forma bem segura, exigia o compromisso de todos, onde a prioridade era morar e o compromisso pela fiscalização era mútuo. A presença das famílias nas reuniões era controlada por meio de fichas coloridas, distribuídas no fim dos encontros. As cores representavam as etapas do processo, assim era possível gerenciar em qual etapa cada família estava.

Caso alguém perdesse a ficha, era preciso um diálogo muito convincente para recupera-la de volta, caso contrário a família teria que participar novamente de todas as reuniões desde o início. Helena Augusta exigia responsabilidade e disciplina, e quem tentasse quebrar a regra era escandalizado e perdia a oportunidade de obter um lote perante todos, pois ela sempre defendia a justiça, sem trapaças.

Na ocupação da então desativada lixeira municipal de Manaus, no km 10 da Rodovia AM-010, a reflexão bíblica era sobre a caminhada do povo de Deus no deserto rumo à terra prometida (Ex. 15, 22-18, 27). Neste contexto, surgiu o nome daquela comunidade, que hoje é chamada de “Novo Israel”. Já o bairro Terra Nova, ao contrário do que alguns pensam, sua primeira etapa foi fruto de uma grande conquista do movimento social, em que o governo da época, pela resistência e organização, foi levado a atender a exigência da líder, dispondo uma área de terra nova, com lotes maiores que os ocupados na lixeira, sem conflito com grileiros.

Ao visitar as novas terras, irmã Helena identificou vários agricultores no local, característica peculiar que fez a freira nomear o novo bairro por “Colônia Agrícola Terra Nova”. E assim, em 1988, o Instituto de Terras do Amazonas (Iteram) realizou o transporte e iniciou a demarcação do loteamento sob a coordenação da líder. As famílias construíram um acampamento provisório no local e, enquanto trabalhava na forma de mutirão demarcando os lotes, eram beneficiados com a distribuição dos mesmos, que originalmente mediam 20m x 40m.

Contudo, o Iteram garantiu lotes para todas as famílias e, assim, irmã Helena, posteriormente, comandou as ocupações dos bairros Terra Nova II e Terra Nova III. Um trabalho com ações bem coordenadas, que gerou bons frutos, e nesses moldes foi que se constituíram os bairros Redenção, Bairro da Paz, Zumbi dos Palmares (1, 2 e 3), São José 3, Lírio do Vale, Nossa Senhora de Fátima, São Sebastião, Novo Israel, Santa Etelvina (Etapa 3), Valparaíso, João Paulo II (1, 2 e 3). Um universo populacional estimado, segundo dados do IBGE (Censo – 2010) em mais de 493.973 habitantes. Ou seja, as ocupações lideradas por Helena Augusta hoje estão garantindo moradia para quase meio milhão de habitantes na cidade de Manaus.

Helena Augusta tratou com atenção especial a questão urbanística de suas ocupações. Sempre reservou os lotes institucionais, com prioridade para as escolas, postos de saúde, praças, igrejas e áreas para o uso coletivo. A líder era didática em situações básicas, como, por exemplo: ao mesmo tempo que orientava sobre distância mínima de 10 metros entre a construção da fossa sanitária e o poço de água potável, ela incentivava todos para usarem parte de suas terras com plantações frutíferas e hortas caseiras ou para a criação de animais. E sempre alertava sobre a importância do diálogo harmonioso entre vizinhos, principalmente quando estes fossem construir os muros entre famílias.

Por várias vezes, irmã Helena e seu povo organizaram mobilizações em que as famílias ocupavam as ruas de Manaus exigindo providências e políticas públicas das autoridades constituídas. Essas mobilizações de massa pressionavam os governantes na implementação de políticas públicas de habitação para o Amazonas. A força política constituída por irmã Helena fez o poder público se curvar diante da necessidade de implantar uma forma diferenciada de política de moradia. Foi com este propósito que o movimento apoiou em 1993 a criação da Secretaria Municipal de Organização Social e Fundiária (Semosf), quando a indústria da invasão em Manaus caminhava em paralelo ao seu trabalho, ficando cada dia mais forte e crescente.

Irmã Helena foi a precursora da luta por moradia em Manaus, tendo inspirado muitos movimentos deste segmento, e suas práticas ainda hoje são referências positivas para todos que passaram por esta experiência. Sua missão de garantir o direito à moradia foi encerrado no ano de 1997, quando a freira, depois de muita resistência, atendeu ao pedido da Arquidiocese de Manaus, que temia por sua vida, e o seu próximo destino foi enfrentar a convivência na África, em Guiné Bissau. Ela só voltou ao Brasil em 2003, quando foi residir no Pará, na cidade de Santarém.

Em 2009, retornou para o Amazonas e assumiu a missão de acompanhar os serviços pastorais nas comunidades paroquiais do município de Manacapuru. Hoje vive em Manaus, na residência das religiosas Adoradoras do Sangue de Cristo. E ainda sofre muito quando recebe, por meio dos jornais, notícias negativas, sobretudo, as de crimes e de violência acontecidas nos bairros criados por ela. São coisas que lhe partem o coração, pois sente que sua missão foi interrompida. “Não era essa a proposta do nosso projeto. Ele foi interrompido pelo interesse dos poderosos”, lamenta.

Mas sua alegria é imensurável quando reencontra os amigos antigos, que compartilharam suas vidas nas lutas em prol dos próximos. E sente-se honrada quando percebe que existem bons cidadãos e boas iniciativas nas suas comunidades. Acredita que isso pode dar continuidade à sua luta e fazer grande diferença para a construção de uma sociedade mais justa.

O descanso eterno de uma guerreira inesquecível

A luta da Irmã Helena nunca será esquecida

No dia 26 de junho de 2022, no site Amazônia Real, a jornalista Ariel Bentes repercutiu o falecimento da freira, na matéria intitulada “A luta da mãe dos sem-teto, irmã Helena”, que reproduzimos na sequência. Antes, é preciso destacar que Ariel Bentes é uma jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e pós-graduada em jornalismo digital pela Faculdade Unyleya. É cofundadora da Abaré – Escola de Jornalismo e já trabalhou como repórter e editora do portal e revista Mercadizar. Ariel Bentes também já colaborou com o Atlas da Notícia e foi repórter do Favela em Pauta. Leiam agora a matéria da jornalista sobre a irmã Helena:

Manaus (AM) – Corajosa, profeta e sábia. É assim que amigos e admiradores descrevem a irmã Helena Augusta Walcott, considerada uma das grandes lideranças do movimento social por moradia popular em Manaus. Por três décadas ela, que foi líder e coordenadora do Movimento dos Sem Teto, enfrentou a elite e o poder na capital amazonense em favor daqueles que tinham negado o direito de um teto para morar. A religiosa morreu na tarde do dia 13 de junho, dois dias antes de completar 88 anos.

Conhecida como a “mãe dos sem-teto”, irmã Helena ajudou a conquistar moradias para cerca de 500 mil pessoas na periferia da cidade durante as décadas de 70, 80 e 90. Assistente social e falante dos idiomas português, inglês e francês, ela esteve à frente da ocupação e da criação de mais de 15 bairros na cidade nas zonas Norte e Leste, entre eles Terra Nova II e III, São José III, João Paulo II, Zumbi dos Palmares, Nossa Senhora de Fátima e Compensa, da qual foi moradora.

À Amazônia Real, Neila Gomes dos Santos, integrante do Movimento Nacional de Luta por Moradia que acompanhou a freira em ocupações em Manaus, disse que irmã Helena estava há alguns meses com a saúde debilitada e acamada. Ela vivia no Convento das Adoradoras do Sangue de Cristo, congregação da qual fazia parte, localizada no bairro São Geraldo, com outras idosas. Por conta da pandemia da Covid-19, as visitas são restritas ao local. O sepultamento ocorreu no dia 14 no Cemitério São João Batista, mas a causa da morte não foi divulgada.

Quem esteve ao lado da religiosa na luta por moradia foi Ruth Duarte, professora aposentada e moradora do João Paulo II, bairro localizado na zona leste de Manaus. Ela e a mãe, Francisca Duarte, que morreu em 2021, e a irmã Marta Duarte, participaram com a freira da ocupação do bairro em que moram há quase 30 anos, medindo e capinando os terrenos que seriam distribuídos para a população.

Segundo Ruth, no início dos anos 90, com a pressão da freira, a Prefeitura de Manaus criou a Secretaria Municipal de Organização Social e Fundiária (Semosf), com o objetivo de regularizar os terrenos e amenizar as ocupações. Ainda assim, irmã Helena fazia reuniões para orientar os moradores. “As reuniões eram para orientar como cuidar daqueles terrenos. Funcionava como uma missa, cantávamos e comíamos. Era uma alegria e união enorme entre a comunidade e a Irmã Helena’’, lembra Ruth.

O último encontro presencial da família Duarte com a irmã Helena ocorreu em 2017. Na época, ela estava morando no Pará e, em passagem por Manaus, foi jantar na casa de Ruth. “Minha mãe preparou as comidas que ela gostava e ficamos conversando até tarde. Pena que naquele período não tínhamos a facilidade de guardar fotos como temos agora”. Atualmente, o bairro João Paulo II possui uma escola municipal que leva o nome da irmã Helena Augusta Walcott.

Segundo o artigo “As primeiras lutas por moradia popular em Manaus: vida e militância da irmã Helena Augusta Walcott”, de Mara Tereza Oliveira de Assis, irmã Helena nasceu em Guajará Mirim, em Rondônia, e era a sétima filha dos barbadianos Lorenzo Walcott e Clarissa Knights. Barbados é um dos países que compõem o Caribe, colonizado por ingleses que sequestravam africanos da Guiné Bissau e Senegal e os escravizavam na região. Os pais de Helena vieram para o Brasil para trabalhar na construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, ferrovia que liga Porto Velho a Guajará-Mirim, sendo a 15ª ferrovia a ser construída em território brasileiro. A intenção do casal era voltar ao país de origem após o fim da construção em 1912, o que não ocorreu.

Em Manaus, ela morou no bairro da Compensa, onde passou a trabalhar em ações com a Igreja Católica e com o Instituto de Amparo e Bem-estar do Menor e a Comissão Intercomunitária pela Defesa da Compensa. A ambientalista Elisa França conta que entre os anos 70 e 80 agricultores, indígenas e ribeirinhos do interior do Amazonas migraram para a capital com o objetivo de ter acesso a políticas públicas e aos empregos que seriam gerados pela Zona Franca, mas na prática atuaram como “exército industrial”.

“Eram pessoas que não tinham o mínimo de dignidade para viver, mas que serviam para trabalhar no Polo Industrial com salários mais baixos. Com o êxodo rural e um quadro de pobreza grave na cidade, a Irmã Helena ia até a prefeitura e o governo pedir que cedessem terras para as famílias. Mas era uma luta. Então, quando não dava certo, ela promovia uma belíssima organização comunitária para ocupar essas áreas”, diz Elisa.

As terras ocupadas sob a liderança dela eram áreas da União que tinham sido griladas por grandes latifundiários urbanos e que não faziam parte de áreas de proteção ou reservas ambientais, preocupação dos ambientalistas respeitada pela freira à época. “Boa parte de Manaus tem moradia por causa da Irmã Helena. Uma preocupação dela com o próximo, querendo garantir o direito fundamental e humano da moradia digna”, assegura a ambientalista. A atuação da irmã Helena incomodava o poder público, a elite e grileiros que disputavam os territórios com os sem teto na capital amazonense. Ameaçada e perseguida, em 1987 ela sofreu um atentado no bairro Armando Mendes que resultou na morte de um jovem que a acompanhava.

“Sua missão de garantir o direito à moradia foi encerrada no ano de 1997, quando a freira, depois de muita resistência, atendeu ao pedido da Arquidiocese de Manaus, que temia por sua vida, e o seu próximo desafio foi enfrentar a convivência na África, em Guiné Bissau. E só voltou ao Brasil em 2003, quando foi residir no Pará, na cidade de Santarém. Em 2009, retornou para o Amazonas e assumiu a missão de acompanhar os serviços pastorais nas comunidades paroquiais no município de Manacapuru”, relata o escritor Ronaldo Seixas no livro “Vidas que falam”.

Fátima Monteiro, que foi militante do Sindicato dos Trabalhadores de Vidros e Cristais, disse à Amazônia Real que o primeiro encontro com a irmã Helena aconteceu ainda na infância, no Colégio Preciosíssimo Sangue, onde ela estudava e trabalhava. Já o reencontro entre elas ocorreu somente na década de 80, durante uma ocupação no bairro Japiim. A partir disso, Fátima passou a atuar na proteção da líder, com um grupo de pessoas responsável por acompanhá-la durante as ações. “Helena não tinha medo. Durante uma ocupação na Ponta Negra ela ficou na frente de um trator que estava prometendo derrubar tudo. Ela não arredou de lá até ele recuar, mas acabou sendo presa”, revela Fátima.

Outra pessoa importante na vida e militância da freira é Maria Alzira Fritzen, da Congregação de Nossa Senhora Cônegas de Santo Agostinho. A freira Alzira participou de mais de 20 ocupações em Manaus com a irmã Helena. Juntas lutavam pela moradia digna para as populações mais pobres. “Nunca conseguimos entender porque nesse mundo algumas pessoas têm tudo e os pobres não têm nem onde morar. Hoje, posso dizer com toda certeza: Manaus tem uma periferia mais ampla, em que as pessoas estão nos seus próprios terrenos, porque tinha a Irmã Helena e um grupo que os ajudava a permanecerem nas suas casas”, finaliza a freira Alzira Fritzen.

A Manaus-Babilônia não é tão feia quanto parece.

Sobre o Autor

Simão Pessoa

nasceu em Manaus no dia 10 de maio de 1956, filho de Simão Monteiro Pessoa e Celeste da Silva Pessoa.
É Engenheiro Eletrônico formado pela UTAM (1977), com pós-graduação em Administração pela FGV-SP (1989).
Poeta, compositor e cronista.
Foi fundador e presidente do Sindicato de Escritores do Amazonas e do Coletivo Gens da Selva.

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