(Por se tratarem de textos longos que só cabem num livro físico, optamos por destrinchar o Capítulo 4 (“Os Pioneiros do Reggae Caboclo”) em três partes, para poder caber nessa plataforma digital. So sorry.)
O exemplo do guerreiro Armando Lucena
No dia 2 de agosto de 2012, o blogueiro, pesquisador e escritor José Martins Rocha, o “Rochinha”, um dos fundadores da Banda Independente Confraria do Armando (BICA) e filho caçula do famoso luthier Mestre Rochinha, publicou o seguinte texto no “Blog do Rocha”:
Ao passar pela antiga Praça da Polícia, parei na banca de sebo “O Alienista”, pertencente ao meu amigo e poeta Celestino Neto, o “Lé”, e, ao entrar, encontrei o poeta Marcileudo Barros – ele toma conta do espaço pela parte da manhã. Eu passei uma vista pelos livros, encontrei desde tratados da área de saúde até livros de apenas dois reais, nestes tive mais interesse, pois a firma está trincada, e, para minha surpresa, encontrei o livro “No Trilho do Tempo – Memórias”, do Armando Lucena, um guerreiro, conhecido como “O Persistente”. Passei o resto da tarde lendo o livro, entrei pela noite, adormeci agarrado com ele e, ao acordar, comecei a lê-lo novamente, terminando horas depois. É um tipo de obra literária que a pessoa sente o prazer em passar pelas suas páginas, indo do início ao fim, sem parar.
Ele foi registrado como Armando de Paula Lucena. Nasceu em 17 de dezembro de 1921 e, se considerava um paraibano (por ascendência), nascido em Roraima, e manauara de coração, pois veio para essas plagas aos 35 anos de idade e, nunca mais deixou a nossa cidade, somente indo para a sua querida Roraima, em férias, para fazer pesquisas e rever parentes e amigos. Na minha juventude, lembro muito bem da figura do Armando Lucena, um respeitado motorista de taxi, um senhor que sempre estava envolto na política partidária e, vez e outra, o encontrava distribuindo um tabloide (formato de meio jornal) denominado “O Volante”.
O apelido de “O Persistente” tem tudo a ver com a sua vida, pois tentou de tudo para sobreviver e criar a sua família, tendo muitas decepções, uma atrás da outra. Tentou, tentou e, tentou, nunca desistindo dos seus sonhos, e isto o marcou por toda a sua vida. Ainda muito pequeno foi trabalhar na roça, para ajudar a mãe e os irmãos, pois perdeu precocemente o seu pai – estudou muito pouco na escola, mas tornou-se autodidata, sendo um devorador de livros –, tentou trabalhos em fazendas de gados, não se adaptou, preferiu ser garimpeiro, profissão que tomou boa parte da sua vida, mas nunca “bamburrou” – foi Cabo do exército brasileiro, construtor de escolas, patrão de garimpo, comerciante e dono de olaria – tudo o que ele tentava fazer, dava errado, ficou desgostoso, porém, nunca desistiu de começar tudo de novo.

O escritor e taxista Armando de Paula Lucena
Casou por procuração e veio para o Amazonas, indo trabalhar nas perfurações de petróleo em Nova Olinda do Norte, depois, foi para o Maranhão, trabalhando durante nove anos na companhia petrolífera. Foi também um atuante sindicalista, chegando ao posto de delegado sindical, o que lhe custou a sua demissão da Petrobras após o golpe militar de 1964. Passou o maior sufoco na vida para sustentar a família, teve que ser motorista de taxi por mais de vinte anos.
Um dia, sofreu um sério acidente automobilístico causado por um carro oficial e sua única fonte de renda passou por uma longa e lenta recuperação numa oficina de mecânica e lanternagem. Ele foi obrigado a ficar mais de um ano sem trabalhar, pois o Estado negava-se a pagar-lhe o grande prejuízo causado ao seu fusca ZA-3306. Ao publicar no jornal “A Crítica” uma longa carta em que narrava todo o acontecido, o governo rapidinho deu-lhe um taxi novo, mas, não pagou os lucros cessantes por um ano parado, sem trabalhar na praça.
Armando Lucena foi um dos fundadores do “Projeto Jaraqui”, junto com o cientista Frederico Arruda e o pessoal do INPA e da Ufam. militou no MDB (atual PMDB), onde foi candidato duas vazes a vereador. Influenciado pelo governador Leonel Brizola, mudou para o PDT, onde foi novamente candidato, depois, filiou-se ao PSDB, sendo candidato por duas vezes e, ficou decepcionado, partindo para o PPS, onde foi, novamente, candidato, por fim, foi parar no PT e, por ser persistente, foi novamente, candidato – perdeu todas as eleições, por ser honesto e, algumas vezes, ingênuo, mas, sempre levantando a bandeira da honra, da ética e do amor à nossa cidade e à nossa pátria.
Como escritor, o homem tinha muito fôlego, tanto que escreveu os seguintes livros: “O Varadouro da Morte” (1981), “Carta Aberta” (1995), “O Brasil” (1995), “O Taxista” (1995), “O Povo no Poder” (1996), “O Grito” (1996) e “No Trilho do Tempo” (2002). Em relação a este último livro, Armando Lucena já estava com 82 anos de idade, mas devido à grande procura a obra teve direito a uma 2ª edição, em 2005. Ele também foi venerável da “Ordem Maçônica Glória do Ocidente”, situada na Rua Silva Ramos, 305.
Depois de muitos anos, Armando Lucena foi alertado pelos seus companheiros de que tinha direito à aposentadoria, com sua possível readmissão à Petrobras e, quem sabe, até a uma indenização pelos anos em que ficou afastado injustamente. Ele peregrinou por Belém, Rio de Janeiro e Brasília, conseguindo ser anistiado e, em 1990, quando já estava com 70 anos de idade, o INSS reconheceu os seus direitos. A seguir, depois de muita luta na justiça, a própria Petrobrás ratificou aquela decisão, com o taxista conquistando a sua merecida aposentadoria, porém, perdendo as outras vantagens. Por meio de uma propositura do vereador Francisco Praciano (PT), em 2003, Armando Lucena recebeu a Medalha de Ouro Cidade de Manaus. Ele recebeu, ainda, a Medalha Ordem ao Mérito Legislativo do Estado do Amazonas, por indicação do deputado estadual Sinésio Campos (PT).
No dia 6 de dezembro de 2007, Armando Lucena atravessou para a terceira margem. No Senado Federal, Arthur Virgílio Filho fez uma homenagem póstuma dizendo o seguinte:
– Manaus perdeu um dos seus políticos mais queridos e populares. Não por sua densidade eleitoral, mas, como assinalou Alessandro Malveira, no jornal A Crítica, “certamente pela retidão, espírito público e disposição para a luta”. Seu filho, também Armando Lucena, assinalou que ele “viveu sempre pelo benefício dos seus semelhantes, lutou sempre para melhorar as coisas, não apenas para ele, mas para todos”. Foi sempre, sobretudo, um idealista. Ainda acreditava numa sociedade solidária. Pela contribuição que deu ao exercício da política com correção e seriedade, ele faz jus à homenagem póstuma que ora proponho.
Quem desejar conhecer mais sobre este senhor, basta o ler o seu livro de memórias “No Trilho do Tempo”. Para quem não sabe, ele é pai do cantor e compositor roraimense/amazonense Armando de Paula e a sua filha mais velha, Janel Parga, administra o “Clube do Livro”, na antiga residência do Armando Lucena, na Avenida Codajás, 546, bairro da Cachoeirinha.
Armando de Paula e o Projeto Uakti

O cantor e compositor Armando de Paula
Motivado pela história de vida do pai, é muito provável que o cantor e compositor Armando de Paula, depois de adulto, tenha resolvido usar como mote aqueles versos iniciais do famoso “Poema de Sete Faces”, de Carlos Drummond de Andrade: “Quando nasci, um anjo torto / Desses que vivem na sombra / Disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida”. Apesar de ter nascido em Boa Vista (RR), ele foi criado em Manaus desde os três anos de idade, no bairro da Cachoeirinha, tendo estudado no Grupo Escolar Carvalho Leal e no Colégio Estadual Márcio Nery. Aprendeu a tocar violão sozinho, aos 14 anos de idade, depois que recebeu um instrumento de segunda mão, presenteado pelo pai.
Em 1981, aos 20 anos, participou do 4º Festival da Canção do SESC-AM, levando o primeiro e o segundo lugar, além do prêmio de melhor intérprete. Desde então, venceu inúmeros festivais no Amazonas e em outros estados do Brasil, gravou centenas de jingles publicitários e lançou oito CDs autorais ao longo da carreira: “Farol”, “Marapatá”, “Manaus Morena”, “Talento Amazônico”, “Os Direitos da Criança”, “Caminho Bom”, “Amazônia – Mundo das Águas” e “Festival – Coletânea”. Foi um dos idealizadores e realizadores do Projeto Uakiti, no final dos anos 80, que lançou na vida artística amazonense dezenas dos mais destacados artistas de Manaus.
A exemplo de vários músicos de sua geração, Armando de Paula iniciou sua carreira musical se apresentando nos bares da cidade, com um repertório calcado em pérolas da MPB, mas, pouco a pouco, começou a mostrar suas composições autorais, recebendo uma boa aceitação do público. Sua temática sempre teve uma forte pegada amazônica, mas suas canções não tem nada a ver com regionalismo barato e seus versos vão além do óbvio para atingir a essência não só da floresta e suas peculiaridades, mas de seus habitantes, movidos, como qualquer outro, por sentimentos que são universais. Ele canta a Amazônia de olhos postos no rio e na canoa que passa levando cunhantãs e curumins. Ao mesmo tempo, fala da Babilônia urbana, dos conflitos, da violência, de sonhos, saudades e paixões e de uma natureza inconstante, que não está apenas contida na pureza imaculada da floresta, dos rios e dos igarapés.
De sua convivência com os poetas Anibal Beça, Eliakin Rufino, Alcides Werk e Célio Cruz saíram alguns dos reggaes mais estribados da cidade. Um exemplo disso é a canção “Marapatá”, dele e de Anibal: “Que doce mistério / Abriga teu dorso / De ilha afogada / No curso das mágoas? / O Velho Bahira / Se mira nas águas / Espelho da lua / Narciso nheengara / É Marapatá, porta de Manaus / É Marapatá, patati patatá / Que mana maninha / Que dança sozinha / Savana de seda / Pavana de cio / Capim canarana / Bubuia banzando / Canção enrugada / Banzeiro de rio / Vá logo deixando / Senhor forasteiro / A sua vergonha / Em Marapatá / Vergonha se verga / Na cuia do ventre / No V da ilharga / Vincando por lá / Cunhã se arretando / Tesão de mormaço / Abrindo as entranhas / A flor do tajá / E o macho fungando / Flechando, fisgando / Mordendo a leseira / Dizendo: “Ulha já!”.
Outro bom exemplo é a canção “Pedra Pintada”, tradução literal do nome indígena “Itacoatiara”, composta pela mesma dupla e apresentada no Festival da Canção de Itacoatiara (FECANI), em 1994: “Ita no telhado / Pedra no começo / Barriga de cobra / Abrigo de cobre / No imo da tribo / A língua pintada / Pintada na pedra: Itacoatiara. / Na verde coivara / Tiara na rede / Os peixes do sonho / Arranham as franjas / As águas tingindo / Na linfa da carne / O sangue encarnado: Itacoatiara / Ó lua de palha / Luz no tapiri / Chão marupiara / Pedra yapinari / Dureza de rocha / Na cara da pedra / Na cara pintada / Ruídos escancara / Os dentes roídos / Trincando sorrisos / No trinco das mágoas: Itacoatiara / Jenipapo preto / Urucum vermelho / Verde samaúma / Solimões de ver / Travoso tempero / Do limo entravado / Na malha da pele: Itacoatiara / Ó lua de palha / Luz dessa seara / Pedra na cadeia: Itacoatiara.”
Mas voltemos um pouco no tempo. Em fevereiro de 1989, quando foi lançado o Plano Verão, o quarto pacote contra a inflação do governo de José Sarney, as equipes do presidente já tinham desistido de vencer o descontrole de preços. O Plano Cruzado I e o Plano Cruzado II, de 1986, e o Plano Bresser, de 1987, já tinham tentado e, depois de poucos meses, fracassado, à base de medidas de choque radicais como o congelamento de preços e salários. Por conta disso, no início de 1989, pouco menos de dois anos após o Plano Bresser, a briga já estava claramente perdida de novo, com a inflação rodando de volta nos 20% ao mês – ela chegou a passar breves períodos abaixo dos 5% a cada vez que um novo plano era lançado, mas, em todos, voltou a subir com mais força logo depois.
Aquele ano, entretanto, tinha uma particularidade em relação aos anteriores e a qualquer outro depois: em novembro, aconteceriam as primeiras eleições presidenciais diretas do país desde a vitória de Jânio Quadros em 1960 e a interrupção do mandato, posteriormente, de seu vice, João Goulart, com o golpe militar de 1964. Mesmo já sabendo que fazer mais um congelamento daria os mesmos curtos e poucos resultados, foi essa a escolha do governo naquele momento para garantir que nenhuma desordem voltasse a impedir aquele pleito.
Similar aos anteriores, o Plano Verão trocava mais uma vez a moeda (de cruzado para cruzado novo), cortava três zeros das notas (as de Cz$ 10.000 viravam NCz$ 1.000), congelava preços, controlava o reajuste dos salários e propunha derrubar as indexações, que eram os reajustes automáticos com os quais os pagamentos já estavam acostumados há anos e, justamente, o principal agente causador da doença hiperinflacionária brasileira. Foi, de toda maneira, o mais efêmero dos quatro planos até então: a inflação cedeu para abaixo dos 10% por apenas dois meses e, até as eleições, em novembro, já tinha saído do controle a tal ponto que batia quase os 50% ao mês, nos níveis mais altos registrados na história até ali.
Aquele começo de ano anunciava que pelo menos no Brasil não era um bom momento para ter esperanças. A inflação – ou melhor, a hiperinflação – chegaria a 55% em dezembro. Continuaria subindo em 1990, até atingir 83%. “Foi o tempo em que a economia enlouqueceu”, conta Miriam Leitão em “Saga Brasileira”, livro sobre a luta contra a desvalorização da moeda no Brasil. A Casa da Moeda funcionava 24 horas por dia: as cédulas valiam tão pouco que era preciso imprimi-las sem parar. Com os preços sem controle, as pessoas corriam às compras assim que recebiam o salário. No supermercado, os consumidores faziam compras enormes, de dois, três carrinhos cheios. Em casa, improvisavam uma dispensa – outra moda na época – para guardar o estoque de produtos. Fazia sentido investir em alimentos: o preço deles chegou a subir mais de 200% num único mês.
Impossível falar sobre 1989 sem citar o overnight, investimento que rendia juros diários. A correção era tão alta que, para muita gente, valia a pena deixar de pagar as dívidas – as multas e juros previstos nos contratos de empréstimo ficavam abaixo da correção do overnight. Era comum tomar dinheiro emprestado, dar o calote, deixar o dinheiro no banco e depois pagar uma dívida que já tinha se desvalorizado. Nas lojas de varejo, consumidores recusavam descontos de 30% ou 40% à vista por saber que, no overnight, o dinheiro renderia mais – até 80% num único mês.
Para piorar as coisas, o ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega deu ordens para o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) demitir todos os pesquisadores que não tivessem cargo de direção e todos os funcionários que não fossem concursados – os chamados “terceirizados”, que iam de porteiros a assistentes de pesquisadores. Foi a gota d’água. Centenas de trabalhadores do instituto ocuparam as ruas de Manaus em gigantescas passeatas que comoveram a população. Depois de uma semana de protestos, eles ganharam o cabo-de-guerra e Maílson da Nóbrega teve de recuar. Para manter os trabalhadores mobilizados, os pesquisadores Luiz Carlos Bonates, o “KK Bonates”, e William Gama resolveram instituir uma “Sexta-feira Cultural e Ecológica”, na sede da Associação de Servidores do INPA (Assinpa), sob a coordenação da Associação de Pesquisadores do INPA (ASPI). Para coordenar a parte musical do evento, convidaram Armando de Paula.

Anibal Beça, Davi Almeida, Carlos Peruka, Torrinho e Armando de Paula no Projeto Uakti
O cantor e compositor gostou muito daquela ideia de juntar no mesmo palco diversas artes: música, poesia, artes plásticas, cênicas, dança, artesanato, expressões afro-brasileiras, entre outras, em uma espécie de dabacuri coletivo de todas as tribos, e sugeriu o nome de “Projeto Cultural Uakti”, baseado em uma lenda dos índios Tukano, do Alto Rio Negro, que o poeta Eliakin Rufino havia versificado e ele, Armando de Paula, transformado em um roots reggae: “Conta a lenda que Uakti / Tinha buracos no corpo / Quando corria no vento / Produzia muitos sons / As mulheres da aldeia / Ficavam enfeitiçadas / Seduzidas pelo som / Seduzidas pelo som / Mas os homens da aldeia / Não gostavam nada disso / Um dia então resolveram / Dar sumiço em Uakti / Mataram e enterraram / Para que ninguém soubesse / Mas em sua tumba floresce / Uma planta diferente / Com essa planta se fabrica / Instrumento musical / Que produz os mesmos sons / Do corpo de Uakti”.
A sugestão de Armando de Paula foi acatada por KK Bonates e William Gama. Para fazer a ambientação temática e a decoração do placo, Armando de Paula convocou o renomado artista plástico Raymond de Sá, que se dedicou de corpo e alma à tarefa. A sexta-feira cultural e ecológica virou um point obrigatório dos descolados da cidade. Todo mundo que importava pisou naquele palco.
– A gente pagava um cachê que era em torno de cinco ou seis vezes o valor pago normalmente aos cantores para se apresentarem nos barzinhos da cidade – recorda KK Bonates. – Daí, que só na primeira edição já tivemos a presença de 15 artistas. Foi uma estreia sensacional!
– Na verdade, nós demos sorte de conseguir um pool de patrocinadores da iniciativa privada que acreditaram no projeto e, logo de cara, fizemos 16 sextas-feiras culturais e ecológicas seguidas, uma atrás da outra, para firmar o Projeto Cultural Uakti na cena cultural da cidade – explica William Gama. – Só que dava uma trabalheira danada preparar o palco e a ambientação do espaço toda sexta-feira porque tínhamos outros afazeres profissionais e aquele era um trabalho voluntário. Aí, depois daquela odisseia inicial, decidimos fazer apenas uma sexta-feira por mês. Mas o projeto nunca sofreu descontinuidade.
Durante 20 anos, o Projeto Cultural Uakti foi o mais importante movimento cultural da cidade, sendo elogiado até no exterior por turistas e pesquisadores estrangeiros que conheceram aquele espaço democrático e inclusivo. Até que aconteceu uma presepada de tirar qualquer um do sério. Vou tentar recordar o episódio.
A Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência (SBPC) é uma entidade octogenária conhecida por ser “uma sociedade com princípios” e dela podem participar cientistas, técnicos, profissionais, amigos da ciência, estudantes, pessoas dos mais diversos interesses, mas que acreditam na importância da ciência. A entidade publica a revista “Ciência e Cultura”, a mais antiga revista científica do Brasil. Durante a ditadura militar, as reuniões da SBPC foram palco privilegiado para classes, entidades e pessoas que não podiam se manifestar livremente.
Em 2007, durante a reunião anual da SBPC, em Belém (PA), o governador do Amazonas, Eduardo Braga, convidou a SBPC para fazer uma futura reunião em Manaus. A SBPC aceitou o convite e colocou como tema da reunião “Amazônia – Ciência e Cultura”, refletindo a importância da atividade cultural, que é o segmento da economia que mais cresce em todo o mundo, bem como dado o fato de que a Amazônia e seus 25 milhões de habitantes sempre são vistos na mídia associados ao desmatamento, queimadas, garimpo, prostituição infantil e pobreza. Dentro das reuniões anuais da SBPC existem diversos fóruns e atividades dentre as quais se destaca a SBPC Cultural que tem o objetivo de mostrar a cultura do Estado anfitrião.

Convite para a festa de 20 anos do Projeto Uakti
Em janeiro de 2009, os dirigentes do Projeto Cultural Uakti tomaram conhecimento de que a 61ª Reunião Anual da SBPC, evento que reúne cerca de 15 mil pessoas diariamente e dezenas de sociedades científicas do Brasil e Exterior, seria realizada em Manaus, no período de 12 a 17 de julho, com o tema “Amazônia – Ciência e Cultura”. Desde 2006, a ASPI também tocava o “Projeto Memória da Ciência e da Cultura na Amazônia”, que já havia produzido oito documentários em vídeo e reunido um dos maiores acervos fotográficos de artistas e cientistas da Amazônia. Portanto, expertise no assunto eles tinham de sobra. Ao vislumbrarem no evento uma ótima oportunidade para que os artistas do Amazonas (e da Amazônia) pudessem mostrar seus trabalhos a um público altamente qualificado, eles trataram de apresentar um projeto bem elaborado para a Secretaria Estadual de Cultura.
O que norteou a programação proposta foi mostrar a diversidade e a riqueza da produção cultural dos artistas amazonenses, em particular, e dos amazônidas, em geral, e propiciar uma reflexão crítica sobre a situação dos artistas da Amazônia e de seus ofícios. Essa programação, que reunia mais de 500 artistas, chegou a constar na página da SBPC na Internet e 10 mil folders estavam sendo impressos para constar nas pastas distribuídas aos participantes do evento. A direção geral da SBPC Cultural manauara seria do premiado diretor de teatro e cinema, Darci Figueiredo, de São Paulo. O custo total do projeto girava em torno de R$ 500 mil, uma gota d’água no orçamento de R$ 80 milhões da Secretaria Estadual de Cultura.
Batizado de “Semana de Cultura da Amazônia”, o evento pretendia reunir diariamente alguns dos melhores músicos instrumentistas (inclusive indígenas) de Manaus, dança contemporânea, música popular (shows “Encontro das Águas e dos Poetas” e “Os Rios da Minha Aldeia”), performances teatrais, teatro de bonecos, apresentação de corais, expressões afro-brasileiras (capoeira, tambor de crioula, roda de coco, afoxé, samba-de-roda), resgates culturais (música de beiradão, carimbó, marabaixo, gambá), mostra de toadas dos bois de Parintins, mostra de sambas-de-enredo (o INPA e a Ufam já foram temas das escolas de samba), mostra dos melhores grupos do 43º Festival Folclórico do Amazonas (quadrilha, cangaço, ciranda, boi-bumbá de Manaus, dança internacional), coletiva de artes plásticas, exposição de fotografias (“Os Trabalhadores da Amazônia”), mostra de filmes e documentários sobre a Amazônia, homenagem e releitura da obra do compositor Chico da Silva. Além disso, 10 performances diárias seriam apresentadas nos intervalos do almoço nas cinco faculdades onde estariam concentrados os eventos da SBPC, mostrando a arte e os instrumentos musicais indígenas, grupos instrumentais, performances de teatro e expressões afro-brasileiras.
Ninguém soube até hoje porque a Secretaria Estadual de Cultura rifou o projeto e, praticamente, cancelou unilateralmente a SBPC Cultural de Manaus. Se não bastasse isso, os responsáveis pela exclusão dos artistas passaram a contatar os referidos artistas para que trabalhassem de graça durante o evento, aviltando a profissão. Diziam que eles poderiam ganhar seus “cachês” vendendo seus CDs. Uma estupidez, claro! Era bem longa a lista dos artistas que deixaram de mostrar seus ofícios na SBPC Cultural. Alguns ainda sequer tinham sido contactados devido à insegurança jurídica trazida pela falta de apoio do governo estadual, mas eles certamente iriam fazer bonito. Vou me limitar aos nomes que a memória ainda guarda.
Música Instrumental – Clélio Diniz, George Jucá, Cláudio Abrantes, Grupo B Quadro, Grupo Remanso, Grupo Instrumental Indígena Dessana, Grupo Indígena Saterê-Mawé, Maestro Adelson Santos e Maestro Élson Johnson.
Dança Contemporânea – Grupo de Dança do Amazonas (GEDAM), Cia de Dança Balé da Barra, Grupo Uaetê, Grupo ÍndiosPontoCom, Experimental Cia de Dança e Núcleo de Dança do IEA.
Show “Encontro das Águas e dos Poetas” – Show em três dias apresentando 27 canções com a temática da água presente em letras de poetas da Amazônia. Poetas, compositores e intérpretes: Alcides Werk, Aníbal Beça, Élson Farias, Luiz Bacelar, Eliakin Rufino, Thiago de Melo, Liduína Moura, Celdo Braga, Chico da Silva, Natasha Andrade, Regina Melo, Arnaldo Garcez, Eliberto Barroncas, Armando de Paula, Torrinho, Antonio Pereira, Célio Cruz, Gonzaga Blantes, Roberto Dibo, Mário Jackson, Candinho e Inês, Décio Marques, Lucilene Castro, Fátima Silva, Márcia Siqueira, Salomão Rossy, Cristina Oliveira, Lucinha Cabral, Macca, Júnior Rodrigues, Zezinho Cardoso, Ketlen Nascimento, Serginho Queiroz, Zezinho Correia, Lúcio Bahia, Jorge Edu, Vitor França, Shirley Sol, Jeol, China, Ítalo Gimenez, Stanley, Dino, Gilson, La Bamba, Jadão, Gaúcho, Valdez, Léo Pimentel, Mariozinho e Júnior do Sax.
Show “Os Rios da Minha Aldeia” – Cantorias de Nilson Chaves, Sebastião Tapajós, Sérgio Souto, Bado, Zé Miguel, Eliakin Rufino, Neuber Uchoa, Aroma e Zeca Preto.
Boi de Parintins – David Assayag e Arlindo Jr., mais banda e dançarinos.
Samba de Enredo – Bateria Jovem da Vitória Régia, mais puxadores e abre-alas.
Teatro/Bonecos – TESC, Nonato Tavares, Koia Refkalefsky, Adrine Feitosa, Delson Mota, Denis Sales e Paulo Mamulengo.
Expressões Afro-Brasileiras, Reggae e Rock – Mestre Castro (Mestre Nacional de Cultura – Tambor de Crioula), Grupo Pela Margem, Grupo do Caroço, Cileno Conceição, Grupo Escada sem Degrau, Casulo, Movimento Muiraquitã, Johnny Jack Mesclado, Essence e Banda Basic.
Danças Folclóricas – Dança Nordestina Cabras de Lampião, Quadrilha Caipira Juventude na Roça, Ciranda Flor Matizada, Boi-bumbá Corre Campo e Dança Internacional Palestina.
Homenagem a Chico da Silva – Cinco intérpretes e uma banda base estavam ensaiando as principais obras do sambista de Parintins.
Resgates Culturais – Cinco músicos trabalhavam no resgate da música de beiradão e carimbó, que faria uma releitura das obras de Teixeira de Manaus, Cheiro Verde, Chico Caju, Oséas Monteiro e Pinduca.
Mostra de Corais – Três corais trabalhavam nas obras do Maestro Waldemar Henrique.
Artes Plásticas – 20 artistas plásticos, entre novos e consagrados, iriam expor suas telas.
Exposição de Fotografias – Duas exposições estavam agendadas: “Os Trabalhadores da Amazônia” e “Biodiversidade dos Arredores de Manaus”.
O mais grotesco disso tudo foi que, alguns meses depois do cancelamento da SBPC Cultural, a Secretaria Estadual de Cultura gastou quase 2 milhões de dólares, só de cachês para artistas estrangeiros, para um miado Festival Internacional de Jazz, no Teatro Amazonas, que não teve mais que 100 pessoas na plateia em cada noite do evento.
Foi isso que motivou o cantor e compositor Armando de Paula a fazer uma carta aberta ao governador Eduardo Braga, que teve grande repercussão na cidade. Leiam o teor da missiva, intitulada “Os artistas podem ter orgulho de serem amazonenses?”, tornada pública em julho de 2009:
Senhor Governador do Amazonas, Eduardo Braga:
Apelo à força política aglutinada democraticamente em suas mãos, como última instância na busca de ver estabelecer-se definitivamente em nosso Amazonas, pelo menos o nascimento oficial de sua própria cultura, uma vez que ela ainda não foi sequer reconhecida como existente, de modo a ser tratada como tal. Faço isso na esperança de não precisar “queixar-me ao bispo”, como tenho sido ironicamente aconselhado a fazer, como se o Amazonas fosse terra de ninguém ou ainda estivéssemos no começo do século e a borracha, a ópera, os coronéis de barranco e as prostitutas parisienses ainda estivessem na moda.
Não é de hoje que observo o vai e vem das ambições mais diversas correndo célere em seu fazer daninho e, como vampiros, ano a ano, a sugar a vitalidade singular de nossa cultura legitimamente amazonense, nascida dos anseios culturais da população, através de seus artistas, sensíveis antenas e arautos que, captando o momento psicológico das multidões e se expressando livremente, contribuem grandemente para sua evolução e progresso, isso desde que a civilização existe. Muito se tem esperado do Amazonas em termos culturais, no Brasil e no mundo. Quem somos nós pelo que expressamos? Qual é nossa verdadeira identidade? Quem poderá dizer?
Alguns anos atrás, certo governador, por ignorância ou indiferença, afirmou que no Amazonas não havia arte e cultura, que a única coisa que reconhecia era o Festival de Parintins como expressão cultural. Menos mal, considerando-se que os tambores desse movimento já encontravam eco no coração de nossa gente. Assim, ele, em sua “macrovisão”, iria promover a grande revolução cultural. Desse modo resolveu, sem nenhuma consulta, nenhuma pesquisa, nenhuma investigação aos legítimos valores culturais da nossa terra, importar o que havia de mais imponente e pomposo na cultura europeia, e implantá-lo verticalmente no juízo da população, como quem pretende a golpes de machado abrir caminho para novas ideias. É o velho método “goela abaixo”, bastante popular no Amazonas entre os que chegam ao poder. Será que ninguém ainda pensou no cabimento de um festival de samba na Chechênia?
Quero deixar claro que não sou contra nenhum tipo de manifestação cultural, pois, como artista, busco constantemente evoluir a uma compreensão mais elevada, que me conduza a uma superior apreciação da vida, o que inevitavelmente me leva a um profundo respeito ao papel que cada um desempenha em cada canto de nossa imensa aldeia global. Serão sempre bem vindas, para nosso deleite e crescimento espiritual, toda e qualquer expressão cultural de qualquer parte do Mundo, que, como aves de arribação, visitem sempre nosso quintal, em alegre algazarra por nossos pomares. O que não deve acontecer por uma simples questão de coerência é permitir que tais aves, numa forçosa migração predatória, façam seus ninhos em todos os galhos de todas as árvores comendo todos os frutos de nosso viveiro, impedindo até que possam cantar nossos passarinhos. Questiono, com isso, inclusive a falta de equilíbrio da balança do direito social, constitucionalmente estabelecido, sabedor que de que o Amazonas possui não apenas uma vasta biodiversidade, mas também uma enorme sociodiversidade.

Armando de Paula, Anibal Beça, Nestor Nascimento, Célio Cruz, KK Bonates e
Mestre Vermelho
Menciono o acontecimento, simplesmente porque desde então, a Expressão Amazonense sofreu um golpe ainda maior que a indiferença já praticada, que foi o prejuízo de uma comparação desleal aos olhos de nossa gente. De um lado, a “pomposidade” dos elementos alienígenas importados, ancorados na aparência de grandes e cintilantes eventos, que não traduzem sentimentos de empatia e senso de identificação necessárias, própria da arte produzida e nascida dos anseios do próprio povo, sendo que tais manifestações ganharam o direito de ter milhões de reais à disposição para sua inteira realização.
Do outro, a aparência tímida e acanhada de nossos melhores esforços em nossas manifestações culturais, que não parecem atingir sequer o status de diversão casual, devido à falta do glamour que só o dinheiro pode patrocinar, o que justamente a Expressão Amazonense não tem, desde tempos que já se perdem. O que é oferecido como forma de apaziguar os ânimos (uma espécie de “cala boca”), enquanto vai se empurrando a cultura com a barriga, se compara a migalhas atiradas de uma lauta mesa, que além de não saciar a fome e sede do pedinte, ainda o aprisiona na humilhante situação de mendigo.
Ora, que elemento vigoroso é esse que brota do seio povo e explode numa canção popular, levando todos a cantar pelas ruas da cidade sua alegria e orgulho de pertencer a uma determinada cultura, como faz por exemplo o povo baiano? Trata-se neste caso da “expressão baiana”! Com cara e jeito de baiano! Como não poderia deixar de ser, é o artista baiano celebrando sua liberdade de expressão, plenamente identificado com os anseios culturais sua gente, num transbordamento cultural tão intenso que subjuga fronteiras, a ponto da mesma ser exportada, estudada e até imitada em diversos lugares do mundo! E qual a diferença desta para a expressão amazonense? PRIORIDADE!!!
Se não por algumas iniciativas demagógicas ao longo desta insólita trajetória, o artista amazonense sempre encontrou grandes obstáculos ao seu fazer artístico. Além do desprezo do qual falamos, ele tem que remar muito para atravessar o rio volumoso da burocracia, colocado ali como uma ameaça perene a testar as últimas fibras de sua resistência. Ele compete duramente para conseguir uma mísera pauta para exercitar seu labor artístico, mostrando seu trabalho em algum canto desprestigiado e sem a publicidade adequada, ou até em lugar mais sofisticado, porém sem poder realizar com um mínimo de condições a apresentação de sua arte por falta de recursos.
Essa situação produz uma constante e angustiosa frustração geral, tanto nele que produz, como em quem assiste, dando largas à visão de que o artista amazonense é preguiçoso e incompetente, e a expressão amazonense é uma quimera; o que significa ainda dizer que no Amazonas realmente não tem arte e cultura: “Necessário importar!” Bom!… Depois de realizar seu show, ele é obrigado a transitar em diversos departamentos para pôr em dia a papelada, para receber a ninharia imposta por uma tabela aviltante, que ele é obrigado a aceitar se quiser continuar vivo como gente e como artista, tendo ainda que esperar ansiosamente por meses até receber. Louvo o profundo heroísmo desses corações intrépidos, pura inspiração para mim!
Todo esse comportamento surpreendentemente rude dos setores no comando do Estado à nossa prata da casa, se choca escandalosamente com o tratamento dispensado a quem vem de fora patrocinado pelo governo, quando a coisa lhe interessa. O artista já chega com um bom cachê garantido, imediatamente pago, sem burocracia ou qualquer embaraço, numa demonstração clara quanto ao senso de prioridades de quem hoje conduz o leme desse barco sem quilha, há muito navegando ao sabor das conveniências pessoais de uns e outros.
E para provar vou narrar aqui o mais recente episódio onde as máscaras caíram e não é possível mais ignorar a declarada posição do governo em relação à nossa cultura: Há dois anos, na SBPC de Belém, o Senhor, como autoridade máxima em nosso Estado, convidou a SBPC para se reunir no Amazonas, que aceitou e escolheu para esta reunião o tema “Amazônia – Ciência e Cultura”, realçando a importância da atividade cultural como parte inalienável do evento deste ano.

Mestre KK Bonates comandando os capoeiristas da Escola de Capoeira Matumbé
Assim, desde janeiro a direção do Projeto Cultural Uakti, que há mais de 20 anos mantém um movimento em favor da expressão amazonense em parceria com a ASPI e a Assinpa e os artistas em geral, percebendo a excelente oportunidade de finalmente dinamizar e divulgar nossa cultura onde ela teria atenção nacional, previamente apoiada pela direção da SBPC e da Ufam, com colaboração de muitas cabeças e mãos de artistas, produtores e profissionais ligados à cultura, como contribuição ao enriquecimento do evento, elaborou uma programação com mais de 500 artistas de todas as classes, digna de receber os visitantes e a própria população. Alguns dirigentes da SBPC se apaixonaram pela programação e inclusive ofereceram passagens aéreas para trazer artistas representantes de outros Estados da Região Amazônica.
Mas aí entrou a politicagem, a vaidade, as intrigas, a sabotagem e o desprezo pelos artistas locais e tudo foi “por água abaixo”, carregado pela enchente do descaso governamental. Nem vale a pena relatar quem deixou de fazer o que, pois muitas autoridades envolvidas nem merecem ser citadas. A verdade é que o Governo mais uma vez não só se omitiu, como sabotou a proposta até a sua inviabilização, permitindo que a oportunidade fosse perdida, deixando a cultura local – mais uma vez – do lado de fora, e, desta vez de uma das mais importantes reuniões da América Latina, bem aqui na nossa casa.
O Governo do Amazonas tem o dever moral de pelo menos dar uma explicação aos artistas e à sociedade Amazonense do por que? dessa discriminação absurda contra os nossos valores culturais legítimos colocando em xeque até o bom-senso, senão a própria sanidade de quem nos governa. “Incrível!!”, tudo isso acontece justamente quando o governo se prepara no maior descaramento para gastar à rodo num descabido festival importado de Jazz, dizendo que não tem dinheiro para apoiar nossa cultura.
Aqui expresso meu desabafo, impelido pela mais pura necessidade, na esperança de um dia poder livre e consubstancialmente oferecer meu trabalho a apreciação geral e dele viver com dignidade, distante do perigo de descambar pelo caminho do alcoolismo e da autodestruição como tenho visto nos meus 30 anos de fazer artístico na vida de muitos hoje à margem do caminho. Ou até quem sabe ser passível de coisa pior: transformar-me em funcionário público e esquecer de vez meu sagrado compromisso com a arte, ilhado geográfica e culturalmente nesse imenso rincão.
Assim, se para mais nada servir este manifesto, expressão legítima de uma dor, que seja ele um marco histórico no desenvolvimento cultural de nossa tribo. Que todos saibam que um dia alguém disse não! a esse estado de coisas, especialmente às futuras gerações, que ávidas de desenvolvimento haverão de questionar o atraso. Possa ele, por outro, lado sinalizar a luz da aurora de um novo tempo. Tempo de resgate e sedimentação de nossa legítima expressão amazonense, que nada mais é do que a nossa voz alegre e consciente, potente e vibrante, partindo em plena confiança de nossos saudáveis corações, anunciando ao mundo que no Amazonas existe vida inteligente, criativa, responsável e competente, apta a administrar o imenso patrimônio natural do qual é dona, em benefício de suas gentes, as gentes de todo mundo, e assim poder dizer sem os artifícios da propaganda demagógica, sim, eu tenho orgulho de ser amazonense! (Armando de Paula – Compositor, cantor, músico, produtor fonográfico e agitador cultural).
E quanto aos outros dois mentores do Projeto Cultural Uakti?
Tanto William Gama quanto KK Bonates tiveram uma carreira acadêmica e sociocultural bem-sucedida.
O carismático William Gama possui graduação em Comunicação Social pela Faculdade de Comunicação Hélio Alonso, do Rio de Janeiro (1982), especialização e mestrado em Planejamento do Desenvolvimento da Amazônia pela Universidade Federal do Pará (1997) e doutorado em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (2004). É analista em ciência e tecnologia do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Tem experiência na área de História, com ênfase em História da Pesquisa Científica Estrangeira na Amazônia Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: cooperação internacional na Amazônia, pesquisa norte-americana e alemã na Amazônia, legislação de acesso ao patrimônio genético, expedições científicas estrangeiras no Brasil, memória da ciência na Amazônia e história da ciência na Amazônia. Atualmente preside a Associação dos Pesquisadores do INPA (ASPI), onde coordena o Projeto Memória da Ciência e da Cultura na Amazônia (em colaboração com o INPA) e o Projeto Cultural Uakti.
O sempre bem-humorado KK Bonates é doutor e mestre em Ciências Biológicas. Pesquisador titular aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Titular do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA). Capoeirista com 50 anos ininterruptos de prática. Mestre da Escola de Capoeira Matumbé. Membro dos Grupos Samba de Roda Vozes do Cativeiro, Tambor de Crioula Punga Baré e Cultural Negríndio Malungo Dudú. Foi vice-presidente do Conselho Estadual de Cultura do Amazonas (2008-2012). Sua experiência e pesquisas são direcionadas para as áreas de Botânica Tropical e Cultura Popular (ênfase na capoeiragem e expressões afrobrasileiras). Possui publicações em português, francês, inglês, italiano e espanhol. Desde 2019, é o secretário executivo da Secretaria Estadual de Cultura (SEC).